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Sociedade de Afeto
Sociedade de Afeto
A Família vem sofrendo modificações ao longo dos tempos, reflexos das mudanças de valores da sociedade, que deixou de encará-la como uma instituição reprodutiva e produtiva, e passou a considerá-la sob a ótica de outros princípios: Afetividade, Solidariedade, Liberdade e Relações Flexibilizadas.
Entretanto, em alguns aspectos, a sociedade e, conseqüentemente, os legisladores, os magistrados e os doutrinadores (não todos), ainda permanecem atrelados a conceitos e normas que remontam ao início do século passado.
É o que se pode aferir ao analisar a questão do concubinato, mais precisamente do concubinato adulterino, que ainda hoje se subdivide em: concubinato adulterino de boa-fé (puro) - aquele em que o concubino desconhece a outra relação conjugal do parceiro, reconhecendo-se uma "união estável putativa"; e concubinato adulterino de má-fé (impuro) - aquele em que o concubino tem ciência dessa relação e ao qual não assistiria qualquer direito.
Boa parte da doutrina e da jurisprudência, em que pese a contínua e corriqueira prática do concubinato adulterino impuro, nega efeitos jurídicos a este tipo de união, utilizando como justificativa o Princípio da Monogamia, que regeria nosso sistema, pois, conforme prelecionam, se o Estado o reconhecesse como uma entidade familiar, estaria endossando os relacionamentos sexuais sem a "oficialidade do casamento".
É louvável a intenção de preservação da Família pregada por essa corrente doutrinária e jurisprudencial, entretanto, falível quando colocada em confronto com a realidade: ao se proteger uma abstração jurídica, muitas outras instituições concretas ficam desprotegidas.
Assim, além de não proteger a sociedade, que é sua obrigação, o Estado acaba por negar direitos, contrariando o Princípio basilar da nossa Constituição Federal: a Dignidade da Pessoa Humana.
Como já dito anteriormente, os princípios norteadores da Família contemporânea, que estão acima das legislações ordinárias, mudaram e hoje se valoriza a solidariedade e a afetividade que devem existir entre os membros das diversas modalidades de família existentes.
Portanto, ainda que não estejam tuteladas pelo ordenamento jurídico atual e chanceladas pelo casamento, essas famílias constituídas faticamente (e muitas vezes com mais afetividade e solidariedade que as protegidas pela Lei), devem ter seus direitos assegurados em todos os aspectos.
Como se não bastasse a injustiça revelada nessa exclusão de direitos, há ainda a premiação do adúltero, que se locupleta de sua própria torpeza, ao ficar com os bens adquiridos por ele e pela "concubina", pois, via de regra, ao concubino que supostamente agiu de má-fé, por manter uma união estável com alguém que sabia ser comprometido com outrem, cumpre provar que contribuiu efetivamente para a aquisição dos bens, caso contrário, ficará à míngua.
Na melhor das hipóteses, ou seja, comprovando - se essa participação efetiva, tal relação será tratada como uma "sociedade de fato" (Direito das Obrigações) e não como uma sociedade de afeto (Direito de Família), como realmente é.
Afirma Maria Berenice Dias em um de seus artigos: "O absurdo da decisão preconizada se flagra ante a possibilidade de extraírem-se efeitos jurídicos quando se está na presença do que se chama concubinato puro ou de boa-fé. A situação, no entanto, é absolutamente a mesma: um varão - eis que esta postura é basicamente masculina - entretém vínculo afetivo com duas mulheres. Se aquela que vem a juízo buscar o reconhecimento do vínculo dizer que sabia da condição de casado do parceiro, não lhe é assegurado nenhum direito. É quase como se o juiz respondesse com um agressivo: ‘bem feito!'. Porque sabia do outro relacionamento, não tem qualquer direito. Agora, ainda que a situação seja objetivamente igual (ou seja, mantém o varão duas uniões), mas alegar a mulher que não sabia da vida dupla do parceiro, considerando sua boa-fé, lhe são assegurados todos os direitos, reconhecendo-se o que se chama de união estável putativa".(sic)
Tal entendimento produz resultados diametralmente opostos aos que intenciona preservar: incentiva a mentira e induz o adultério. Pois, se para garantir direitos basta alegar o desconhecimento da existência da outra relação conjugal, quem dirá a verdade? E se nenhum ônus acarretar ao adúltero a manutenção dos relacionamentos paralelos, por que não cometer o adultério?
Aqueles que pretendem salvaguardar o Princípio da Monogamia, na verdade, acabam por corroborar com a "poligamia".
Se todos os requisitos legais e objetivos para a caracterização da união estável estiverem presentes, não se pode julgar, pura e simplesmente, que não houve a intenção de constituir família (requisito subjetivo) nos casos de concubinato adulterino impuro, e assim negar a existência jurídica dessa relação afetiva e os direitos a ela garantidos.
Não se pode "fazer de conta" que ela nunca existiu.
E mesmo que essa postura atingisse o resultado esperado, o de coibir as relações extraconjugais, ainda assim, seriam injustificáveis os meios utilizados, pois que injustos.
Portanto, o que se deve priorizar e preservar é a afetividade existente nessas relações. É preciso coragem para romper com os paradigmas preconceituosos e reacionários e fazer Justiça verdadeiramente, o que consiste em dar a cada um o que é seu, não lesar ninguém e fazer o Bem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS, Maria Berenice. Adultério, Bigamia e União Estável: Realidade e Responsabilidade. Disponível em: < http://www.mariaberenicedias.com.br/site/frames.php?idioma=pt>. Acesso em: ago. 2007.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A Ameaça das Concubinas. Belo Horizonte, maio 1997. Disponível em: < http://www.rodrigodacunha.com.br/artigos.html>. Acesso em: ago. 2007.
Juliana Gomes de Carvalho é Advogada e Coordenadora da Central de Conciliação das Varas de Família da Comarca de Contagem - MG; pós-graduada em Direito Público pela Universidade de Taubaté - SP).
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