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Parto Anônimo — uma janela para a vida
Vitória, deveria ser o nome das crianças recém-nascidas sobreviventes do abandono materno. Uma foi encontrada em um ribeirão-esgoto em Belo Horizonte e a outra, três dias depois, em uma lata de lixo, na região metropolitana em São Paulo. Histórias trágicas, semelhantes ao bebê da Pampulha do ano passado, e de muitas outras que não tiveram visibilidade social. O destino e a dor de centenas, talvez milhares de bebês, não saíram no jornal. As razões que levam uma mãe a praticar ato de tamanha crueldade são injustificáveis. E, para quem não tem a "lei interna", aí deve entrar o Direito, para coibir, colocar limites em quem não o tem. Por mais que este ato possa ser uma insanidade, a ele deve corresponder uma sanção. Esta é a função e razão do Direito: uma sofisticada técnica de controle das pulsões.
A historia de crianças abandonadas pela mãe, pelo pai e pelo próprio Estado sempre existiram. Mesmo que o Estado deixe de se omitir em suas políticas públicas de atenção às famílias e planejamento familiar, diminuindo drasticamente o índice de crianças e adolescentes abandonados, ainda assim, continuaria tendo atos de insanidade e desrespeito à vida. É que eles são também da ordem do particular e de uma moral sexual e do desamparo estrutural do ser humano. Se voltarmos alguns séculos atrás, veremos os registros das conhecidas "rodas dos abandonados". Por razões morais, sociais ou econômicas as mulheres deixavam seus filhos em uma portinhola de um convento, ou igreja preservando sua identidade e avisavam a instituição através de um sino ou campainha.
Apesar da grande variedade de contraceptivos e até mesmo da legalização do aborto em alguns países, os filhos não planejados e não desejados continuam nascendo, e sendo um problema para as sociedades. Enquanto houver desejo sobre a face da terra eles continuarão nascendo. Em alguns países, como Áustria, França, Itália, Luxemburgo, Bélgica, e em 28 Estados dos EUA, dentre outros, criou-se um mecanismo legislativo, que recebeu o nome de "Parto Anônimo". Esses países oferecem alternativas às mães que não querem abortar ou abandonar clandestinamente seu filho, como tem acontecido freqüentemente no Brasil. A lei do Parto Anônimo consiste em dar assistência médica à gestante e quando a criança nasce ela é "depositada" anonimamente em um hospital, preservando a identidade da mãe e isentando-a de qualquer responsabilidade civil ou criminal. Depois a criança é entregue, também anonimamente, para adoção. Ela não chega a ser registrada em nome da genitora e, portando, não há que se falar em destituição do poder familiar, como normalmente é feito nos processos de adoção. Um dos argumentos contrários a esta lei é que a criança adotada fica sem o direito de saber a sua origem genética, como já acontece com os filhos nascidos de inseminação artificial heteróloga, cujo banco de sêmen preserva a identidade do doador.
A corte européia de Direitos Humanos, em 2003 confirmou a eficácia da lei do Parto Anônimo na França, que vigora desde 1993. Na Itália, desde 1997. Na Alemanha, por duas vezes, o parlamento adiou a discussão para aprovação desta lei. Por outro lado, em Hamburgo, em 1999, foi criada a "portinhola para o bebê" ou "janela de Moisés", onde mantenedores ligados às igrejas garantem uma espécie de guichê para que a mãe possa depositar seu filho anonimamente, e sem a possibilidade de ser identificada. Cada uma dessas "janelas" é equipada com bercinhos aquecidos, e coloca à disposição das mães materiais informativos, em vários idiomas, sobre entidades em que ela pode buscar ajuda, inclusive psicológica. No Japão, embora não tenha lei especifica sobre a questão, foi anunciado em 2007 a construção de um hospital com essas "janelas", assim como já existem em outros países, com alto índice de abandono de crianças, como Índia, Paquistão, África do Sul, Hungria, dentre outros.
No Brasil, desde janeiro de 1996 vigora a lei do planejamento familiar (lei nº 9263), cuja intenção é dar atendimento global e integral à saúde da família. Ela não é colocada em prática pelo próprio governo. Nela, ou mesmo em outra lei específica, não há previsão ou apoio para o parto anônimo. Na prática, as mulheres continuam abortando clandestinamente e se as crianças indesejadas chegam a nascer, são abandonadas de variadas formas. Algumas vão para o esgoto ou a lata de lixo como um objeto descartável qualquer, outras são "toleradas", e são abandonadas mais tardiamente, engrossando a estatística dos meninos de rua e na rua.
O ato de desumanidade e a forma trágica de abandonar crianças fizeram com que alguns países encontrassem, através de regras jurídicas, uma solução, não para o abandono, mas para forma trágica deste abandono. Os países que ainda não aprovaram a lei do "Parto Anônimo", têm criado a alternativa da "janela de Moisés". Na verdade, é uma forma moderna das "rodas dos abandonados" tão praticada na idade média. No Brasil, um dos países com mais alto índice de abandono infantil, deveria incorporar em seu sistema jurídico a lei do Parto Anônimo. Se esta lei já vigorasse por aqui, certamente, não veríamos mais estampados em jornais as manchetes com tamanho conteúdo trágico.
*Rodrigo da Cunha Pereira é presidente do IBDFAM, Doutor em Direito Civil (UFPR), Advogado e Professor da PUC/MG
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