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Dolarização do afeto
Afeiçoar-se um indivíduo a outro é algo semelhante a ajustar-se um com o outro. A afeição tem similitude com o contrato. Daí, não raro, serem confundidos, revelando uma exacerbada tendência à patrimonialização contratual do afeto. Mas não passa de distorção ideológica a redução do afeto ao contrato para retirar daí e impor às "partes contratantes" obrigações patrimoniais, cujos efeitos servem, normalmente, à mera vingança.
Como o casamento, a afetividade constitui uma liberdade individual e não uma obrigação. Ninguém é obrigado a amar. O casamento nasce e vive de um afeto superior: o amor. Finda com ele. Por isso, já nasce morto, quando nasce sem afeto: apenas por interesse. Mas, em momento algum, gera a obrigação de contato sexual, cuja recusa apenas denuncia a inexistência de afeição. É violência enorme — se não estupro — obrigar alguém a manter contato sexual contra sua vontade, seja com quem for, seja em que relacionamento for.
O estado de afeição — o afeto — manifesta-se nas mais diversas relações sociais, mas sobretudo nas de família. A estas, por isso, o atual Direito da Família define pelo afeto, que é sua causa verdadeira. Nelas, o afeto gera uma afinidade maior do que nas demais, o que leva as pessoas a conjugar suas vidas com mais intimidade, até quanto aos meios de subsistência para atingir os fins de existência. Nessa conjunção, como noutras relações sociais, podem ocorrer condições patrimoniais, compondo relações acessórias com a relação principal: a de afeto, que lhes serve de base. Mas o próprio afeto em si não pode ser reduzido a patrimônio de um ou de outro, econômica ou moralmente, de modo tal, que da sua deterioração resulte a obrigação de indenizar o "prejudicado".
Não se deve confundir a relação de afeto, considerada em si mesma, com as relações patrimoniais que a cercam no âmbito da família. Entre os membros de uma entidade familiar, por exemplo, entre os pais, ou entre estes e os filhos, a quebra do afeto se manifesta por diversas formas: aversão pessoal (aqui se inclui a aversão sexual), quebra do respeito ou da fidelidade, ausência intermitente ou afastamento definitivo do lar, falta ou desleixo nas visitas e na convivência, etc. Mas nenhuma formas de desafeto faz nascer o direito à indenização por danos morais. Mesmo porque, muitas vezes, o ofendido é o acusado, cuja conduta reage à ação ou omissão do outro.
Em conformidade com o consensus social em que repousa, o Direito brasileiro aceita até um certo limite os efeitos patrimoniais das relações de amor. Mas vai muito além desses limites pretender que o afeto familiar seja "dolarizado" — expresso em quantias monetárias — para efeito de indenização, como alguns vêm apregoado.
Por cópia do direito norte-americano, servilmente, tenta-se convencer a sociedade brasileira de que qualquer falha ou omissão nas relações entre marido e mulher, ou até entre pais e filhos, gera a obrigação de indenizar — em reais, à semelhança dos dólares — com base na "culpa" de quem deixou de amar. A corrosão de uma relação de afeto é lenta e interativa, o que torna quase sempre impossível saber de quem é a "culpa", que até pode ser do outro que afastou de si o amor. Por isso, a jurisprudência de vanguarda — não só no Brasil, mas em âmbito mundial — está deixando de indagar da "culpa" nas desavenças das relações de amor. Apesar disso, no entanto, o próximo passo dessa "dolarização" certamente seria o de tornar objetiva, independente de culpa, essa responsabilidade de indenizar, culminando na total monetarização do afeto familiar: um absurdo.
Os legisladores, aos quais tal legislação é solicitada, devem ter presente que cada cultura tem seus valores fundamentais. Nem tudo o que eventualmente faça parte da cultura norte-americana se adapta à cultura brasileira. Muitas vezes, para coibir condutas indesejáveis, juízes norte-americanos dão à reparação individual o valor de exemplificação social, condenando a indenizações exorbitantes quanto ao montante e quanto ao pressuposto. Assim, qualquer falta pode constituir fato gerador de responsabilidade civil, eventualmente, até mesmo uma falta puramente de natureza afetiva, como é a falta de amor.
Esse puritanismo radical pode estar na origem da mentalidade do povo norte-americano. Mas não condiz com o espírito do povo brasileiro, que será traumatizado por uma lei que veja falta ao direito onde na realidade só houve falta de afeto. Realmente, entre nós, é um absurdo pretender uma tal legislação.
Como o casamento, a afetividade constitui uma liberdade individual e não uma obrigação. Ninguém é obrigado a amar. O casamento nasce e vive de um afeto superior: o amor. Finda com ele. Por isso, já nasce morto, quando nasce sem afeto: apenas por interesse. Mas, em momento algum, gera a obrigação de contato sexual, cuja recusa apenas denuncia a inexistência de afeição. É violência enorme — se não estupro — obrigar alguém a manter contato sexual contra sua vontade, seja com quem for, seja em que relacionamento for.
O estado de afeição — o afeto — manifesta-se nas mais diversas relações sociais, mas sobretudo nas de família. A estas, por isso, o atual Direito da Família define pelo afeto, que é sua causa verdadeira. Nelas, o afeto gera uma afinidade maior do que nas demais, o que leva as pessoas a conjugar suas vidas com mais intimidade, até quanto aos meios de subsistência para atingir os fins de existência. Nessa conjunção, como noutras relações sociais, podem ocorrer condições patrimoniais, compondo relações acessórias com a relação principal: a de afeto, que lhes serve de base. Mas o próprio afeto em si não pode ser reduzido a patrimônio de um ou de outro, econômica ou moralmente, de modo tal, que da sua deterioração resulte a obrigação de indenizar o "prejudicado".
Não se deve confundir a relação de afeto, considerada em si mesma, com as relações patrimoniais que a cercam no âmbito da família. Entre os membros de uma entidade familiar, por exemplo, entre os pais, ou entre estes e os filhos, a quebra do afeto se manifesta por diversas formas: aversão pessoal (aqui se inclui a aversão sexual), quebra do respeito ou da fidelidade, ausência intermitente ou afastamento definitivo do lar, falta ou desleixo nas visitas e na convivência, etc. Mas nenhuma formas de desafeto faz nascer o direito à indenização por danos morais. Mesmo porque, muitas vezes, o ofendido é o acusado, cuja conduta reage à ação ou omissão do outro.
Em conformidade com o consensus social em que repousa, o Direito brasileiro aceita até um certo limite os efeitos patrimoniais das relações de amor. Mas vai muito além desses limites pretender que o afeto familiar seja "dolarizado" — expresso em quantias monetárias — para efeito de indenização, como alguns vêm apregoado.
Por cópia do direito norte-americano, servilmente, tenta-se convencer a sociedade brasileira de que qualquer falha ou omissão nas relações entre marido e mulher, ou até entre pais e filhos, gera a obrigação de indenizar — em reais, à semelhança dos dólares — com base na "culpa" de quem deixou de amar. A corrosão de uma relação de afeto é lenta e interativa, o que torna quase sempre impossível saber de quem é a "culpa", que até pode ser do outro que afastou de si o amor. Por isso, a jurisprudência de vanguarda — não só no Brasil, mas em âmbito mundial — está deixando de indagar da "culpa" nas desavenças das relações de amor. Apesar disso, no entanto, o próximo passo dessa "dolarização" certamente seria o de tornar objetiva, independente de culpa, essa responsabilidade de indenizar, culminando na total monetarização do afeto familiar: um absurdo.
Os legisladores, aos quais tal legislação é solicitada, devem ter presente que cada cultura tem seus valores fundamentais. Nem tudo o que eventualmente faça parte da cultura norte-americana se adapta à cultura brasileira. Muitas vezes, para coibir condutas indesejáveis, juízes norte-americanos dão à reparação individual o valor de exemplificação social, condenando a indenizações exorbitantes quanto ao montante e quanto ao pressuposto. Assim, qualquer falta pode constituir fato gerador de responsabilidade civil, eventualmente, até mesmo uma falta puramente de natureza afetiva, como é a falta de amor.
Esse puritanismo radical pode estar na origem da mentalidade do povo norte-americano. Mas não condiz com o espírito do povo brasileiro, que será traumatizado por uma lei que veja falta ao direito onde na realidade só houve falta de afeto. Realmente, entre nós, é um absurdo pretender uma tal legislação.
O autor é mestre, doutor e livre-docente em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona nos cursos de graduação e pós-graduação. |
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