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Um cadastro para os devedores de pensão alimentícia
UM CADASTRO PARA OS DEVEDORES DE PENSÃO ALIMENTÍCIA
1 - Introdução
Um dos clássicos da moderna ciência jurídica foi publicado em 1964 pelo professor francês René David - "Les Grands Systèmes du Droit Contemporains" - um compêndio de Direito Comparado traduzido e lançado em português em 1986, sob o título "Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo" (Martins Fontes Editora).
Já em seu prefácio, o professor David, em plena guerra fria, muito antes, portanto, da popularização dos computadores pessoais, da Internet e seus impactos nas comunicações mundiais, já proclamava: A formação tradicional, nas faculdades de Direito dos diferentes Países, exige atualmente uma complementação. A interdependência das nações e a solidariedade que envolve todo o gênero humano são fatos evidentes no mundo contemporâneo. O mundo tornou-se um só. Não é mais possível isolarmo-nos dos homens que vivem em outros Estados e em outras partes do globo. Suas maneiras de ver e de agir, sua opulência ou miséria, condicionam nosso destino. O mundo atual impõe, tanto aos políticos quanto aos economistas e aos juristas, uma nova visão dos problemas que lhes dizem respeito. Independentemente de qualquer preocupação acadêmica, as necessidades práticas exigem o conhecimento dos direitos estrangeiros. A movimentação das pessoas, das mercadorias, dos capitais tende, cada vez mais, a ignorar as fronteiras dos Estados. (op.cit. Prefácio)
Nos dias atuais, especialmente com a rapidez das comunicações, os fatos relevantes ocorridos em qualquer parte do mundo são rapidamente traduzidos e noticiados para o mundo todo. Isto, obviamente, atinge também o Direito mundial. De fato, quaisquer alterações legislativas, novidades jurisprudenciais, bem como novas teses surgidas nos recônditos mais escondidos do Globo são prontamente coletadas, sistematizadas e comentadas e/ou criticadas por sítios especializados, transformando-se em dados disponíveis em escala mundial, cuja relevância será julgada posteriormente pelos interessados no assunto, seja ele qual for.
Assim, hoje é virtualmente impossível considerarmos satisfatório um artigo jurídico sem que este contenha ao menos uma menção a outro trabalho, lei, julgado ou tese oriunda de um sistema jurídico estrangeiro. Já aprendemos isto, na verdade, desde os bancos escolares, com grandes mestres tais como o então Professor, hoje Ministro do STF, Gilmar Mendes, que não admitia receber um trabalho que não contivesse, ao menos, uma menção à doutrina estrangeira.
O cotejo entre dois ou mais sistemas jurídicos, ou entre institutos jurídicos semelhantes total ou parcialmente em ordenamentos diversos, recebeu o nome de "Droit Comparé" nos países francófonos, "Comparative Law" entre os ingleses, "Diritto Comparato" para os italianos, "Derecho Comparado" em espanhol, "Rechtsvergleichung" no idioma alemão e, para nós "Direito Comparado", cujas vantagens foram colocadas pelo mestre francês supramencionado: O Direito Comparado é útil nas investigações históricas ou filosóficas referentes ao direito; é útil para conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional; é, finalmente, útil para compreender os povos estrangeiros e estabelecer um melhor regime para as relações da vida internacional.
Não podemos desconsiderar, portanto, o que esteja acontecendo nos ordenamentos legais de outros países. As contribuições do Direito Comparado para a evolução do Direito de Família brasileiro são incontáveis, até por sermos inequivocamente um País "jovem", de construção legislativa considerada "recente" se comparada ao grande sistema Romano-Germânico, criado nos séculos XII e XIII, muito antes, portanto, do nosso "Descobrimento".
Somente para ficarmos em alguns exemplos ocorridos neste século, é impossível não se falar na influência do Direito Comparado quando se verifica a evolução dos Direitos das mulheres e das crianças e adolescentes, a adoção do Divórcio no Brasil, as leis sobre União Estável, sobre Investigação de Paternidade, dentre tantas outras.
E há de continuar sendo assim. Como dissemos anteriormente, as discussões partem de qualquer rincão deste mundo e chegam a qualquer outro lugar com uma rapidez incrível, provocando novas discussões, instigando debates, acendendo ou reacendendo antigas porfias jurídicas, dando azo à petições que ensejam decisões monocráticas, posteriormente confirmadas ou rechaçadas pelas Cortes Superiores.
O presente estudo, cujo intróito já vai longe, tem por objeto trazer algumas considerações sobre o "Registro de Devedores Alimentares Morosos", adotado há algum tempo no Direito Argentino e Peruano e que já inspira o legislador brasileiro a buscar solução semelhante.
2 - O Cadastro Argentino de Devedores Alimentares Morosos.
Processos envolvendo "Execução de Pensão Alimentícia" são corriqueiros no Direito de Família brasileiro, sendo conhecido até pelo cidadão leigo em assuntos jurídicos, o teórico destino que possui o mau pagador de alimentos: a cadeia.
Dissemos teórico, pois, segundo o Professor ROLF MADALENO em recente crítica: Processos lentos e insolúveis têm desacreditado leis e desmentido advogados, juízes e promotores, pois a estes que operam o direito, tem sido delegado o inglorioso esforço de buscar amenizar as angústias e de aparar os deletérios efeitos psicológicos causados sobre o credor de alimentos sempre quando constata e assimila que a realidade das demandas de execução alimentícia, no atual estágio processual em que se apresentam, mais tem servido ao renitente devedor, do que ao desesperado credor. (in. "Novas Perspectivas no Direito de Família" - Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2.000, pág.64).
Assim, o autor acima citado aduz que o processo de execução de alimentos é verdadeiro "Calvário" para o credor que vai assistindo pouco a pouco sua economia doméstica soçobrar ante um processo que somente prevê medidas ágeis na fria letra da Lei.
No Direito Civil argentino foi criada uma medida cuja exposição achamos relevante, o Registro de Devedores Alimentares Morosos (Registro de Deudores Alimentares Morosos), medida menos grave do que prisões e penhoras, mas que pode se mostrar extremamente eficaz, por limitar o campo de atuação do devedor em vários aspectos da vida civil.
Este Registro foi implementado a partir do ano 2.000 na cidade autônoma de Buenos Aires, através da Lei 269 e em outras Províncias, como Chaco (Ley 4.767/00), Córdoba (Ley 8892/00), Mendoza (Ley 6879/01), dentre outras.
Com o objetivo de mencionar as principais características do Instituto, tomamos por base a legislação da cidade de Buenos Aires, uma vez que são todas muito semelhantes.
Os funcionários do Registro devem listar todos aqueles devedores de alimentos (homens ou mulheres) que deixem de pagar (total ou parcialmente) três cotas alimentares consecutivas, ou cinco alternadas, sejam de alimentos provisórios ou definitivos.
Esta lista é pública e fica à disposição de qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, para cópia gratuita, mediante simples requerimento.
Tanto a inscrição, quanto a baixa no Registro dependem de ordem judicial, de ofício ou a requerimento da parte interessada.
As instituições ou organismos públicos da cidade não podem abrir contas correntes, conceder cartões de crédito, outorgar quaisquer habilitações, concessões, licenças ou permissões, a quem esteja incluído no Registro de Devedores Morosos. Esta pessoa também não pode ser designada para exercer qualquer função pública, até que demonstre não estar mais inclusa no Registro.
Isto significa que o devedor alimentar inscrito no Registro não pode nem obter licença para dirigir. Há uma exceção na Lei de Buenos Aires quanto à chamada "Licencia de Condutor para Trabajar", que pode ser outorgada provisoriamente ao devedor alimentar moroso apenas uma única vez e com prazo para caducar de apenas 45 dias.
O Certificado de Baixa também é exigido para outorga ou renovação de crédito no Banco da Cidade de Buenos Aires. O Banco, aliás, pode ser autorizado pelo Juiz a reter a importância na conta do devedor e a seguir depositá-la em conta para o pagamento da divida alimentar.
Quando a exploração de um negócio, atividade comercial ou indústria mudar de titularidade, deve ser requerido ao Registro de Devedores Alimentares a certificação respectiva do alienante e do adquirente. Comprovada a existência de dívida de alimentos, a transferência não será ultimada até que a situação seja regularizada.
Todos os candidatos a cargos eletivos também devem demonstrar que não estão inscritos no Registro, sob pena de não terem sua habilitação concedida pelo Tribunal Eleitoral.
O Conselho da Magistratura deverá requerer ao Registro de Devedores Morosos a certidão negativa ou de baixa com relação a todos os candidatos à Magistratura ou a exercer qualquer função no Poder Judiciário.Caso se comprove a existência de dívida alimentar, o postulante não poderá participar de concurso enquanto não se receba a comunicação de baixa. Similar requisito se exigirá dos que postulam integrar o Superior Tribunal de Justiça, seja como Magistrado ou funcionário.
Segundo entrevista concedida pelo Diretor do Órgão em Buenos Aires - Alejandro Rabinovich - em Julho de 2004 (disponível no sítio www.barriodeflores.com.ar), cerca de 1.150 pessoas já foram registradas como devedoras alimentares morosas, havendo uma cifra de 87 baixas ou levantamentos. A lista conta com apenas 09 mulheres, que, na realidade são avós que prestam alimentos a seus netos, por falta de pagamento dos pais.
O Diretor ainda destacava em sua entrevista a existência de um nome famoso na lista - Diego Armando Maradona - por conta dos alimentos que deve a seu filho italiano.
Os levantamentos ou baixas, embora a princípio estejam em cifras numéricas tímidas, vêm aumentando ano a ano, segundo consta da entrevista. Em 2001 foram 12, em 2002 o número aumentou para 19, em 2003 chegaram a 31 e só no primeiro semestre de 2004 já eram 22, até onde se pode levantar. Acredita-se que em anos eleitorias, por exemplo, este número possa crescer significativamente.
3 - Uma Tentativa em Plagas Brasileiras.
A iniciativa ocorrida na Argentina, que gerou legislação semelhante em terras peruanas, acabou por inspirar também o legislador brasileiro.
De fato, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1585/2007, de autoria do Deputado Regis de Oliveira (PSC/SP), buscando a criação do CPCA, ou "Cadastro de Proteção ao Credor de Alimentos", no âmbito do Ministério da Justiça, no qual, segundo o texto do PL, seria inscrito o nome do devedor de alimentos em atraso com suas obrigações, a partir de três prestações sucessivas ou não estabelecidas em liminar, sentença ou homologação de acordo judicial ou extrajudicial.
Uma vez inscrito e enquanto não cancelado, o credor ficaria impedido de prestar "qualquer concurso público ou particular de licitações promovidas pela Administração Pública e Indireta, e bem assim, de contratar com o Poder Público ou dele receber qualquer tipo de benefício".
O Projeto foi encaminhado à Comissão de Seguridade Social e Família, onde recebeu, no último dia 16 de Outubro, parecer pela rejeição, por parte do Deputado Roberto Britto (PP-BA).
Segundo Britto, já existem "meios bastantes" para obrigar o credor ao pagamento, sem que haja a necessidade de se criar um Cadastro. Ademais, ainda de conformidade com o Parecer, a criação de tal Cadastro no âmbito de um Órgão do Poder Executivo, invadiria a órbita de competência constitucional de outro Poder, ferindo a independência harmônica prevista em nossa Carta Magna.
O projeto encontra-se ainda em trâmite, sendo possível acompanhar seu andamento pelo site da Câmara dos Deputados.
4 - Conclusão.
Ainda que esta primeira iniciativa possa ser considerada um tanto tímida, quando cotejamos os efeitos sofridos para o credor inscrito na legislação argentina, e, efetivamente seja necessária a superação de alguns questionamentos quanto à forma como seria criado tal Cadastro, bem como a qual órgão ou Poder ficaria subordinado, não podemos concordar com o ilustre Deputado Relator quando afirma que já existem "meios bastantes" para compelir o credor ao pagamento da prestação.
De fato, o trâmite atual dos processos mostra que a opinião do professor Rolf Madaleno é a mais acertada. Embora a lei em vigor ameace o mau pagador até mesmo com a restrição de sua liberdade, muitas vezes este faz uso de uma série de subterfúgios e alça êxito em retardar ao máximo o adimplemento de sua obrigação alimentar, prejudicando, por exemplo, a saúde, a educação e a alimentação de seus filhos, apenas para citar a hipótese mais comum de prestação alimentícia.
Assim, concordamos com a idéia de que nunca será excessiva a criação de mais um instrumento a pressionar o pagador moroso de alimentos. Ademais, defendemos mesmo a ampliação dos efeitos do registro, seguindo os bons exemplos da legislação argentina.
Cristian Fetter Mold é Advogado no Distrito Federal (desde 1995), Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM e da Seccional do Distrito Federal (desde 1999), Professor de Direito Civil da Universidade Planalto do Distrito Federal - UNIPLAN (Sociedade Objetivo de Ensino Superior) (desde 2002), Autor de diversos artigos na área jurídica. Co-autor dos livros "Família e Jurisdição" - Del Rey Editora (2005) e "Família e Jurisdição II" - Del Rey Editora (2007).
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM