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Em busca da nova família: Uma família sem modelo
1.Introdução.
Toda a questão partiu de um documento: a certidão de nascimento. Como se sabe, nela consta um espaço destinado à paternidade e à maternidade: filho(a) de Fulano de Tal e Beltrana de Tal. Certamente, toda pessoa tem um pai e uma mãe biológicos. Todavia, foi-se o tempo em que constatação como esta era suficiente para que fossem preenchidos aqueles espaços da certidão de nascimento. Como fazer se existem dois pais ou duas mães?
Outrora, a questão não era de preenchimento, mas de não preenchimento, quando não havia pai registral. Não eram as situações mais confortáveis ser filho de pai desconhecido, nem ser mãe solteira, rótulos tomados de discriminação.
Para alguns, pais de mais; para outros, pais de menos! Modelos de família inconcebíveis se o modelo de família for pautado na união entre um homem e uma mulher. Ocorre que a concepção de família mudou, tanto em termos qualitativos, quanto em termos quantitativos.
A família não é mais fim em si mesma, por isso, advoga-se por sua natureza instrumental. A família é o lugar no qual os seus membros encontram campo para se desenvolverem como pessoas. Nesse sentido, afirma Gustavo Tepedino que:
"a dignidade da pessoa humana, alçada pelo art. 1º, III, da Constituição Federal, a fundamento da República, dá conteúdo à proteção da família atribuída ao Estado pelo art. 226 do mesmo texto maior: é a pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas do direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social".
Com essa mudança qualitativa, ocorre, consequentemente, uma ampliação das formas nas quais a família pode se constituir. O casamento, antes a única formação familiar merecedora de tutela jurídica, passa a ser apenas uma delas.
Assim, outras entidades familiares são reconhecidas como igualmente dignas de proteção do Estado, o que é apenas o primeiro passo em busca de uma família sem um modelo padrão, de uma família plural.
Neste caminho, será abordada a seguir (item 2) a taxatividade ou não das entidades familiares constitucionalizadas. Somente a partir dessa análise será possível verificar uma diversidade de formações sociais em busca de uma proteção especial do Estado, a qual será tratada na seqüência (item 3). Adiante, não se pode esquecer da solidariedade social, princípio norteador da concepção contemporânea de família, por isso, importantíssimo na busca da nova família (item 4).
2. As entidades familiares na Constituição da República: numerus clausus ou numerus apertus.
O art. 226, caput, da Constituição da República prescreve que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado. Mas a que família estaria se referindo o dispositivo constitucional?
Nos seus parágrafos, o art. 226 da Constituição Federal faz menção expressa ao casamento, à união estável entre um homem e uma mulher e à família monoparental. No entanto, as entidades familiares constitucionalizadas não são numerus clausus. Paulo Luiz Netto Lôbo já observara que, diante da realidade social brasileira, existem outras formas de convivência que merecem ser tratadas como família, tais como grupo de irmãos, uniões homossexuais, comunidade afetiva formada com filhos do coração, concluindo que:
"Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta dotada de ductibilidade e adaptabilidade".
De fato, o termo família é utilizado pelo constituinte de forma ampla, devendo a função do instituto ser seu elemento unificador. Ora, se a função da família é a de através de uma vivência conjunta ou de uma comunhão de vida permitir que se desenvolva cada uma das pessoas que a integram, sempre que assim for configurada a convivência, deve receber proteção do Estado enquanto família.
Em outras palavras, afirmar que esta ou aquela forma de convivência constitui uma entidade familiar, significa dizer que como tal, como família, é merecedora de especial proteção do Estado, nos termos do caput do art. 226 da Constituição Federal.
Dessa prometida tutela estatal advém a importância de ter sido reconhecida constitucionalmente a família monoparental, a qual se forma "quando a pessoa considerada (homem ou mulher) encontra-se sem cônjuge ou companheiro e vive com uma ou várias crianças", por motivo de viuvez ou de reprodução humana assistida post mortem etc. Com isto, facilita-se a concessão, por exemplo, de benefícios previdenciários ou estatutários instituídos em prol da família.
Devido à ausência de legislação específica, a inclusão das uniões homossexuais como família alcança enorme relevância, pois, desse modo, muitos direitos destinados às entidades familiares lhes são estendidos. Assim, quanto à competência decidiu-se que "Está firmado em vasta jurisprudência o entendimento acerca da competência das Varas de Família para processar as ações em que se discutem os efeitos jurídicos das uniões formadas por pessoas do mesmo sexo". Quanto à possibilidade de adoção por homossexuais, vale transcrever a seguinte ementa:
"APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME". (SEGREDO DE JUSTIÇA)".
Também se reconheceu o direito à partilha de bens segundo o regime da comunhão parcial de bens em relação homossexual, nos termos seguintes:
"RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO. PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas. (Segredo de Justiça)".
Releva atenção, portanto, as novas entidades familiares que não são constituídas pelo casamento, nem pela união estável entre um homem e uma mulher, nem pelo vínculo sanguíneo entre um dos pais e o filho.
3. Novas entidades familiares.
Guilherme de Oliveira instigou a todos com a análise do que chamou de contrato de gestação no livro intitulado "Mãe há só uma duas!". Afinal, há impossibilidade jurídica em alguém ser filho de duas mães ou de dois pais?
Num modelo tradicional de família, pautado na consangüinidade, só há lugar para um pai e para uma mãe, porque, simplesmente, esta é (ou era) a ordem natural das coisas. Se lhe é perguntado como se constitui uma família perfeita quase que automaticamente vem a visão de uma mulher, um homem e crianças, seus filhos, tal qual a imagem da Sagrada Família: a virgem Maria, José e Jesus Cristo.
Ocorre que este modelo de família não é o único e cada vez mais comum é a família que se constitui com a presença de dois pais ou duas mães, ainda que, considere-se apenas o exercício da função paterna ou materna.
Casais separados ou divorciados podem constituir novas uniões familiares e vir a assumir o papel materno ou paterno dos filhos biológicos do novo par, além de permanecer exercendo o mesmo papel com os seus próprios filhos biológicos. A criança e o adolescente, portanto, podem ter dois pais (pai biológico e padrasto) e duas mães (mãe biológica e madrasta). Pai e padrasto, mãe e madrasta podem exercer conjuntamente a função paterna e materna, sendo isto o que comumente acontece.
A participação que o padrasto ou a madrasta exerce na vida dos filhos do seu consorte pode ser tão expressiva a ponto de a guarda ser deferida a eles, no lugar dos pais biológicos, conforme se extrai das decisões que seguem exemplificativamente:
"Apelação Cível. Guarda de menor. Companheiro da mãe biológica do menor. Causa relativa exclusivamente à obtenção de beneficio previdenciário. Inocorrência. Estudo Social. Comprovação. Procedência do pedido. Recurso provido. O deferimento de pedido de guarda de menor ao companheiro da mãe biológica deste, há de atender o interesse do menor, que deve sempre prevalecer. Não se trata de pedido com fins previdenciários, mas sim de regularização de situação de fato. O apelante responde pelo amparo material do menor desde quando este contava com 3 (três) anos de idade e colabora com efetividade no apoio de ordem moral. Para o exercício da guarda não basta, unicamente, a titularidade do pátrio poder e a condição fática de ter o filho consigo, mas em prover-lhe o necessário suporte material e moral".
"APELAÇÃO CÍVEL. GUARDA DE MENOR. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. INCONFORMISMO. PROVIMENTO DO RECURSO. Há seis anos o enteado vive com sua mãe e o marido dela, seu padrasto, que requer a guarda desse menor. O Relatório Psico-Social firmado por Assistente Social e Psicóloga, ouviu o requerente, o adolescente, a genitora, o genitor, e após o estudo de todas essas preciosas informações, conclui que o deferimento do pedido inicial se harmoniza com os interesses do menor. No mesmo sentido, o pronunciamento do Parquet após a prolação da sentença, sendo que o douto Parecer da Procuradoria-Geral de Justiça preconiza o provimento do apelo, aplaudindo, portanto, a procedência do pedido exordial. Em verdade, reverentia venia, à luz do acervo probatório, da lei que rege a matéria, bem como em razão dos interesses do menor, o recurso merece provido para o efeito de ser acolhida a procedência do petitum. Provimento do recurso"
O padrasto - ou madrasta -, companheiro ou marido da mãe da criança ou adolescente, mesmo sem ter qualquer responsabilidade decorrente de laço consangüíneo, pode assumir espontaneamente a função paterna e, assim, formaliza-la por intermédio do instituto da guarda. Trata-se da sócio-afetividade que repercute na formação da família. Em caso análogo, a companheira do avô da criança obteve a guarda desta e, desse modo, passou a constituir a família juntamente com o menor, como se extrai da ementa a seguir:
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE GUARDA DE MENOR. REQUERIMENTO FORMULADO PELA COMPANHEIRA DO AVÔ MATERNO JÁ FALECIDO. MENOR QUE VIVE COM A REQUERENTE DESDE QUE NASCEU, DEPENDENDO DESTA ECONOMICA E EMOCIONALMENTE. FINS PREVIDENCIÁRIOS E AFETIVOS. Menor sob a guarda de fato da companheira do avô materno falecido, dessa dependente economicamente. Hipótese em que não se vislumbra apenas finalidades previdenciárias, mas amparo integral à menor, provendo-lhe em primeiro plano o aspecto educacional e de saúde. Interesse do menor. Prevalência. Estatuto da Criança e do Adolescente. É dever da sociedade e do poder público proteger e amparar o menor - art. 227 da Constituição Federal. Provimento do recurso.
O STJ aceitou, inclusive, que fosse estabelecido entre um casal homossexual que na falta da mãe, a ex-companheira ficaria com a guarda".
No caso de adoção, a regra é que os laços biológicos se rompem definitivamente, estando previsto no art. 1.626 do Código Civil que a adoção desliga o adotado de qualquer vinculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais. Não obstante isso, o STJ já admitiu que o adotado tem interesse jurídico no conhecimento da sua origem biológica e o Ministro Eduardo Ribeiro apesar de afirmar em seu voto que "não há cogitar de possíveis efeitos do reconhecimento de paternidade em relação à adoção, pois, em verdade, não há efeito algum", também aduziu que não se animaria a excluir por completo a possibilidade de se pedir alimentos, não obstante os termos do art. 41 do ECA, dependendo do caso concreto e imagina: "Suponha-se a hipótese de criança de tenra idade, cujos pais adotivos viessem a falecer ou cair na miséria. Parece-me que ela, que não foi ouvida sobre a adoção, não se poderia impedir de pretender alimentos de seus pais biológicos. É o direito à vida que está aí envolvido".
Com o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana assistida, as relações familiares ficaram ainda mais complexas, pois é possível que o material genético utilizado não seja daquele que é o pai jurídico, ensejando a mesma problemática que a adoção.
Na gestação de substituição existem duas mães: a mãe gestacional e a mãe biológica. A mãe gestacional é a que leva à termo a gravidez, enquanto que a mãe biológica é aquela que se vale da técnica de gestação de substituição para ter um filho biológico. Guilherme de Oliveira, depois de fazer todos se questionarem concluiu que, por enquanto, não é possível emendar esse velho emblema da cultura afetiva e mãe é mesmo só uma. Mas, de fato, há somente um início de discussão.
Resta, ainda, comentar a adoção por família homossexual. Com isto, não se pretende tomar posição a favor ou contra deste tipo de adoção, mas suscitar o debate para um problema ou uma solução, qual seja, a possibilidade de nele constar dois pais ou duas mães. Na Apelação Cível nº 70013801592, o TJRS decidiu por não apontar no registro a condição de pai ou mãe, mas por ressaltar a condição de filho: "Por fim, de louvar a solução encontrada pelo em. magistrado Marcos Danúbio Edon Franco, ao determinar na sentença que no assento de nascimento das crianças conste que são filhas de L.R.M. e Li.M.B.G., sem declinar a condição de pai ou mãe". O princípio maior é o do melhor interesse da criança e do adolescente.
Também a convivência de colaterais constitui entidade familiar merecedora de proteção especial do Estado, como irmãos que vivem juntos, de acordo com o que decidiu o STJ no RESP 159851que "os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza da proteção de impenhorabilidade, prevista na lei 8009/90, não podendo ser penhorado na execução de divida assumida por um deles".
O que se percebe, portanto, é cada vez mais o surgimento de formações sociais com o intuito de formar família, de estabelecer uma comunhão de vida, diversas daquelas entidades familiares constitucionalizadas e que alçam algum tipo de tutela estatal.
4. A caminho de uma solidariedade familiar.
A vigente Constituição Federal destina o Capítulo VII do Titulo VII, que trata da Ordem Social, à família, à criança, ao adolescente e ao idoso. Desse modo, a proteção da família está contextualizada na Constituição no âmbito do social. A família é, de fato, uma organização social.
Se a pessoa é o vértice do ordenamento jurídico brasileiro que tem a dignidade da pessoa humana como princípio basilar, capitulado do art. 1º, III, da Constituição Federal; essa pessoa não é insular porque, precisamente, sua tutela anda ao lado do cuidado com o outro. Por isso, Maria Celina Bodin de Moraes afirma que "A pessoa humana, no que se difere diametralmente da concepção de indivíduo, há de ser apreciada a partir da sua inserção no meio social".
Não é outra a conclusão possível quando foi eleito como um dos objetivos da República no art. 3º, I, da Constituição Federal a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O direito-dever de solidariedade social, na concepção desenvolvida por Maria Celina Bodin de Moraes, "É o conceito dialético de 'reconhecimento' do outro". No âmbito das relações familiares o outro é o marido, a esposa, o companheiro ou companheira, os filhos, enfim, todos que formam uma comunhão de vida.
Válida é a assertiva de Pietro Perlingieri no sentido de que "O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às relações de sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas que se traduzem em uma comunhão de vida". Afinal, está-se diante de uma formação social que deve se conformar com os demais valores constitucionais, sobretudo, o da dignidade da pessoa humana, a fim de que, no seu interior, cada membro possa promover o seu desenvolvimento.
Como afirma Ana Luiza Maia Nevares, "pessoa humana e comunidade familiar não são vistas em oposição, porque se é verdade que a instituição familiar só é protegida em função da pessoa, por outro lado, é também verdade que o indivíduo só será tutelado a ponto de não satisfazer seus egoísmos particulares ou tendências desagregadoras do núcleo familiar". Assim, o comportamento de cada membro familiar também está pautado neste direito-dever de solidariedade social.
Para que a solidariedade assuma esta feição de direito-dever no âmbito familiar é necessária, porém, uma premissa básica: que aquela formação social seja considerada família. É na busca pela assunção dessa responsabilidade que o homem ou a mulher almeja adotar o filho do seu par; o padrasto ou a madrasta requer a guarda o enteado, e, das várias possibilidades que os casos concretos podem produzir, podem surgir novas formas de formação familiar, sendo todas merecedoras de proteção jurídica. Nesse sentido, Pietro Perlingieri afirmou que "Se o dado unificador é a comunhão espiritual e de vida, deve ser evidenciado como ela se manifesta em uma pluralidade de articulações, em relação aos ambientes e ao diverso grau sócio-cultural: da família nuclear sem filhos à grande família. Cada forma familiar tem uma própria relevância jurídica, dentro da comum função de serviço ao desenvolvimento da pessoa".
Com efeito, é para uma maior proteção da pessoa humana que se deve reconhecer como família todas as expressões de comunhão de vida nessa direção, não apenas aquelas expressamente constitucionalizadas. De acordo com Gustavo Tepedino, "À família, no direito positivo brasileiro, é atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importantíssimo papel na promoção da dignidade humana". Desse modo, é esse papel promotor da dignidade humana dos seus membros que confere à família proteção especial, de modo que somente se cumpridora desta função será a família digna de tutela jurídica especial
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Essa função rendeu um esforço doutrinário de equiparar o solteiro à entidade familiar, para fins de aplicação da Lei nº 8.009/90. Na verdade, conforme aduz Anderson Schreiber, "Não se trata mais de proteger a entidade familiar, mas a pessoa, integre ela ou não uma família. Se a proteção ao imóvel tradicionalmente se dizia concedida à célula mater da sociedade (a família), hoje é necessário que esta proteção se atomize, e passe a incidir também sobre aqueles que residem sós", o que está de acordo com a concepção atual de família de formação voltada para a promoção dos seus integrantes. Foi com fundamento na tutela da pessoa que o ERESP 182223, leading case estendeu a proteção prevista na Lei nº 8.009/90 ao solteiro, assim ementado:
"PROCESSUAL - EXECUÇÃO - IMPENHORABILIDADE - IMÓVEL RESIDÊNCIA - DEVEDOR SOLTEIRO E SOLITÁRIO - LEI 8.009/90. - A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. - É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário".
Assim, a tutela da pessoa humana é o principal objetivo constitucional a ser alcançado, seja da pessoa fora do seu grupo familiar, seja no interior da formação familiar. Há que se pensar, portanto, que a família é meio para a promoção da pessoa humana, razão pela qual mesmo aquele que vive sozinho é digno de uma tutela inicialmente destinada à entidade familiar.
5. Para concluir.
Não há uma nova família, mas novas famílias.
A família não se constitui apenas formalmente, com o casamento. Também existem uniões informais. A família não se constitui apenas biologicamente, com as relações de parentesco consangüíneo. O vínculo sócio-afetivo cada vez mais é tido como fonte do parentesco. E, assim, por meio de estruturas várias as pessoas se unem com o fim de constituir família.
É a vontade, a intenção de CONviver como família que une as pessoas nesse tipo de formação social. Aduz Pietro Perlingieri que "O sangue e o afeto são razões autônomas de justificação para o momento constitutivo da família, mas o perfil consensual e a affectio constante e espontânea exercem cada vez mais o papel de denominador comum de qualquer núcleo familiar".
A família é verdadeira expressão da solidariedade social. É o laço mais próximo de reconhecimento ou de cuidado com o outro. É por meio desse cuidado recíproco entre os membros da entidade familiar que a sua função maior é alcançada. Afinal, é para a promoção e desenvolvimento de cada uma das pessoas que formam esse núcleo familiar que a família foi dotada pelo legislador constitucional de especial proteção.
Se para atender a essa função a organização familiar tiver de se estruturar de forma diversa daquelas entidades familiares constitucionalizadas, deve ser digna de igual proteção do Estado. Não é o meio e sim o fim que irá determinar o merecimento de tutela.
Talvez assim, nenhuma criança tenha vergonha de mostrar aos colegas sua certidão de nascimento na qual não consta o nome do pai; nenhuma criança se sinta constrangida em explicar porque na sua certidão de nascimento tem o nome de duas mulheres; toda criança se sinta feliz de ter dois pais, um biológico e um sócio-afetivo; toda família homossexual possa ser tratada realmente como família, além de inúmeras hipóteses que se poderia enumerar a partir da aceitação da pluralidade de núcleos familiares.
É preciso não esquecer que a base é a dignidade da pessoa humana, em nome da qual se deve admitir um sem modelo de entidades familiares, desde que, em qualquer forma que se apresente, a formação familiar esteja pautada à realização da sua precípua função serviente.
Rose Melo Vencelau Meireles é mestre em Direito Civil pela Universidade do Rio de Janeiro (2003), atualmente cursa o Doutorado em Direito Civil na mesma Instituição. Procuradora da Diretoria Jurídica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). Docente da Universidade Cândido Mendes (2001), onde leciona na graduação e pós-graduação em Direito Civil. Docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no curso de pós-graduação lato sensu (2002) em Direito Civil-Constitucional e no curso de aperfeiçoamento em Direito de Família e Sucessões. Docente do MBA (2005) em Direito Civil e Processo Civil, promovido pela Fundação Getúlio Vargas.
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