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Guardião da Constituição e da Justiça
Ano próximo se completam vinte anos do exercício pelo Supremo Tribunal Federal da judicatura máxima da nação a partir de 1988, e tem sido usual, em tempos atuais, assacar censura ao posto assumido pelo Supremo na função que tem desempenhado. Algumas categorias de críticas conjunturais ao desempenho do STF parecem-nos insustentáveis. Uma delas é oriunda do proceder supranatural que chama para si o mister de separar o bem do mal, e que supõe ter decifrado o código da vida para julgar biografias.
Além disso, volta e meia, o Supremo tem sido adjetivado equivocadamente de corte congressual. Em nosso ver, não se pode acusar o STF de intentar, com notável esforço, cumprir a Constituição, e fazê-lo nos limites daquela.
Supor que a abertura de algumas normas constitucionais, em especial dos direitos fundamentais, deva gerar paradoxal clausura da atuação do STF, ao argumento de usurpação de competência legislativa, é retornar, ainda que sob discurso com suporte verniz de refinamento, ao juiz boca da lei. Ignora-se por tal via o verdadeiro sentido do sistema de freios e contrapesos, que às vezes pode impor, diante do pleno e democrático exercício da função legislativa, um proceder refreado, e ora pode mesmo exigir, na disfunção legislativa, um proceder promocional.
É preciso ter em mente, por exemplo, que não derivam originariamente dos julgamentos judiciais o eventual destempero tributário nem as oscilações da pendular organização jurídica da vida político-partidária.
A Constituição de 1988 e os valores ali consagrados inspiraram a edição de leis esparsas que vieram regulamentar seu conteúdo. Novo foi o cenário jurídico-político: da Carta Magna do Estado passamos à Constituição da cidadania e da sociedade. Sem déficit democrático, atua desse modo, pois, o STF no perímetro constitucional. Aqui não se tenha dúvida: os textos normativos devem mesmo atuar como baliza a essa força estatal. Nem mais, nem menos.
Para analisar essas duas últimas décadas é preciso ir além de mera vitrine, isto é, mais à frente da opacidade que pode se apresentar ao olhar mediano, captar a alma de feitos complexos e aparentemente dissonantes. Requer olhar sereno que não pode confundir com suposto improviso jam session as partituras comprometidas com a estabilidade democrática e a realização da cidadania, projeto constituinte de 1988 ainda vivo e norte da Corte Suprema.
O Supremo Tribunal Federal da era da Constituição cidadã vem paulatinamente, à luz do contexto brasileiro, assumindo o seu papel.
Evidente que pessoas e instituições não são imunes à crítica fundamentada, e devem bem receber o debate, sem recusa ao diálogo. Nesse sentido, à guisa de exemplo, a opção feita no pacto constitucional de redemocratização do país deixou o STF numa espécie de sonoridade sem vibrato, sob uma ambivalência de instância tanto última e extraordinária dos feitos comuns, quanto originária e própria de temas de índole constitucional. Impende avançar mais.
Mecanismos como exigência da repercussão geral, súmulas vinculantes, reclamação, controle difuso da constitucionalidade e a súmula impeditiva de recursos, recomendam maior conhecimento, debate e efetividade no sistema.
Deve arrojar-se, ainda mais, no campo da política criminal numa perspectiva aguçada por um projeto democrático sensibilizado contra o flagelo social produzido pelo sistema penal. Sem embargo, ainda que haja imperfeições a corrigir, a preservação dos fundamentos institucionais do Estado Democrático de Direito é imprescindível, quer nos poderes constituídos quer nas funções exercidas, nesse plano, pela sociedade, imprensa e entidades, com realce para a sobranceira Ordem dos Advogados do Brasil.
Contudo, não se pode sucumbir aos populismos e democratismos de ocasião. O acesso à Justiça não se fará destruindo as instituições democráticas.
É claro que há muito por fazer. O Direito e a Justiça não podem, nem devem, fechar os olhos para a realidade e para a res publica no Brasil. Esse mal-estar deve servir de impulso à atuação do espaço estatal. É o caso do Supremo Tribunal Federal, conforme consta no art. 102 da Constituição Federal.
Esse layout de tribunal da Constituição, em que pese as importantes raízes romano-germânicas, está assentado na experiência do sistema "common law". Na tradição anglo-saxônica se tem presente que a Suprema Corte faz emergir a Constituição do texto constitucional expresso ou positivado, dando-lhe densidade à luz dos casos concretos.
Defender o STF de hoje é sustentar a Constituição, e acima de tudo, amparar o sentido de justiça e as instituições do Estado Democrático de Direito.
Luiz Edson Fachin é diretor do IBDFAM Regional Sul, advogado e professor de Direito da UFPR e da PUC/PR.
Publicado originalmente na Gazeta do Povo em 18/12/2007
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