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Sobre os resultados de uma pesquisa
A vantagem intelectual de uma sociedade não virá da eficácia com que a escola ensina multiplicação e tabela periódica, mas do modo como estimula a imaginação e a criatividade.
Einstein
A iniciativa de buscar uma nova metodologia de atendimento para os usuários da PMFC teve sua origem na falência dos esforços utilizados até então, no intuito de resolver conflitos familiares, trazidos à assistência judiciária do Estado de SP, com queixas de violência. O atendimento jurídico tradicional não atendia aos verdadeiros anseios e necessidades que as assistidas vinham buscar na justiça. Processos resolvidos estavam longe de significar a solução dos conflitos promovendo retornos das famílias, levando os operadores do direito a desvalorizarem seu próprio trabalho ou a seriedade de sua clientela. Foi somente com a introdução do método da Mediação, em 1992, que se vislumbrou possível uma aproximação entre a necessidade de se cumprir a justiça e as demandas da população.
A Mediação foi utilizada, a princípio, de forma absolutamente empírica, obedecendo ao método de ensaio e erro, considerando que a literatura existente, até então,, era importada e própria para outros contextos sócio-culturais. Durante esse processo, pressupostos básicos, claramente expressos como essenciais nas expectativas da(o)s :assistida(o)s foram respeitados:
1. O direito de se fazer ouvir sem julgamentos prévios.
2. Mais do que um processo jurídico, a demanda de oportunidade de um diálogo
que permitisse um abrandamento dos fatores indesejáveis nas relações, com a expectativa de mantê-las com menos conflitos.
3.A necessidade de novos instrumentos que possibilitem equilíbrio de poderes.
4. Maior garantia de cumprimento dos acordos.
Por outro lado, do ponto de vista da equipe, duas eram as principais expectativas:
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A necessidade de aprofundar-se no estudo das relações de gênero.
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A necessidade de envolver o grupo masculino, até então alijado dos serviços voltados à violência contra a mulher, de forma envolvê-los e responsabilizá-los pelo processo e resultado das ações e do exercício da função paterna.
Em 2003 foram publicados os primeiros resultados empíricos do método e, em 2004 uma equipe da UNICAMP, interessou -se em avaliar o impacto da sua aplicação na população atendida. O objetivo principal deste projeto foi definido como avaliação do desempenho do método da mediação familiar na resolução de conflitos familiares e situações de violência intrafamiliar.
Os dados obtidos apontando para o sucesso da metodologia, somados à experiência de anos de prática, proporcionaram a possibilidade de se construir um corpo conceitual capaz de contribuir para a reflexão e formulação de novas políticas públicas e a produção e divulgação desse conhecimento.
Assim, vale dizer que o Manual de Mediação Familiar Transdisciplinar é o resultado de uma pesquisa voltada para avaliar a crença na capacidade humana de reinventar-se, no sucesso de soluções não convencionais e na força pacificadora do respeito à alteridade. De um lado, digamos que a experiência da alteridade é pouco comum na nossa cultura em geral, enquanto herdeiros da dificuldade em absorver aquilo que não nos é familiar. De outro lado, o registro da alteridade pressupõe uma noção de potência existencial que, na população de baixa renda, se esvai na busca da sobrevivência diária.
Foi através da lógica da transdisciplinaridade que se tornou possível o respeito a alteridade, atendendo à complexidade e ao estatuto sócio cultural dos sujeitos.
No contexto de uma população pobre, privada de condições básicas de bem estar, com baixo nível de capital social, a necessidade de justiça se confunde com a necessidade de ser reconhecido enquanto pessoa. Entretanto, as dificuldades, tanto de acesso quanto de compreensão na comunicação, de parte a parte, com o judiciário, provocam pelo contrário, sentimentos de baixa auto-estima e dependência nas pessoas que procuram os serviços. Citando o ex secretário da Justiça, Dr. Belisário Santos Jr. "O Estado é o violador por excelência dos direitos humanos. Mesmo em tempos recentes, o Estado não vem se revelando capaz de corresponder às necessidades e aspirações da sociedade, principalmente das grandes camadas mais desvalidas...."(2003)
Um depoimento sobre o atendimento tradicional ilustra essa realidade:
"No dia do atendimento eu não me senti bem pelo seguinte: eu não sei se já é uma coisa da cabeça do juiz ou não, da pessoa que tá fazendo o acordo que, assim, não tem uma situação de investigação, saber como que foi, como que foi a história, o que acontece, por que tem problema, você chega lá e é determinado se você vai pagar pensão e é assim que resolve, pronto, você tem que dividir o que você não tem, não achei que foi um atendimento, assim, ímpar, né? Eles vão da forma que eles pensam, da forma que eles estudam. Não me senti contente." (Parte de Assistida S015PF, 25 anos).
Após a introdução da Mediação no serviço público, entretanto, tornou-se possível conciliar objetivos fundamentais de justiça à presença de autoridades não intimidatórias criando novas possibilidades para uma aproximação considerável com os ideais concebidos.
O que a pesquisa demonstra é que a aquisição de instrumentos necessários para a superação de formas de comunicação apoiadas na acusação, na desmoralização e na desumanização das pessoas, com forte apelo para as discriminações de gênero podem ser desconstruídas, cedendo lugar a cidadãos mais conscientes, mesmo em situações de conflito.
"O contato com o Serviço de Mediação, ainda que possa não resultar em acordo, cumpre seu papel social. A experiência vivida nas sessões de mediação é um convite à reflexão e, de certo modo, pode funcionar como uma espécie de "oficina de comunicação", já que essas pessoas nem sempre tiveram oportunidades de poder desenvolver a capacidade de verbalização, fundamental na negociação."
As estratégias de atendimento foram traçadas com o intuito de gerar potencialidades transformativas :
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Acolher os usuários de forma a reforçar seu protagonismo.
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Garantir o re-conhecimento das partes (princípio da alteridade) através da noção de que não há uma verdade a ser descoberta, mas um dissenso sobre fatos.
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Desconstruir práticas e acusações baseadas em discriminações e preconceitos.
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Transmitir noções de direitos e responsabilidades com a finalidade de promover cidadania.
E os resultados se revelaram através dos depoimentos:
(...) de tudo que ser preciso eu fazer para evitar violência eu vou fazer, dentro de casa eu vou fazer, mesmo a hora que ela estiver estressada e vier com violência para o meu lado, eu vou sair de casa, vou ficar quieto tudo eu vou fazer para evitar, que isso é uma coisa muito ruim na vida da gente. (...) eu acho que aquilo que aconteceu lá eu já pensei comigo que minha vida tinha que ser diferente, eu tinha que pensar muito em mim, pensar nas pessoas, não pensar só em mim, estar de bem comigo mesmo porque se eu estiver de bem comigo mesmo vou estar de bem com as pessoas. Então só isso que eu pensei, e de ver esses momentos que eles fala, as pergunta que faz, um atendimento bem sabe? Então eu gostei. (...) eu gostaria de explicar, de aprender mais com alguém que sabe mais do que eu. Porque, você sabe, o estudo, meu estudo é pouco, eu tenho pouca cultura, então minha educação eu aprendi um pouco andando pelo mundo, tenho viajado muito, vejo muita violência, vejo muita coisa que não era para acontecer sabe e ninguém faz nada, muita gente não faz nada então é isso aí. (Parte de Assistido S0 32PF, 56 anos ).
Hoje, a PMFC é a responsável pela implantação e coordenação da Mediação de Conflitos em todas as regionais das Defensorias Públicas do Estado de São Paulo, comprovando, a cada dia, seus benefícios para a população e para os próprios operadores do direito.
Muszkat, M. (org), Mediação de Conflitos, pacificando e prevenindo a violência, Ed. Summus, SP, 2003.
Nucleo de Esudos da População (NEPO). Coordenação: Maria Coleta Oliveira.
Malvina Ester Muszkat é associaciada ao IBDFAM, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica, especialista em Mediação de Conflitos pela Bilden-Entidad Formadora en Mediación/ Argentina. Ataulamente, é coordenadora geral do Projeto de Implantação da Mediação de Conflitos nas Defensorias Públicas do Estado de São Paulo. Contato: muszkat@uol.com.br
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