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A diabólica lei
Recentemente tivemos notícia que um Juiz de Direito do Estado de Minas Gerais fez declarações estarrecedoras sobre a Lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha ao afastar sua aplicação, por considerá-la um conjunto de regras diabólicas. Declarou o magistrado que as mulheres são responsáveis por todo mal que assola o mundo, reportando-se ao Gênesis. Na verdade, a Lei 11.340/06 não encerra qualquer inconstitucionalidade ou representa ofensa ao princípio da isonomia ou da igualdade material.
De fato, apesar da afirmação constitucional da igualdade entre os seres humanos, sabemos que a sua realização, na prática, exige a fixação de tratamento desigual. É assim em relação à raça/etnia, sexo, idade, classe social e à deficiência física. As mulheres historicamente sempre foram mantidas em posição inferior ao homem. A Lei 11.340/06 constitui uma ação afirmativa ou discriminação positiva que visa equilibrar as relações assimétricas entre os sexos. Visa assegurar que, no mundo dos fatos, as mulheres tenham sua dignidade e integridade física, moral e psicológica resguardadas da violência de gênero. É uma lei que protege os direitos das mulheres, historicamente violados, por agressões de seus companheiros, maridos, namorados ou familiares. Que direitos são esses? O direito de ser mulher. O direito a uma vida livre, justa e sem violência. O direito de dizer não a um assédio, o direito de dizer não a uma relação sexual não desejada, o direito de ser feliz, de se separar, o direito de ser ou não mãe, o direito de trabalhar ou estudar, o direito à liberdade que, muitas vezes, são violentamente negados.
Diabólica é história de violência e discriminação contra a mulher. É a estatística mundial, segundo a qual uma a cada três mulheres no mundo é vítima de alguma espécie de violência e, no Brasil, uma mulher a cada 15 segundos sofre violência. Diabólica é a inquisição da igreja que, durante a Idade Média, queimou vivas em um único dia, 3.000 mil mulheres, acusadas de bruxaria porque adquiriram conhecimentos da medicina, faziam partos ou curavam as pessoas. Diabólica é a tese da legítima defesa da honra responsável por inocentar homens que alegaram terem matado suas companheiras, por ciúmes ou pasmem, por amor, enquanto a sociedade não só, aceita, como estimula a infidelidade do homem. Diabólica é a cultura que trata a mulher como objeto de desejo e vende sua imagem associada à cerveja. Categoricamente, diabólico é quem finge não ver ou ignorar essa realidade. A Lei Maria da Penha é tão inconstitucional quanto é o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Código do Consumidor e a CLT (leis trabalhistas). De fato, nós mulheres não comemoramos a Lei 11.340/06, pelo contrário, lamentamos o fato de ainda precisarmos dela, para proteger as mulheres que encontram em seus lares e nos seus amantes ou parentes, o maior risco de agressão, a maior ameaça de morte. Ao inverso dos homens, as mulheres sofrem mais com a violência doméstica e familiar do que com a violência urbana. Estatisticamente, é mais fácil uma mulher ser assassinada ou agredida pelo marido do que por um desconhecido. A mão que afaga é a mesma que bate, a boca que beija é a mesma que ofende e humilha. E é por isso que afirmar a necessidade de uma lei que proteja os direitos humanos das mulheres é ao mesmo tempo e infelizmente afirmar que sua condição social é ainda de discriminação, preconceito, submissão e dominação. Diabólica é a cultura machista que trata homens e mulheres de forma desigual, sem respeitar as diferenças. Somos diferentes, isso é fato. Mas, não implica isso dizer que somos melhores ou piores. A diferença faz par com a não semelhança e não com a desigualdade. Se for diabólico punir os agressores, coibir e erradicar a violência de gênero contra a mulher, que seja bem vinda, a "diabólica" Lei Maria da Penha e que seja declarada inconstitucional a desigualdade, a ignorância, a falta de cultura, o preconceito, a discriminação e a incompetência dos que lhe negam aplicação
Ana Cristina Barreto é defensora pública e coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Ceará
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