Artigos
Mudança do nome do transexual
Nesse sentido, merecem aplicação os princípios do Direito Civil Constitucional: a valorização da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), a solidariedade social (art. 3º, I, da CF/88) e a isonomia ou igualdade “lato sensu” (art. 5º, “caput”, da CF/88). Entendemos que sem esses três princípios não há como compreender atualmente o direito civil e o direito privado.
Quanto ao transexual, primeiramente, alguns esclarecimentos são pertinentes. Segundo Maria Helena Diniz, a transexualidade constitui a condição sexual da pessoa que rejeita a sua identidade genética e a sua própria anatomia, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Completa essa autora que “trata-se de uma anomalia surgida no desenvolvimento da estrutura nervosa central, por ocasião de seu estado embionário, que, contudo, não altera suas atividades intelectuais e profissionais, visto que em testes aplicados apurou-se que possui, em regra, um quociente intelectual (QI) entre 106 e 118, isto é, um pouco superior à média” (O Atual Estágio do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2ª Edição, 2002, p. 231).
A situação mais comum envolve uma pessoa do sexo masculino que tem o aspecto psicológico do sexo feminino. É justamente sobre essa situação que iremos tratar.
O transexualismo constitui, assim, uma doença ou patologia, segundo apontam vários autores especializados no assunto e algumas entidades médicas internacionais e de outras nacionalidades. Não se confunde, portanto, com o homossexualismo (atração por pessoa do mesmo sexto) ou com o bissexualismo (atração por pessoa do mesmo sexo e do sexto oposto, comomitantemente). Trata-se de uma situação diferenciada, que merece tratamento diferenciado, consagração da especialidade, de acordo com a segunda parte do princípio constitucional da isonomia (“a lei deve tratar de maneira desigual os desiguais”).
Pois bem, inicialmente, discute-se a possibilidade do transexual submeter-se a uma intervenção cirúrgica, em decorrência dos choques psicológicos que o acometem. Em decorrência disso, seria possível que essa alteração fosse autorizada pelo Poder Judiciário?
Respondemos positivamente, tem em vista o novo Código Civil. Aliás, não se pode esquecer que a Resolução nº 1.482/97 do Conselho Federal de Medicina autoriza a realização da dita cirurgia, prevendo regras de procedimento para a sua realização.
Como se sabe, o artigo 13 do Código Civil atual e seu parágrafo único prevêem o direito de disposição de partes, separadas do próprio corpo em vida para o fins de transplante ou não, ao prescrever que, “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”.
Quanto à eventual mudança de sexo do indivíduo do sexo masculino para o sexo feminino, já que ocorrerá uma “disposição de parte do corpo” à luz do dispositivo acima transcrito, podem ser feitas duas interpretações.
A primeira, mais liberal, permitiria a mudança do sexo masculino para o feminino, já que muitas vezes a pessoa tem os ditos choques psicológicos graves, havendo a necessidade de alteração, para evitar que a mesma, por exemplo, se suicide. Por diversas vezes surgirá um laudo médico apontando tal situação do transexual, o que se enquadro na “exigência médica” mencionada na primeira parte do dispositivo.
Entretanto, a segunda parte do comando legal veda a disposição do próprio corpo se tal fato contrariar os “bons costumes’”, conceito legal indeterminado, a ser preenchido pelo magistrado, dentro do sistema de “cláusulas gerais” adotado pela codificação. De acordo com uma segunda visão, mais conservadora, a mudança de sexo estaria proibida se isso ocorresse.
Quanto a tal discussão, somos adeptos da primeira corrente, inclusive de acordo com o enunciado nº 6 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, realizada em setembro de 2002, cujo teor segue:
“Art. 13: a expressão “exigência médica”, contida no art.13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente”
Superada essa questão surge outro debate. Deferida a cirurgia para a mudança de sexo, haveria a possibilidade de alteração do nome do transexual, no registro das pessoas naturais?
Também estamos aptos a responder positivamente.
Por oportuno, interessante apontar que mesmo a jurisprudência paulista, por vezes apontada como “conservadora” de forma injustificada, já tem deferido a mudança de sexo, bem como a alteração do registro civil do transexual, conforme ementa a seguir transcrita:
“REGISTRO CIVIL - Retificação - Assento de nascimento - Transexual - Alteração na indicação do sexo - Deferimento - Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar - Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento - Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental - Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual - Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo”. (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 209.101-4 - Espirito Santo do Pinhal - 1ª Câmara de Direito privado - Relator: Elliot Akel - 09.04.02 - V. U.)
A decisão demostra a ciência do relator do acórdão em relação ao preceito máximo da proteção da dignidade da pessoa humana, bem como a evolução da jurisprudência na aplicação do Direito Civil Constitucional.
Como não poderia se diferente, há decisão semelhante também no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tido como pioneiro em relação a diversas questões jurídicas:
“REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PRENOME. ALTERAÇAO. POSSIBILIDADE. APELIDO PÚBLICO E NOTÓRIO. O FATO DE O RECORRENTE SER TRANSEXUAL E EXTERIORIZAR TAL ORIENTAÇÃO NO PLANO SOCIAL, VIVENDO PUBLICAMENTE COMO MULHER, SENDO CONHECIDO POR APELIDO, QUE CONSTITUI PRENOME FEMININO, JUSTIFICA A PRETENSÃO JÁ QUE O NOME REGISTRAL É COMPATÍVEL COM O SEXO MASCULINO. DIANTE DAS CONDIÇÕES PECULIARES, O NOME DE REGISTRO ESTÁ EM DESCOMPASSO COM A IDENTIDADE SOCIAL, SENDO CAPAZ DE LEVAR SEU USUÁRIO A SITUAÇÃO VEXATÓRIA OU DE RIDÍCULO. ADEMAIS , TRATANDO-SE DE UM APELIDO PÚBLICO E NOTÓRIO JUSTIFICADA ESTA A ALTERAÇÃO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS.56 E 58 DA LEI N. 6.015/73 E DA LEI N. 9.708/98 (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 00394904NRO-PROC70000585836, DATA: 31/05/2000, Sétima Câmara Cível, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, ORIGEM ESTEIO).
Na realidade, a última decisão percorre caminho um pouco diferente, mencionando a possibilidade de alteração do nome, substituindo-o por apelido notório, pelo que consta na Lei de Registros Públicos (arts. 56 e 58), aplicando-se a teoria da aparência e a relevância que a pessoa assume no meio social.
Aliás, quando o art. 1º do novo Código Civil prevê que toda a pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, está denotando esse caráter, inserindo o conceito de pessoa como ser integrado ao meio, à ordem civil que o circunda.
Entendemos que o fundamento de proteção da dignidade da pessoa humana é o mais correto e pertinente. Na realidade, o segundo acórdão também a esse princípio faz referência implícita, ao mencionar a situação de ridículo a que muitas vezes o transexual é submetido. Na maioria das vezes, surge evidente impacto no interlocutor do transexual, que tem acesso visual à pessoa, ao confrontá-lo com a sua identificação civil.
Essa situação ocorre no comércio, em hotéis e até mesmo quando o transexual vai procurar um emprego, fazendo com que o mesmo esteja à margem da sociedade, gerando lesão ao seu bem maior que é a sua dignidade. Aliás, de nada adianta ter um QI acima da média, se emprego ou atividade profissional o transexual tem dificuldade de desempenhar.
Entra em cena também o princípio da solidariedade social, visando evitar esses tipos de situações, outro fundamento para os nossos entendimentos.
Tudo isso justifica as razões pelas quais entendemos que deve ocorrer a alteração do registro do nome. Como conseqüência, deve nele constar como sexo o feminino e não a qualificação de “transexual” ou “transgênero” como entendem alguns doutrinadores. Essas denominações, não enquadrada em sexo masculino ou feminino, pode ser tida até como mais discriminatória do que a manutenção do nome anterior.
Exemplificando, fica a dúvida: em um restaurante ou local público, qual o toilet que deve ser utilizado pelo transexual operado? Logicamente o feminino, já que ele se identifica com pessoa desse sexo em sua plenitude. Se assim o é na prática, também deve ser na teoria, pois a aplicação do direito deve ser adaptada ao meio social, melhor concepção do princípio da socialidade, um dos baluartes da nova codificação privada, como aponta o próprio Miguel Reale.
Entendemos que o argumento pelo qual terceiros de boa-fé podem ser induzidos a erro pelo transexual operado não pode prosperar. Isso porque é comum que o próprio transexual revele ao pretenso parceiro a sua situação. Primeiro, porque a patologia lhe traz choques psíquicos graves. Segundo, temendo represálias ou manifestações agressivas futuras.
Nesse contexto, em situações tais, deve o transexual estar movido pela boa-fé, sob pena até de sua conduta ser enquadrada dentro do conceito de abuso de direito, previsto no art. 187 do novo Código Civil, a ensejar a sua responsabilização civil.
Cumpre lembrar que esse nosso entendimento visa a inserção social do transexual, que sofre rejeição da própria família, tendo em vista a tríade “dignidade-solidariedade-igualdade”. Apontamos também que o direito à opção sexual constitui um direito da personalidade, inerente à liberdade da pessoa e à sua dignidade. Os direitos da personalidade são tidos, em regra, como inatos, absolutos, irrenunciáveis, intransmissíveis, inafastáveis e indeclináveis.
Sabemos que muitas questões polêmicas ainda podem surgir sobre a matéria, como a possibilidade do transexual que fez a cirurgia casar-se no futuro. Sobre o tema, escreveremos em outra oportunidade.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM