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A família afetiva — O afeto como formador de família
1. Introdução.
Inicialmente traremos considerações doutrinárias e jurisprudenciais para ao final expormos nosso entendimento sobre o aspecto afetivo atinente ao Direito de Família.
Não há como deixar de discorrer algumas linhas sobre a família. De certo que não iremos tecer todo o traço histórico da entidade familiar, nos restringindo apenas ao período pós-independência de nosso país.
Para que não haja estranheza por parte dos leitores, cumpre-nos esclarecer que ao tratarmos da Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, não utilizaremos a expressão "Código Civil novo", por entendermos não se tratar de um novo código, mas, sim, de uma atualização da lei civil de nosso país, tendo como novidade apenas o paradigma que o concebeu: refletir uma alteração profunda dos elementos trazidos pela formulação original de Clovis Bevilaqua.
2. Bosquejo histórico.
Ficamos por muito tempo sujeitos às regras de Portugal (nossa pátria descobridora), regras essas que não se limitavam ao âmbito jurídico, mas também ao religioso e social.
A pátria portuguesa sempre teve uma forte ligação com o catolicismo (religião esta que é a oficial naquela república), iniciada com Santa Inquisição (séc. XIII) e aperfeiçoada com o tempo, vindo a Igreja, posteriormente, a exercer papel de forte influência na constituição do Estado e na vida de seus cidadãos. Foi o período em que o Estado era chamado de Eclesiático.
Descobertos que fomos no ano de 1500, todos os costumes e tradições portuguesas passaram a fazer parte do cotidiano brasileiro, dentre eles as leis e as imposições sacras advindas daquele Estado-Eclesiático. Ressalte-se que, como já frisamos no capítulo 1 (na origem e história do Direito das Sucessões), a seqüência das Ordenações do Reino em nosso país foram: I — Ordenações Affonsinas (ano 1446); II — Ordenações Manuelinas (1512); e III — Ordenações Filipinas (1603).
Quando da proclamação da independência brasileira, no ano de 1822, estavam vigentes, em nosso país, as Ordenações Filipinas.
Estivemos por muito tempo acobertados por uma realidade européia, que veio a traçar pontos diversos em nossa história: os senhores de engenho, a prática da escravatura, a vida em verdadeiros feudos e um rigor social/moral nas famílias.
Levaram-se anos para que Teixeira de Freitas aceitasse a incumbência de consolidar as leis civis que eram aplicadas em nosso país, bem como apresentar um projeto de Código Civil para o então Reino do Brasil.
Esse jurista teve seu contrato cancelado após apresentar uma prévia de seu projeto, o qual era extremamente avançado para sua época, trazendo em seu bojo termos como função social da propriedade e da família.
O contexto social daquela época não permitia que algumas situações por nós experimentadas hoje viessem a ser implementadas. Não há como imaginar famílias se separando, mães solteiras, uniões homo-afetivas e igualdade entre os cônjuges. Tal fato pode ser mais bem observado de maneira mais detalhada na brilhante obra de Orlando Gomes "Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro".
Mesmo com a vigência do Código Civil de 1916, cujo projeto foi elaborado por Clovis Bevilaqua, não houve nenhuma mudança substancial na realidade da família brasileira, sendo esta um núcleo onde o homem exercia o poder absoluto do controle e comando da casa, devendo a mulher e filhos prestar-lhe obediência e imensurável respeito.
Claro que com o passar dos anos a sociedade veio a sofrer transformações em várias esferas, não ficando a família alheia a isso. A conquista das mulheres ao direito ao voto e direito ao trabalho foram os grandes marcos de uma sociedade que sempre foi machista e feudalista.
O divisor de águas se deu com o início da vigência do texto constitucional de 05 de outubro de 1988. A igualdade entre os cônjuges, liberdades e garantias à mulher, até então inimagináveis, vieram a ser elevadas à condição de cláusulas pétreas. Daí o dizer de alguns doutrinadores: o Direito de Família é a parte do Direito Civil (direito privado) mais público em nosso contexto jurídico.
A proteção à família e suas formas de constituição e reconhecimento passaram a ter na CF/88 linhas gerais, devendo o texto civil se adequar a tais modificações. A família oriunda do casamento e da união estável (que passou a ser reconhecida como formadora de núcleo familiar) teve tratativa constitucional.
Jamais perderemos de vista a diferenciação própria que o constituinte procurou dar a cada espécie familiar. Contudo, é inegável que todas as espécies de família são faces de uma mesma realidade. A mudança reclamada pela sociedade não ocorreu de maneira separada para cada uma delas. Ao contrário, as diversas maneiras pelas quais homens, mulheres e filhos desenvolviam seus laços afetivos faziam parte de uma mesma realidade, cercada por características comuns que não suportavam mais a estrutura patriarcal enraizada nos setores conservadores de nossa sociedade e prevista numa legislação que estava em completa desarmonia com a realidade nacional. (OLIVEIRA, 2002, p. 229).
3. A importância do afeto como elemento nas famílias.
Assim como as famílias mudaram, os núcleos familiares também sofreram alterações em sua estrutura e composição. A família composta por diversos membros começou a perder força ao longo dos anos, bem como aquela formada apenas por filhos legítimos, seja por imposição legal, seja porque os núcleos familiares passaram a valorizar um fator imprescindível para sua formação: o amor, o afeto!
Não há como negar que a nova tendência da família moderna é a sua composição baseada na afetividade. Sabemos que legislador não tem como criar ou impor a afetividade como regra erga omnes, pois esta surge pela convivência entre pessoas e reciprocidade de sentimentos.
Segundo OLIVEIRA (2002, p. 233), "a afetividade, traduzida no respeito de cada um por si e por todos os membros — a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social — é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores características da família atual."
Daí se entender que com essa situação estamos diante do que BORDA (2002, p. 22) chamou de estado de família, que se resume na posição que uma pessoa ocupa dentro de um núcleo familiar.
Este estado de família mencionado pelo civilista argentino é, para nós, a família lastreada na cooperação, respeito, cuidado, amizade, carinho, afinidade, atenção recíproca entre todos os seus membros.
Inegável é que o afeto encontra-se presente nas relações familiares tradicionais, sendo caracterizadas no tratamento/relação mútuo entre os cônjuges e destes para com seus filhos, que se vinculam não só pelo sangue, mas por amor e carinho.
Nesse contexto, vale citar a denominada "adoção à brasileira, aquela em que a paternidade não prescinde de vínculo biológico, encontrando guarida no art. 1.593 do Código Civil, quando dispõe que o parentesco pode resultar de "outra origem".
Mas para que reste configurada esta formação familiar, imprescindível se faz que alguns pontos sejam elucidados, dentre os quais: a) o estado de filiação; b) a posse do estado de filho; e c) a valoração do afeto como valor jurídico e formador de núcleo familiar, os quais passaram a ser analisados em seguida.
a) estado de filiação:
Três são os tipos de parentesco existentes no atual Código Civil: consangüinidade, civil e afinidade. Entretanto, com o advento da Carta Constitucional de 1988, preconizou-se em seu art. 227 que este estado de filiação caracterizado pelo "filho" e aquele que assumiu todos os deveres/obrigações oriundos da paternidade, é o mais puro elemento exigido para a configuração dessas "relações de parentesco".
Para nós, seria a proteção criada pela doutrina e que passa a ter força nos Fóruns e Tribunais do brocado popular "pai é aquele que cria".
Esta foi, sem dúvida, uma tentativa de proteger um direito subjetivo desse filho, sendo esta uma luta por um direito subjetivo que se dá quando há certa situação.
É provocada quando o direito é lesado ou usurpado. Não estando direito algum ao abrigo deste perigo, nem o dos indivíduos, nem o dos povos, — porque o interesse de qualquer em o defender choca-se sempre com o interesse de outro em o desprezar — resulta que esta luta se apresente em todas as esferas do direito, tanto nas baixas regiões do direito privado como também nas eminências do direito público e do direito internacional. (VON IHERING, 2006, p. 12).
Ressalta-se que o estado de filiação, aqui referido, é o estado de filiação sócio-afetiva.
Negar que atualmente as relações baseadas no afeto e carinho são menos importantes do que as consangüíneas é um erro. A filiação biológica não está mais em pé de superioridade, uma vez que a criação do filho afetivo surge por circunstâncias alheias à imposição legal/natural que a paternidade impõe.
Trata-se do vínculo que decorre da relação socioafetiva constatada entre filhos e pais — ou entre o filho e apenas um deles —, tendo como fundamento o afeto, o sentimento existente entre eles: 'melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo'. (GAMA, 2003, pp. 482-483).
Os precedentes históricos para a configuração desta filiação nos trazem o brocado "pater is est quem nuptiae demonstrant", oriunda do direito romano, onde o pai poderia aceitar ou repudiar o filho, configurando, desta feita, toda a situação de poder exercida pelo pai sobre a família.
Esse estado de filiação possui caracteres de cunho interno e externo. O primeiro se dá com os traços de indivisibilidade, indisponibilidade (pois diz respeito à personalidade) e imprescritibilidade (não se perde pelo não exercício), ao passo que o cunho externo se dá nos moldes de pessoalidade, generalidade e revestido de ordem pública.
Para QUEIROZ (2001, p. 34), "o estado é uno e indivisível, pelo fato de uma mesma pessoa não poder adquirir, ao mesmo tempo, vários status de uma mesma categoria. Por exemplo, não é possível ser solteiro e casado ao mesmo tempo."
Comungamos do entendimento de que o estado de filiação é uma ficção/criação jurídica, a qual tem o escopo de proteger o núcleo familiar, na medida que presume ser filho aquele que assim se mostra para a sociedade, ainda que não possua laço de sangue com seu "pai".
(...) o status, em primeiro lugar, não é considerado como a posição do indivíduo no agregado, antes como uma conseqüência do fato de que o indivíduo pertence ao grupo, e, em segundo lugar, os estados pessoais não são mais somente dois (civitatis e familiae), mas podem ser muitos e de variadas importâncias, 'de acordo com o alcance das relações jurídicas que a eles se relacionam'. (PERLINGIERI, 1997, p. 133).
Em recente julgado, assim se manifestou o STJ:
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. PECULIARIDADES. A "adoção à brasileira", inserida no contexto de filiação sócioafetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. - O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. - O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal. - Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. - A investigante não pode ser penalizada pela conduta irrefletida dos pais biológicos, tampouco pela omissão dos pais registrais, apenas sanada, na hipótese, quando aquela já contava com 50 anos de idade. Não se pode, portanto, corroborar a ilicitude perpetrada, tanto pelos pais que registraram a investigante, como pelos pais que a conceberam e não quiseram ou não puderam dar-lhe o alento e o amparo decorrentes dos laços de sangue conjugados aos de afeto. - Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar "adotivo" e usufruído de uma relação sócio-afetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. - Nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e sócio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões. Recurso Especial provido. (STJ; REsp 833.712; Proc. 2006/0070609-4; RS; Terceira Turma; Relª Min. Fátima Nancy Andrighi; Julg. 17/05/2007; DJU 04/06/2007; Pág. 347).
No entender de QUEIROZ (2001, p. 40), "o status de filho é um direito garantido à pessoa, porquanto a ordem jurídica vale-se de presunções legais, reconhecimentos voluntários ou até mesmo imposições através de sentenças judiciais, com o fito de fornecer uma identidade familiar àquele que não a detém de modo integral."
b) posse do estado de filho:
Se tomarmos base o conceito genérico de posse, encontraremos na doutrina e nos pronunciamentos dos tribunais, que esta é a exteriorização de um domínio (propriedade).
Claro está que não pode esse conceito de posse ser restrito apenas ao Direito das Coisas, para determinar quem é ou não possuidor de determinada coisa/bem, devendo, também, ser estendido a outros ramos do Direito.
No atual contexto da família, influenciada diretamente pelos preceitos constitucionais, novos conceitos se insurgiram (filiação sócio-afetiva/posse do estado de filho), os quais refletem, tão somente, as novas tendências no que diz respeito às relações de parentesco.
Sempre houve em nosso direito certa animosidade entre a paternidade/filiação biológica e a paternidade/filiação sócio-afetiva, tendo a primeira maior favorecimento; entretanto, nos últimos anos a segunda modalidade passou a ser objeto de estudo e atenção por parte dos doutrinadores e dos tribunais.
Se nos restringirmos apenas à paternidade/filiação biológica, poderemos vislumbrar que o filho possui uma condição de titularidade em relação a seus pais e estes à prole, ou seja, a sociedade vê aquele como filho destes.
O afeto exerce no atual contexto brasileiro um papel muito importante, delineando as relações familiares e os novos paradigmas da filiação. Desta feita, temos que a posse do estado de filho é um requisito essencial à caracterização da paternidade/filiação sócio-afetiva, traduzida na aparência/demonstração de um estado de filho, chamada, portanto, de estado de filho de afeto.
Essa noção de posse de estado não é um conceito novo no mundo jurídico, seu surgimento nos remonta ao direito romano, onde existiam o status civitatis, o status libertatis e o status familiae, em que este último dizia respeito à condição/atribuição que alguém possuía dentro de uma família.
De certo que a noção de estado de família e, conseqüentemente, a de filho e de pai/mãe, veio se aperfeiçoando com o passar dos séculos.
Atualmente, é o afeto que traça e cria os laços familiares, sendo este semeado e acalentado com o dia-a-dia.
A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho e tratamento, quem em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade. (FACHIN, 2003, p. 25).
Essa idéia de posse de estado de filho vem crescendo muito no mundo acadêmico e também nos tribunais, revelando que a paternidade/filiação não se restringe ao fator biológico ou à presunção legal, mas, também, abrange o convívio diário e os elementos que surgem desse convívio.
A posse do estado de filho se configura sempre que alguém age como se fosse o filho e outrem como se fosse o pai, pouco importando a existência de laço biológico entre eles. É a confirmação do parentesco/filiação sócio-afetiva, pois não há nada mais significativo do que ser tratado como filho no seio do núcleo familiar e ser reconhecido como tal pela sociedade, o mesmo acontecendo com aquele que exerce a função de pai.
A posse de estado de filho, nada mais é, do que a prática de reiterados atos dos núcleos familiares, diante de uma íntima e longa relação de afeto, cuidado, preocupação e outros sentimentos que surgem com o carinho.
Deixar essas situações (paternidade/filiação sócio-afetiva) sem impor certas condições pode fazer com que sua finalidade se perca. Somos do entendimento que os elementos identificadores da família se estendem ao filho afetivo, a saber: i) apelido da família; ii) trato (sendo no núcleo familiar ou não); e iii) fama.
Diz LUMIA (2003, p. 99) que "(...) o papel do direito como estrutura da ação social é o de regular as relações intrasubjetivas. (...). Relações jurídicas são somente as relações intrasubjetivas (ou seja, as relações que se travam entre dois ou mais sujeitos) regulados por normas pertencentes ao ordenamento jurídico."
Ora, se o papel do direito é regular relações pertencentes ao ordenamento jurídico, dúvidas não pairam, portanto, no que diz respeito à paternidade/filiação sócio-afetiva, vez que o atual texto de Código Civil traz no bojo de seu art. 1.593 a possibilidade de se aceitar esta realidade.
Talvez a redação do mencionado art. não seja a mais adequada, haja vista que a expressão "outra origem" não reflete esta idéia de maneira acintosa. Cremos que poderia haver uma alteração no texto deste art., criando um parágrafo único neste art. Para nós, data vênia, poderia ser:
Art. 1.593: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade.
Parágrafo único: As relações sócio-afetivas, quando devidamente comprovadas, geram vínculos de parentesco.
Dúvidas não pairam sobre o estado de filiação, que é inerente ao ser humano e de cunho afetivo, nascendo no seio da família, ainda que seja pelo laço de sangue. Entretanto, a filiação biológica não exerce mais uma prevalência sobre a filiação afetiva, também configurada pela adoção, inseminação artificial e, claro, a posse do estado de filho.
Essa situação já é uma realidade para o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, como depreendemos de recentes julgados:
FILHO DE CRIAÇÃO. ADOÇÃO. SOCIOAFETIVIDADE. No que tange à filiação, para que uma situação de fato seja considerada como realidade social (socioafetividade), é necessário que esteja efetivamente consolidada. A posse do estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não de posse de estado, revelando quem efetivamente são os pais. A apelada fez questão de excluir o apelante de sua herança. A condição de "filho de criação" não gera qualquer efeito patrimonial, nem viabilidade de reconhecimento de adoção de fato. APELO DESPROVIDO. (TJRS; AC 70007016710; Bagé; Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Rui Portanova; Julg. 13/11/2003)
***
ALIMENTOS DEVIDOS A FILHO MAIOR. POSSIBILIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO DE NECESSIDADE QUE, ASSIM, DEVE SER COMPROVADA, JUNTAMENTE COM A POSSIBILIDADE DOS PAIS. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE PERMITE AO FILHO, MESMO MAIOR E CAPAZ, BUSCAR PENSIONAMENTO ALIMENTAR DE SEUS PAIS COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 1. 695 DO CÓDIGO CIVIL, 229 E 1º, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POSSIBILIDADE JURÍDICA DE CARACTERIZAR OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. O INDEFERIMENTO DA INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO CARACTERIZA VEDAÇÃO DE ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO O QUE NÃO É ADMITIDO PELA CONSTITUÇÃO FEDERAL. Os princípios da afetividade e da solidariedade encontram respaldo constitucional e ético e devem permear a conduta e as decisões da magistratura moderna e atenta à realidade do mundo atual. (TJRJ; AC 2006.001.51839; Décima Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Conv. Mauro Nicolau Junior; Julg. 30/01/2007).
Nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal houve também uma importante elucidação da matéria. Na I Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado nº. 103, o qual possui a seguinte redação:
103 — Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
No mesmo evento, foi aprovado também o texto do Enunciado nº. 108, estabelecendo que:
108 — Art. 1.603: no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva.
Nesse contexto, o Enunciado mais importante foi aquele aprovado sob o nº. 256, da III Jornada de Direito Civil, tendo o seguinte texto:
256 — Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.
O fundamento basilar da posse do estado de filho nasce com a convivência das relações entre pais e filho, ou seja, o afeto que vem a se impor para configurar o exercício das funções e obrigações oriundas da paternidade.
Do título constitutivo do status distingui-se a posse de estado que é, segundo as hipóteses, elemento sanante dos defeitos de forma de título de estado e prova legal do fato do qual depende o nascimento do estado pessoal civil: assim, a filiação pode ser provada com a posse continuada deduzida de uma série de fatos, tipicamente indicados pela lei; (...). (PERLINGIERI, 1997, p. 137).
Essa posse do estado de filho pode ser tida, portanto, como um ponto de suplementação no nosso sistema, partindo-se da presunção de paternidade/filiação, se aplicando através do brocado pater is est (...), haja vista que a exacerbada proteção às famílias oriundas do matrimônio deixa de lado situações fáticas que são de grande importância no atual contexto do Direito de Família brasileiro.
A nova realidade da família brasileira, surgida com a CF/88, trouxe ao núcleo familiar determinadas funções, como a de possibilitar aos seus membros uma vida com dignidade, com a criação de seus próprios dogmas, sua moral, sua ética, sua consciência política e religiosa, em respeito à ordem pública e aos ditames legais.
O Direito de Família retrata um imenso universo de batalhas, seja para dissolver os núcleos familiares, seja para consolidar e constituir mecanismos a fim de atender as expectativas sociais e dos indivíduos, respeitando-se os mais profundos valores da dignidade da pessoa humana.
Não vemos com maus olhos a "função social da família", haja vista que esta é considerada célula-mater da sociedade, devendo atingir o fim que não prescinde de expressa cominação legal.
Se realmente o Direito é sempre um fenômeno social e intrínseco ao âmago da ordem social, como leciona Ascensão (2005, p. 56), porque então esperar a normatização da função social da família?
O texto do Código Civil de 2002 já abre uma lacuna para a caracterização dessa posse de estado de filho, retratando a função social do Direito de Família, em especial do núcleo familiar. Seria violação clara à dignidade da pessoa humana qualquer vedação ao reconhecimento dessa paternidade/filiação sócio-afetiva.
A Carta Constitucional de 1988 trouxe um novo tratamento jurídico às relações de família, buscando aplicar suas regras no centro fundamental do Direito de Família (a própria família), com o escopo de protegê-la, visando seu fim social com decência, dignidade e amor.
c) valoração do afeto como valor jurídico e formador de núcleo familiar:
A atual tendência do Direito de Família é a de que buscar e zelar pela alegria, amor e respeito mútuos no ambiente familiar.
A partir disso, parte-se da seguinte premissa: deixar de reconhecer paternidade/filiação fundada no amor, no afeto, no carinho, na preocupação, no querer bem e na demonstração mais simples e bela que um ser humano pode ter por seu semelhante, é justo? Seria razoável? Seria atender aos ditames constitucionais de "bem-estar", "igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" que se funda em "harmonia social" trazidos no Preâmbulo de nossa Constituição Federal?
Parece-nos que não. Se o mesmo texto constitucional dispõe em seu art. 3º, I que nossa República tem como objetivo fundamental promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, o não reconhecimento de AMOR, do AFETO como formador da família e da relação de parentalidade é ir de encontro com as bases constitucionais do nosso Estado Democrático de Direito.
Este reconhecimento só iria trazer benefícios às situações fáticas que se alongam no tempo. Tratar os filhos que igualmente são amados, respeitados e queridos no meio familiar seria uma justiça social e uma confirmação de uma responsabilidade social.
Se o Direito de Família é o ramo do Direito Civil que mais influências sofre do Direito Constitucional, porque quando da confecção do atual texto de Código Civil não foram observadas tais ponderações?
Cremos que quando um homem e uma mulher, de livre e espontânea vontade resolvem acolher em seu lar uma criança e tratá-la como um filho de sangue, configura-se uma relação de maturidade e evolução do ser humano em seu meio social. O filho que porventura fora renegado/abandonado/desprezado por seus genitores não pode ser privado de ter no amor o reconhecimento de um núcleo familiar, de uma situação que lhe traga dignidade e respeito perante a sociedade.
Não nos limitamos apenas nas situações comuns e nos noticiários de nosso país, em que, infelizmente, se tornou comum ver pais abandonando crianças, mas, sim, no caso da adoção à brasileira dentro de uma mesma família (sentido lato), como no exemplo de sobrinhos terem o carinho, amor, respeito e afetividade de seus tios, e estes o tratarem como verdadeiro filho.
Restringir as relações de parentesco apenas às modalidades de consangüinidade, civil e afinidade não nos parece ser a proposta do atual Direito brasileiro, no que diz respeito às esferas Constitucional e de Família.
Os pais e filhos não são unidos apenas por laços de sangue, mas também por amor, carinho, afetividade, respeito, cuidados e sentimentos de prosperidade, uma vez que a responsabilidade e função desses verdadeiros pais afetivos são assaz importantes. Nada os vincula ou os obriga à criação e ao desenvolvimento do amor por esses filhos, mas apenas o fazem por ser esta uma vontade que surge do afeto, do amor.
Para FACHIN (2003, p. 29), "essa verdade sócio-afetiva não é menos importante do que a verdade biológica. A realidade jurídica da filiação não é, portanto, fincada apenas nos laços biológicos, mas, também, na realidade de afeto que une pais e filhos, e se manifesta em sua subjetividade e, exatamente, perante o grupo social e à família."
Poderia, então, haver uma melhoria nas legislações infraconstitucionais (em especial no atual texto de Código Civil) no sentido de adequá-las à atual realidade social, ao conceito contemporâneo de família, onde pouco importa se um filho é ou não biológico, colocando de forma expressa na lei o que a doutrina e jurisprudência já pacificaram: não há verdade biológica absoluta.
O tão mencionado AMOR já se encontra presente em algumas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, como observamos abaixo:
EMENTA: APELACAO. ADOCAO. ESTANDO A CRIANCA NO CONVIVIO DO CASAL ADOTANTE HA MAIS DE 9 ANOS, JA TENDO COM ELES DESENVOLVIDO VINCULOS AFETIVOS E SOCIAIS, E INCONCEBIVEL RETIRA-LA DA GUARDA DAQUELES QUE RECONHECE COMO PAIS, MORMENTE QUANDO OS PAIS BIOLOGICOS DEMONSTRARAM POR ELA TOTAL DESINTERESSE. EVIDENCIADO QUE O VINCULO AFETIVO DA CRIANCA, A ESTA ALTURA DA VIDA, ENCONTRA-SE BEM DEFINIDO NA PESSOA DOS APELADOS, DEVE-SE PRESTIGIAR A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA SOBRE A PATERNIDADE BIOLOGICA, SEMPRE QUE, NO CONFLITO ENTRE AMBAS, ASSIM APONTAR O SUPERIOR INTERESSE NA CRIANCA. DESPROVERAM O APELO. UNANIME. (Apelação Cível Nº. 70003110574, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 14/11/2001);
***
EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES. ACAO DE ANULACAO DE REGISTRO DE NASCIMENTO MOVIDA POR IRMAOS DO FALECIDO PAI. NO CONFLITO ENTRE A VERDADE BIOLOGICA E A VERDADE SOCIOAFETIVA, DEVE ESTA PREVALECER, SEMPRE QUE RESULTAR DA ESPONTANEA MATERIALIZACAO DA POSSE DE ESTADO DE FILHO. O FALECIDO PAI DO DEMANDADO REGISTROU-O, DE MODO LIVRE, COMO FILHO, DANDO-LHE, ENQUANTO VIVEU, TAL TRATAMENTO, SOANDO ATE MESMO IMORAL A PRETENSAO DOS IRMAOS DELE (TIOS DO REU) DE, APOS SEU FALECIMENTO, E FLAGRANTEMENTE VISANDO APENAS MESQUINHOS INTERESSES PATRIMONIAIS, PRETENDER DESCONSTITUIR TAL VINCULO. DESACOLHERAM OS EMBARGOS. ( 8 FLS ). (SEGREDO DE JUSTICA). (Embargos Infringentes Nº 70004514964, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 11/10/2002).
4. Conclusão.
A relação sócio-afetiva (conhecida também como "adoção à brasileira") necessita da existência de relação de afetividade, que o pai trate o filho como seu, sendo esta a relação reconhecida pela sociedade, não bastando que o filho use o nome do pai.
O direito à identidade de filiação é indisponível, portanto imprescritível, a teor, inclusive, do artigo 1.606 do Código Civil. Não há como destoaremos os princípios que norteiam nossa Nação e servem de fundamento para nossa Carta Política do atual contexto social e jurídico de nosso país.
As relações de família sofrem influência e proteção dos princípios e das regras constitucionais. Seus novos modos de constituição familiar passam a ser cada dia mais aceitáveis pela doutrina e decisão de juizes de primeira e segunda instância por todo o país.
As famílias formadas unicamente por relações de afeto, de amor, de carinho, traduzem, para toda a sociedade, a idéia de que certo ente familiar é filho e membro essencial à harmonia e felicidade da mesma. Essa família que se constitui sócio-afetivamente vêm sofrendo inúmeras injustiças, causadas por mero descuido ou inobservância por parte de alguns, principalmente no que se refere ao filho sócio-afetivo e à privação deste na participação na delação dos bens/direitos/obrigações de seu "pai" quando este vem a falecer.
Nosso atual texto de Código não faz menção à proibição deste reconhecimento de filiação, muito pelo contrário, deixa-nos uma brecha para que se reconheçam essas formas de constituição familiar.
Se são reconhecidas as famílias pelo afeto; se são reconhecidas filiações pelo afeto e essa hoje em dia já é motivo bastante para constituição de prestação alimentícia, por que não reconhecer direitos sucessórios para uma situação que se encontra plenamente formada, reconhecida e consolidada com o passar dos anos?
Não reconhecer essa realidade implicaria até mesmo em afronta a princípios constitucionais, às garantias trazidas ao Homem pela Carta de Direitos, aos Direitos Humanos e à Dignidade da Pessoa Humana.
5. Referências.
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Thiago Felipe Vargas Simões é sócio do IBDFAM, advogado, especialista em Direito Privado pela Univila/ES, mestre em Direito Civil pela PUC/SP e doutorando em Direito Civil pela PUC/SP. Contato: tfvsimoes@terra.com.br - Home Page: http://www.tfvsimoes.site.adv.br/
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