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O parentesco socioafetivo como causa de inelegibilidade
1. O Direito Eleitoral e o Direito de Família, uma simbiose cada vez mais presente
As questões envolvendo o Direito de Família e o Direito Eleitoral são cada vez mais freqüentes nos tribunais eleitorais, principalmente nos anos de eleições, na fase de registro de candidaturas. É nesse momento importante do processo eleitoral que são suscitadas as impugnações de candidaturas e argüidas as inelegibilidades. Considerável número dessas argüições de inelegibilidades dizem respeito aos institutos de Direito de Família.
Na Constituição Federal temos os paradigmas centrais da teoria das inelegibilidades. No art. 14, § 7º, principalmente, estão expostas, de maneira clara, as inelegibilidades provenientes da conjugalidade e da consangüinidade, em termos assim descritos:
"São inelegíveis, no território da jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição."
Em complementação às diretrizes constitucionais, temos a Lei Complementar nº 64, de 18.5.1990.
Os institutos de Direito de Família que se apresentam com freqüência nas discussões das inelegibilidades, no direito brasileiro, são: a união estável, o casamento, a separação judicial, o divórcio, o parentesco, a filiação e a adoção. Até mesmo o namoro já foi objeto de discussão no TSE sobre sua possível caracterização como causa de inelegibilidade.
2. Dois fatos eloqüentes
Como membro do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão tive oportunidade de participar do julgamento de dois fatos interessantes que me estimularam a desenvolver o presente estudo.
O primeiro referiu-se à impugnação da candidatura da irmã de criação do prefeito de um município maranhense, em seu segundo mandato. A candidata chamava de pai e mãe aos pais biológicos do prefeito e ainda tomava bênção a eles como filha, segundo o relato das testemunhas.
Mesmo com a instrução feita regularmente, com os depoimentos testemunhais confirmando o parentesco socioafetivo, a candidatura foi deferida e o TRE/MA, na linha do entendimento do TSE, confirmou a decisão de primeiro grau, em acórdão que teve a seguinte ementa:
Eleições 2004. Recurso inominado. Adoção de fato. Inelegibilidade. Descaracterização. Recurso conhecido e desprovido.
- Adoção meramente de fato não rende ensejo à inelegibilidade de que trata o art. 14, § 7º, da CF.
- Recurso conhecido e desprovido. [01]
O segundo fato diz respeito a um caso mais interessante, mas cujo mérito sequer foi julgado, por entraves processuais. O prefeito de outro município maranhense, em seu segundo mandato, lança como candidato para sucedê-lo um filho extramatrimonial não reconhecido, mas cuja filiação é do conhecimento público.
A prova mais evidente da filiação, neste caso, igual a muitos casos que podem surgir, tanto envolvendo filhos não reconhecidos como filhos de criação, é que o prefeito se chamava Raimundo de Tal, conhecido como "Bidico". O candidato que o sucedeu é conhecido no município como Antônio Luiz de Bidico.
A negativa de paternidade, neste caso, poderia facilmente ser ilidida pelo delineamento perfeito dos três aspectos que a doutrina aponta para o reconhecimento da posse do estado de filho: a) o nome; b) o trato; e c) a fama.
Como não seria possível, em sede de recurso eleitoral, investigar-se a paternidade biológica de alguém, o que nos interessa enfatizar aqui é o parentesco socioafetivo, oriundo do relacionamento entre pai e filho, comprovados por demonstrações objetivas de afeto. É para estes casos que reclamamos a incidência da inelegibilidade. Como diz a desembargadora Maria Berenice Dias, "em matéria de filiação, a verdade real é o fato de o filho gozar da posse de estado, a prova mais exuberante e convincente do vínculo parental". [02]
3. O parentesco socioafetivo
O parentesco socioafetivo é um fato real que se encontra disseminado nas famílias brasileiras, principalmente nas cidades do interior dos estados.
A identificação do pai de criação, da mãe de criação, do irmão e da irmã de criação são realidades que se tornam ostensivas nas cidades interioranas, a ponto de um casamento entre irmãos dessa categoria ser considerado como incesto.
A figura do filho de criação sempre esteve presente em nossa cultura e em nossas famílias. O termo "criação" desponta aqui como afeição, adoção, aceitação, sustento e guarda.
Pode ser um parente distante ou o filho da empregada de confiança, ou um órfão, o filho da comadre, de um amigo pobre, de qualquer origem, enfim. Basta que se faça a opção de criar e ele será ungido com os cuidados de um filho.
Ao longo do tempo, principalmente em se tratando de uma comunidade interiorana, esse filho passa a ser conhecido na cidade inteira, podendo até receber um apelido que o identifique com o seu pai ou com sua mãe, como José de Maurício, Maria de Creuza, ou qualquer outro indicativo da família que o abriga.
Em casa, ele recebe todo o afeto que é dedicado aos filhos consangüíneos, como amor, assistência material, lazer, tudo.
O que falta, então, para que o filho de criação seja oficialmente reconhecido como filho? Apenas o ato de adoção legal, pois a adoção de fato está consumada no dia-a-dia, por anos e anos de convivência.
O mais importante é que os pais adotivos, que fizeram livremente a opção de receber esse filho, mantenham tal vínculo até a morte. Se o tratamento que é dispensado ao filho consangüíneo é o mesmo dado ao seu irmão de criação, não há como negar essa relação filial e admitir as suas conseqüências, notadamente sob a perspectiva da igualdade constitucional.
Com razão Rolf Madaleno quando leciona:
Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor à pessoa gerada por indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição. [03]
Nessa mesma linha de entendimento, Maria Christina de Almeida afirma: "o elo entre pais e filhos é, principalmente, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico." [04]
Denise Duarte Bruno, em seu trabalho "Posse do estado de filho", contribui para a definição dos contornos desse novo parentesco com a seguinte lição:
A parentalidade (e a inseparável filiação) socioafetiva existe quando uma criança ou um adolescente tem, em relação a adulto que não é seu genitor biológico nem adotivo, a posse do estado de filho, ou seja, existem entre eles "relações de afeto que se consolidam entre pais e filhos, mesmo na ausência de vínculo genético. [05]
Nestes casos, o parentesco é uma realidade inafastável que o Direito não pode desconhecer nem a Justiça fazer-se cega para não enxergá-la.
O critério socioafetivo tornou-se, hoje, ao lado dos critérios jurídico e biológico, um novo critério para aferir-se a existência do vínculo parental. Funda-se a afetividade no melhor interesse da criação e na dignidade da pessoa humana.
4. A união estável como causa de inelegibilidade
Inicialmente a resistência para a união estável ser alcançada pela inelegibilidade deveu-se à interpretação literal do artigo 14, § 7º, da Constituição Federal, e à ausência de previsão legal no Código Civil de 1916. Nem as leis 8.971/94 e 9.272/96 conseguiram convencer o TSE sobre o alcance da inelegibilidade às situações de união estável. Nessa primeira fase, entendia a mais alta Corte Eleitoral do país que "a Lei 9.278/96 não tem o condão de criar relação de parentesco por afinidade que enseje inelegibilidade" (Acórdão nº 12.848/96).
Por conta desse entendimento, foi revogada pela Resolução nº 20.920/TSE, a Súmula nº 7/TSE, que previa: É inelegível para o cargo de prefeito a irmã da concubina do atual titular do mandato.
Entretanto, posteriormente, deu-se interpretação mais ampla ao art. 14, § 7º, da Constituição Federal. O fato de não constar expressamente nesse texto a expressão "união estável" não significa que este instituto não esteja contido na norma do referido artigo. É uma conclusão resultante do raciocínio analógico conjugado com a visão sistemática da Constituição Federal e da aplicação do método teleológico. Passou-se, então, a considerar a união estável como causa de inelegibilidade.
Se a Constituição reconheceu, para efeito de proteção do Estado, a união estável como entidade familiar, não há por que isentá-la dos efeitos da chamada inelegibilidade reflexa, apenas porque o constituinte referiu-se apenas a "cônjuge", no parágrafo 7º, do artigo 14. Este parágrafo não pode ser interpretado sem o contexto do artigo 226 e seus parágrafos, todos da Constituição Federal. Ainda mais: o mesmo objetivo que considera inelegíveis os cônjuges deve ser aplicado aos companheiros, pois, em ambos os casos, trata-se de evitar o continuísmo de uma família no poder.
Em votações recentes, [06] o TSE praticamente repristinou a Súmula nº 7, após a vigência do novo Código Civil, que trouxe a previsão legal (art. 1.595) para sustentar a incidência que antes não havia (Cf. Resolução nº 21.376, de 1º.04.2004, Rel. Min. Carlos Madeira), pois o código anterior não reconhecia a união estável.
Hoje, em reiteradas decisões, o TSE admite pacificamente a inelegibilidade provocada pela união estável, apesar de se encontrarem, ainda, os adeptos da literalidade que não conseguem ler o § 7º do artigo 14, da Constituição Federal, além de sua letra.
5. O caso de Viseu
A decisão do TSE que reconheceu a inelegibilidade oriunda de uma relação homoafetiva (caso de Viseu-PA) representou uma conquista que surpreendeu os familiaristas, em todo o país. Pela sua importância, vale a pena transcrever a ementa do acórdão nº 24.564/TSE:
Registro de candidato. Candidata ao cargo de prefeito. Relação estável homossexual com a prefeita reeleita do município. Inelegibilidade. Art. 14, § 7º, da Constituição Federal.
Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art.14, § 7º, da Constituição Federal.
Recurso a que se dá provimento.
(Respe.24.564. Rel. Min. Gilmar Mendes)
Como se constata, após o reconhecimento da união estável heterossexual como causa de inelegibilidade, adiantou-se mais a jurisprudência e disse que as uniões homossexuais devem ser albergadas no novo conceito de família fundada sobre o afeto. Ainda mais, alguns tribunais estaduais confirmaram a união homossexual também como união estável. E mais ousadamente, vem a jurisprudência eleitoral, do seu tribunal superior, dizer que um casal homossexual forma mesmo uma união estável.
Este é um exemplo claro do fenômeno da mutação constitucional, tão bem discutido e defendido pelos constitucionalistas. Sem ofender e sem alterar o texto de uma Constituição, busca-se a interpretação que corresponda à evolução dos fatos, sempre com o propósito de torná-la mais efetiva e concreta.
6. A inserção da afetividade como causa de inelegibilidade
No ato de aplicar a lei, deve o intérprete buscar o contexto da norma em consonância com as peculiaridades do caso concreto. Então, com apoio na lógica do razoável, encontrará a conclusão mais justa, que corresponda à efetiva aplicação da lei e atenda ao anseio de justiça.
Diz o artigo 1.593 do Código Civil: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou de outra origem.
A expressão "ou outra origem" tem a mesma natureza de tantas outras que caracterizam o novo Código Civil, onde se encontram inúmeras expressões de conteúdo jurídico indeterminado que desafiam o intérprete para definir o seu alcance.
Nem se pode objetar, alegando que a expressão "outra origem" significa somente adoção, como constava da redação original do artigo. No momento em que foi substituída pelo legislador, pretendeu-se que a nova redação tivesse uma abrangência maior que a adoção, para alcançar também os filhos da reprodução heteróloga, os filhos de criação etc.
É sabido que a afetividade afirmou-se hoje como o paradigma do amor autêntico que orienta todas as questões de Direito de Família.
Em relação aos filhos de criação é coerente afirmar-se que se trata de um parentesco socioafetivo, devendo esta idéia de afetividade abrigar-se na expressão "outra origem" do art. 1.593, do Código Civil. Ao juiz caberá concretizar essa norma, com fundamento nos princípios constitucionais e nos valores sociais da comunidade.
A doutrina tem contribuído muito bem para a elucidação da mens legis do art. 1.593, no que pertine ao alcance da idéia de parentesco.
Paulo Luiz Netto Lôbo entende que "constituem parentescos de 'outra origem' os parentescos por afinidade e por adoção." [07]
Sílvio Rodrigues faz a seguinte análise do artigo em referência:
"Pelo artigo 1.593, será natural o parentesco consangüíneo ou de outra origem, assim acrescentado no texto quando da redação final elaborada pela Câmara dos Deputados, para contemplar a situação da inseminação artificial, em que o próprio Código também considera a paternidade presumida, com resultado idêntico à filiação consangüínea (art.1.597)". [08]
Em comentários ao referido artigo, em obra coordenada por Heloísa Maria Daltro Leite, deparamo-nos com esta conclusão mais aberta, que se direciona para nosso propósito:
"Tem-se, assim, no art. 1.593 do novo Código Civil, elementos para a construção de um conceito jurídico de parentesco em sentido amplo, no qual o consentimento, o afeto e a responsabilidade terão papel relevante, numa perspectiva interdisciplinar." [09]
Da desembargadora Maria Berenice Dias tomamos este complemento: "Assim, outra origem não significa mais e tão-só o parentesco decorrente da adoção, mas o parentesco que tem origem diversa da consangüínea" (grifos da autora). [10]
Em novembro de 2004, civilistas de todo o país, reuniram-se no auditório do STJ para estudo do atual Código Civil e, ao final do encontro, emitiram enunciados, dentre os quais um referente ao artigo 1593, de autoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos (TJ-RS), com a seguinte redação: "A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil."
Esse enunciado consolidou o entendimento que alcança a pretensão buscada por este estudo.
O mesmo argumento teleológico que levou o TSE a adotar a Súmula nº 7, pode ser usado para reconhecer a inelegibilidade do irmão de criação. Se o cunhadio, em uma relação de fato, gera a inelegibilidade, o parentesco colateral socioafetivo também deve gerar esse mesmo obstáculo à elegibilidade, por se tratar, em ambos os casos, de parentes colaterais em 2º grau.
Depois do precedente de Viseu (PA), em que o TSE reconheceu a existência de união estável numa relação homoafetiva, com certeza, também modificará sua posição em relação à adoção de fato.
Não se pode esquecer o lado ético da força normativa da constituição que pretende evitar o predomínio e a perpetuação de uma família no poder. Neste ponto, Rolf Madaleno é preciso:
"As inelegibilidades têm inspiração de natureza ética e buscam afastar as influências perniciosas, capazes de comprometer a lisura e a transparência do pleito eleitoral." [11]
7.Conclusão: a importância de estender o alcance da inelegibilidade parental aos filhos e irmãos de criação
Não é possível deixar-se no leito da indiferença uma relação de afeto tão forte como é aquela que existe entre filhos e irmãos de criação.
O Direito, como relação intersubjetiva, não pode desconsiderar que os efeitos culturais da filiação socioafetiva sejam são tão fortes quanto os da consangüínea, ou, em certos casos, até superem os efeitos desta última. O conceito jurídico indeterminado, que se encontra na expressão outra origem, do art. 1.593, do Código Civil, deve ter sua adequação aos casos concretos em que se constatam relações de afeto como autênticas manifestações de parentalidade.
No campo do Direito Eleitoral, quando este busca no Direito de Família elementos para corroborar seus julgamentos, já é tempo de considerar-se o afeto com força suficiente para influenciar na teoria da inelegibilidade, a exemplo do avanço proporcionado pelo caso de Viseu (PA). A parentalidade socioafetiva é uma realidade que não pode ser mais desconhecida.
Pelo princípio da efetividade busca-se dar a mais ampla aplicação ao texto constitucional, numa forma de tornar a Constituição mais presente e mais concreta na vida do cidadão.
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Notas
01 Acórdão n° 5.935, de 2.9.2004, Rel. Juiz Carlos Madeira.
02 Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2005, p.342.
03 Madaleno, Rolf. Filhos do coração. In: Revista Brasileira de direito de família, n. 23, p.22.
04 Almeida, Maria Christina de. Paternidade biológica, socioafetiva, investigação de paternidade e DNA. In: Família e Cidadania. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família, p. 459.
05 Bruno, Denise Duarte. Posse do estado de filho. In: Família e cidadania. Belo Horizonte: Del Rey, p.463.
06 É inelegível o irmão ou irmã daquele ou daquela que mantêm união estável com o prefeito ou a prefeita. (Res. Nº 21.376, de 1.4.2003 - Rel. Min. Carlos Madeira)
07 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Código civil comentado. Vol. XVI. São Paulo: Atlas, 2003.
08 Rodrigues, Sílvio. Direito Civil. Vol. 6. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002, p.318.
09 Amin, Andréa Rodrigues [et. Al] O novo código civil: livro IV do Direito de família. Coord. Heloísa M. Daltro Leite. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 174).
10 Op.cit. p.317.
11 Madaleno, Rolf. A inelegibilidade eleitoral na união estável. In: Rev. TRE/RS, vol.9, p. 11/25.
Elaborado em 02.2008. |
Lourival de Jesus Serejo Sousa é presidente do IBDFAM-MA e desembargador do TJMA. |
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