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Justiça: Virtude orquestrada pelo Afeto
Antes de sermos homo sapiens ou seres humanos que pensam, somos homo affectus, ou seres humanos que sentem. Sentimos, não apenas, frio, calor, sede e fome como os outros animais, mas também sentimos medo, ódio, amor: sentimos saudade. Somos seres afetivos na acepção mais profunda do que seja possível sentir.
Mesmo o que temos de mais superficial, a nossa pele, não passa de porta aberta para o abismo onde pululam as nossas emoções mais profundas. Se em princípio era o verbo, esse verbo se fez primeiro poesia, a linguagem das emoções, para depois se fazer prosa, o logos da racionalidade. Todas as nossas reações ao mundo que nos rodeia, incluindo às pessoas com as quais dividimos esse habitat, são, originariamente, emocionais, afetivas.
O racional vem depois, como um dique que se constrói para conter a força das ondas do mar, para desviá-las para onde possam nos ser mais úteis e produtivas, para que gerem uma outra energia, para que não nos destrua. Não que deixar as emoções como cavalos selvagens não selados mover as nossas atitudes e escolhas será sempre destrutivo. Se assim não o fizéssemos não estaríamos aqui neste planeta, lançando-nos a horizontes distantes e cheios de riscos, não evoluiríamos, sequer teríamos nascido, pois é do resultado de uma cavalgada intrépida que somos fecundados e fecundamos. E até no que tange ao mais primitivo dos instintos, somos afetivos.
Para nós não existe sexo, mas sexualidade, com todas as emoções boas e más que o permeiam. Ao mergulharmos no outro, seguimos a rota de busca não apenas de um prazer, mas da verdade que existe nesse alguém, essa verdade que, desvelada, revela quem somos nós mesmos.
E foi assim, sentindo e racionalizando sobre o que sentimos, que chegamos até aqui nessa trilha de existência sobre o cosmos. Se houvéssemos nos guiado apenas pela força física, há muito teríamos sido dizimados pelos demais animais e pelas intempéries da natureza, assim como, se, em nós, houvesse uma racionalidade pura e simples, destituída de emoções, teríamos perecido numa ilha de solidão e autismo.
Se demos prosseguimento à aventura da vida, foi porque nos demos as mãos, porque nos afeiçoamos uns aos outros e fomos solidários. A nossa espécie sobrevive porque temos cuidado de nós e, principalmente, porque temos cuidado uns dos outros. Esse cuidado tem por escopo precípuo, manter-nos vivos e ajudarmos para que os outros assim se mantenham; evitar e tratar a doença em nós e nas outras pessoas.
Para atingirmos esse fim precisamos ser justos e justiça significa dar a cada um o que lhe é de direito, de direito para existir, de direito para buscar ser feliz. Logo, a mola propulsora para a justiça, base estrutural de nossa existência, é o afeto que sentimos por nós mesmos e pelo nosso semelhante. Quanto mais sentimos esse afeto de forma positiva, espalhamos justiça em latitudes cada vez maiores, expandimos a nossa capacidade de amar e passamos a ter afeto por tudo o que é vivo ou inanimado, pelo que nos parece bonito ou feio, semelhante a nós ou nossos opostos, assim nossas ações passam, naturalmente, a serem justas e por serem justas, saudáveis, e por serem saudáveis, justas.
Para atingirmos essa grande aspiração do afeto humano, a mais alta virtude, a justiça, a nossa racionalidade desenvolveu a ciência do direito. Construiu-se uma dogmática e um arcabouço teórico baseado em evidências e necessidades empíricas, a epistemologia do dever-ser. O justo, para o filósofo grego Aristóteles, é o que leva à felicidade[1]. O direito é, então, o conjunto de regras que tornam possível a convivência harmoniosa entre os seres humanos, dando a cada um o que é seu, ou seja, fazendo-se justiça para que sobrevivamos e sejamos felizes. Quanto mais o direito se afastar desse propósito, tornando-se um arcabouço normativo frio e não baseado no afeto, mais longe estará da sua razão de ser, que é a de fazer justiça. Se tal fosse possível, não haveria mais juízes, promotores e advogados, mas apenas computadores a decidirem a melhor solução para os conflitos humanos.
A evolução cibernética já é suficiente para tanto, porém continuamos a submeter nossas demandas jurídicas a pessoas de carne, osso e sangue, porque só é justo quem sente o afeto, quem é humano. As decisões judiciais mais justas são adjetivadas de decisões salomônicas, isso porque foi o rei Salomão quem decidiu a maternidade de uma criança, reivindicada por duas mulheres com a mais suprema justiça. Salomão propôs que a criança fosse cortada ao meio, pois assim, cada uma das mulheres ficaria com a sua fração ideal da criança. Uma das mães aceitou a proposta, a outra disse que não, que abriria mão da maternidade desde que o filho continuasse vivo, mesmo que chamando de mãe a uma outra mulher. Salomão deu a essa última o ganho de causa, fazendo-se, assim, a máxima justiça: a sentença de Salomão foi baseada no afeto. A que ama e preserva a vida de seu filho, essa é a verdadeira mãe.
A antigüidade nos legou um sem número de regras, de arcabouços jurídicos. Os direitos da Mesopotâmia, da Assíria, as leis dos hititas, o Deuteronômio dos hebreus. Desnecessário ressaltar as contribuições de cada uma delas ao pensamento jurídico. Mas, salvo o deuteronômio, expressão da cultura judaica com forte influência até o mundo contemporâneo atual, essas contribuições no âmbito normativo são esparsas e pontuais.
O fundamento do direito ocidental ainda é o direito romano, e não, principalmente, em razão do direito quiritário, o jus civile quiritium, o direito romano primitivo. Este era rígido, positivista, inflexível, com fórmulas herméticas, mas em razão do direito pretoriano, também chamado de direito bonitário, por ser um direito cujo fundamento está no "in bonis", um direito que tem por base a eqüidade. Direito, esse, que é o edifício jurídico construído tijolo a tijolo pelo pretor romano, um pretor que, ao incomodar-se com as fórmulas ou a falta das mesmas que levavam a decisões injustas recorrentes nos litígios, onde as soluções estavam presas às fórmulas impermeáveis, como nos casos das ações reivindicatórias de propriedade de uma res mancipi[2], cria os interditos possessórios, possibilitando àqueles que têm a melhor posse a mantê-la em detrimento do direito do proprietário. Um pretor humanizado que introduz na condemnatio da fórmula uma frase que dá ao juiz a missão de proporcionar o montante da pena ao dano sofrido, conforme as regras da eqüidade: quantum pecuniam vobis bonum aequum videbitur ob eam rem condemnari. Um pretor que, na sua carpintaria de forjar decisões sábias, ordena ao juiz que aprecie a obrigação exata do devedor segundo as exigências da boa fé, introduzindo na condemnatio estas simples palavras: ex bona fide condemna. O direito pretoriano é o direito bonitário, o direito compromissado a fazer justiça como a fazer um bem, ousaria dizer que é um direito do afeto, do cuidado. E é por sê-lo que chegou até nós, é por sê-lo que venceu as contingências da história e é estrutura histórica dos institutos normativos atuais.
Tantos e tantos direitos foram produzidos por tantas civilizações, mas nenhum é, como preconiza o jurisconsulto romano Celso "a arte do bom e do justo" (jus est ars boni et aequi). O pretor, como magistrado, detinha um vasto poder denominado imperium. Utilizou-se dele, especialmente, a partir da lei Aebutia, no século II a.C., lei essa que, ao modificar o processo, outorgou-lhe amplos poderes discricionários. Através dessas modificações processuais, o pretor, ao fixar os limites da contenda, podia dar instruções ao juiz particular sobre como ele deveria apreciar as questões de direito. Fazia isto, por escrito, pela formula, na qual lhe facultava incluir novidades, até então desconhecidas no direito antigo.
Essas reformas completavam, supriam e corrigiam as regras antigas (Ius praetorium est, quod praetores introduxerunt adiuvandi vel supplendi vel corrigendi iuris civilis gratia. Digesto. 1.1.7.1)[3]. Essa atividade normativa manifestava-se através do edito que passava a conter em seu bojo o direito pretoriano cuja existência estava em concomitância com o direito quiritário, o jus civile[4]. Ao preponderar o sentido do justo, o sentimento de justiça que move não apenas o pretor, mas as partes de um litígio que clamam por uma decisão justa dos pretórios, imbui-se a justiça de animus e de anima, ou seja, de alma. Uma alma que tem vontade, a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu direito[5]. Uma alma que luta, incessante e diuturnamente para alcançar o seu fim, fim esse denominado por Ihering como "A luta pelo Direito[6]". Uma luta apoiada pela espada, mas movida por um coração pulsante.
Na ordem jurídica brasileira atual, principalmente após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, o afeto e o cuidado são tidos como princípios fundamentais que regem, não apenas a "mens legis", ou seja, a intenção do legislador ao elaborar as leis, mas também, as decisões dos juízes e as peças jurídicas elaboradas por advogados e promotores. Uma ordem jurídica que tem por uns de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos, está, indubitavelmente, compromissada com uma justiça efetiva e afetiva.
E é por basear-se esse direito no afeto que podemos hoje falar em direitos daqueles que vivem como marido e mulher sem serem casados, nos direitos daqueles que não são filhos biológicos, mas sim, filhos do afeto e, portanto, da mesma forma filhos sem quaisquer distinções de direitos com os primeiros. Foi baseada no afeto que a decisão judicial pela guarda do filho da falecida cantora Cássia Eller, foi dada à sua companheira sobrevivente e não àquele que é ligado à criança por vínculo de sangue, mas não do amor materno, o seu avô. É com base no afeto que as relações homoafetivas têm sido brindadas com decisões justas a proverem as demandas previdenciárias e quiçá, proximamente, possamos falar em casamento de homossexuais no Brasil.
O afeto estendido atinge também as ações judiciais e as legislações de cunho ambiental, pois sem afeto e cuidado com esse planeta, logo, logo, estaremos todos mortos, sem a possibilidade de uma segunda chance. É fundado no afeto que se chega à justiça nos casos de abortamento de fetos anencefálicos, de toxicomania e na discussão sobre a maioridade penal. É o afeto e a solidariedade que devem guiar os que decidirão as responsabilidades civis e criminais dos que forem culpados pelas mortes de centenas de pessoas nos últimos desastres aéreos ocorridos no Brasil, a inconstitucionalidade ou constitucionalidade da norma que prevê o uso de embriões excedentários para fins científicos, os centenas de milhares acidentes de trânsito, os milhares de estupros, abusos sexuais e assassinatos. A justiça social, o fim da fome e do analfabetismo, as reformas da saúde pública não ocorrerão sem atentar-se para o princípio do cuidado, da solidariedade e do afeto, simplesmente porque são esses os princípios que estão comprometidos com a vida e é o amor à vida o afeto primordial a animar a caneta de um juiz, pois nenhuma decisão que for a favor da vida e de seu desenvolvimento pleno correrá o risco de ser injusta.
Duvidosas as decisões e as leis elaboradas pelos que estão imbuídos pelo ódio, pelo preconceito e pelo prazer na destruição, dos deficitários de compaixão. O dogma não satisfaz a ânsia de justiça, isso tão bem já o sabiam os pretores romanos, mesmo a igualdade não pode ser aritmética, é preciso examinar os autos de um processo sob a luz do mundo, sua realidade e condições e seus bons afetos. Afetos que são as notas base para a música do direito, para a sinfonia da justiça.
Justiça: virtude filha do afeto, molécula da água mais essencial a orquestrar a nossa sede infinita.
[1] Ver ARISTÓTELES in Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002.
[2] Bens cuja transferência de propriedade requer a prática das formalidades da mancipatio, ato solene do direito arcaico. Faziam parte da categoria das res mancipi os terrenos itálicos, os animais de tiro e carga (tais como o cavalo, a vaca e o burro), os escravos e as quatro servidões prediais rústicas mais antigas, que eram a via, iter, actus e aquaeductus. Todas as demais coisas eram nec mancipi (cujas propriedades podem ser transferidas pela simples entrega).
[3] In MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano, São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1974.
[4] In VILLEY, Michel. Direito Romano. Porto: Rés-Editora, 1955.
[5] Ulpiano, Fragmento 10 do Digesto: ...Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi... .
[6] Ver Rudolf von Ihering in A Luta pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2002.
Andrea Almeida Campos é sócia do IBDFAM, advogada e mestre em Políticas Públicas. Professora de Direito Civil da Universidade Católica de Pernambuco e Professora Substituta da Universidade Federal de Pernambuco. Contato:andalmcampos@uol.com.br
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