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Estatuto das Famílias
Começou a tramitar no Congresso Nacional em 25/10/2007 o PL nº 2285/07 de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA), que propõe a revisão e uma grande reforma em todo o sistema jurídico brasileiro sobre a família. Este Projeto de Lei é produto da reflexão de dez anos de existência do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, que veio instalar novos paradigmas jurídicos para a organização das famílias. Ele foi pensado escrito e formatado por uma comunidade jurídica, de quase quatro mil associados, entre juristas, advogados, magistrados, membros do Ministério Público, professores de Direito, psicólogos, psicanalistas e assistentes sociais. O PL representa o pensamento mais legítimo e contemporâneo do Direito de Família. Em sua essência ele valoriza o sujeito e não o objeto, isto é, a instituição.
É um projeto revolucionário. Certamente o que está ali expressado não é unanimidade, mas representa e traduz o pensamento não apenas de uma comunidade jurídica, mas principalmente da realidade brasileira atual. Revoluções do século XXI se fazem através das idéias. Este PL as expressa estas novas idéias e costumes.
Desde a Constituição da República de 1988, as regras jurídicas (leis) infraconstitucionais ficaram desatualizadas. O Código Civil em vigor, embora aprovado em 2002, foi elaborado na década de sessenta. O livro da família já nasceu velho e traduz concepções morais completamente ultrapassadas. A vida mudou, a realidade sócio-econômica transformou valores e concepções, mas a realidade jurídica permaneceu atrelada a um passado que traduzia apenas concepções da família patrimonializada hierarquizada e patriarcal. O desejo e a identidade das mulheres continuavam sendo desrespeitados. Por exemplo, a mulher perde sua identidade, isto é, adquire uma nova ao adotar o sobrenome do marido. Apesar do costume e da cultura da mulher utilizar o sobrenome do marido, sabemos hoje que para um casamento dar certo é preciso que os cônjuges não misturem suas identidades e sim, as preserve.
O Estatuto das Famílias certamente encontrará resistências de alguns parlamentares. Ele faz alterações profundas, na estrutura e no sistema jurídico. É um Estatuto que inclui e legitima todas as formas de famílias conjugais e parentais. Dentre as famílias conjugais estão aquelas constituídas pelo casamento, união estável entre homens e mulheres, e também as homoafetivas, expressão cunhada pelo IBDFAM. Há lugar e regulamentação para todas, das tradicionais às alternativas. Afinal, Direito é também um instrumento ideológico que vai incluindo ou excluindo pessoas ou categorias do laço social, na medida em que legitima ou ilegítima determinados tipos de família. A razão destas exclusões ou ilegitimidades são puramente de ordem moral. Em nome desta moral sexual é que a história do Direito de Família está recheada de injustiças e de exclusões.
A família parental também se transformou. Os laços de parentesco já não se sustentam mais apenas pelo vínculo biológico. O Direito já aprendeu, e a jurisprudência já vinha traduzindo, que a paternidade e a maternidade são funções exercidas e isto fez surgir uma nova categoria: parentalidade socioafetiva. Alguém que é criado como filho por um longo período, é também filho legítimo, como são todos os filhos, independente de sua origem. Aliás, não há mais filhos ilegítimos.
Nas separações de casais não haverá mais brigas sustentadas pelo Estado-Juiz. Com o fim da culpa na dissolução do casamento, esvazia-se os longos e tenebrosos processos judiciais de separação. Não cabe mais ficar procurando um culpado e tecendo histórias de degradação do outro, já que não existe, juridicamente um culpado. Casamento acaba porque acaba. O amor acaba. É muito mais fácil achar que o outro é culpado pois assim o sujeito não se responsabiliza pelos seus atos. O Estatuto, propõe substituir culpa por responsabilidade e assim, os filhos podem até deixar de ser moeda de troca do fim da conjugalidade. O princípio da igualdade parental induz ao compartilhamento da guarda de filhos, e a compreensão de que os filhos não precisam divorciar de seus pais, pois a separação é apenas do casal. A família não se dissolve nunca, o que pode acabar é a conjugalidade.
As mudanças propostas estão também no plano da prática do Direito, isto é, no processo judicial. É inconcebível por exemplo, fazer uma cobrança de pensão alimentícia da mesma forma e com a mesma lentidão que se cobra um cheque ou uma Nota Promissória. A fome não espera. A cobrança do cumprimento da obrigação alimentar estará facilitada e agilizada, sem prejuízo da segurança das relações jurídicas. Vitória para as crianças e adolescentes e para a parte economicamente mais fraca que naturalmente é prejudicada pela caótica e melancólica morosidade judicial, que torna tais cobranças de alimentos um verdadeiro calvário para quem precisa desse dinheiro para sobreviver.
Casamento, uniões estáveis, famílias recompostas, monoparentais, nucleares, binucleares, homoafetivas, família geradas através de processo artificiais... Estes são alguns dos diversos arranjos familiares do século XXI, que compõem a nova realidade, cujo ordenamento jurídico atual não traduz essa realidade. A família não está em desordem. Ela foi, é, e continuará sendo o núcleo básico, essencial e estruturante do sujeito. O Estatuto das Famílias pretende regulamentar e legitimar todas as formas de famílias. Ele certamente trará incômodo e talvez até arrepios, mas não poderia deixar de ser a mais autêntica tradução da realidade. O PL traz consigo, em sua essência, o valor jurídico norteador de todas as relações: o afeto.
*Rodrigo da Cunha Pereira, 49, Doutor em Direito Civil (UFPR), Advogado, Professor da PUC/MG e Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM
Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 22/11/2007.
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