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A revolução silenciosa perpetrada pela Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007
1. O casamento como a única maneira de constituição de família.
Antes da Constituição Republicana de 1998 o casamento era considerado a única forma de constituição de família. Fora do casamento tudo era marginalizado, excluído, não existia.
Não é demais lembrar, neste momento, que o divórcio no Brasil somente foi admitido pela Lei nº 6.515/77, após luta árdua do Senador carioca Nelson Carneiro. Cai o dogma da indissolubilidade.
E, mesmo assim, a sentença que decretava a separação do casal, antes da Constituição de 1988, somente tinha validade quando convalidada pelo Tribunal. E demorada era essa convalidação... Enquanto isso, o casamento, pela força do Direito, ainda persistia.
Ao homem era permitido requerer anulação do casamento, se a mulher não fosse virgem. Alguns, sarcasticamente, comparavam esse proceder com o direito obrigacional ao sugerir que existia, apenas com relação à mulher, "vício redibitório". E, de nada valia demonstrar, a esposa rejeitada, que o marido também não era "intacto", não tinha "defeito". Aos homens tudo, às mulheres a castidade!
A insistência do Estado, ainda não totalmente laico, com a perpetuação artificial do matrimônio, mesmo não existindo mais afeto, era absurda, incompreensível, intolerável. Era, na verdade, uma camisa de força diuturna.
Para anular ou nulificar o casamento obstáculos quase intransponíveis existiam, posto que a sentença também necessitava de ser ratificada pelo Tribunal. Nomeava-se curador ao "sagrado" vínculo do casamento. E, na dúvida, persistia o matrimônio, mesmo não mais existindo afeto.
2. A Constituição Republicana de 1988 reconheceu, a bem de todos, que além do casamento também existia outras maneiras de viver a dois.
A Constituição Republicana de 1988 elegeu o "afeto" o fundamento máximo do direito de família. A união estável e a família monoparental também foram expressamente reconhecidas pelo legislador constituinte.
A escolha da entidade familiar passa a ser da alçada exclusiva das partes diretamente interessadas. Viver em união estável não é mesmo importante do que viver sob o estado de casado. O importante é a felicidade. A entidade familiar deverá persistir, somente se presente o afeto.
Doutrinadores e agora parte da jurisprudência, lastreados nos princípios da dignidade e da legalidade, admitem também a existência da família homoafetiva. O fato de uma pessoa passar, por existir afeto, a conviver com outra, mesmo que do mesmo sexo, é também uma entidade familiar. A Constituição apenas exemplificou três formas de entidades familiares, não vedando a existência de outras.
Na verdade, a partir da Constituição de 1988 a causa próxima para dissolução do vínculo matrimonial é apenas a ausência de afeto. Entretanto, o Código Civil de 2002, em total descompasso com a Carta Magna, manteve a necessidade de, para decretação da separação, indicação, na petição inicial, de mácula a uma dos deveres advindos do casamento: infidelidade, injúria grave, sevícia, abandono material, ausência de contato íntimo etc.
3. Alguns avanços advindo da Lei nº 11.441/07
A lei nº 11.441/07 acrescentou o artigo 1.124-A no Código de Processo Civil e permitiu a realização de separação e divórcio consensuais também por via administrativa cartorária. Teve por escopo, essa novel legislação, racionalizar a vida dos cidadãos, com simplificação de atos e certo de que, na ausência de afeto, a dissolução do casamento é o único caminho que resta. Encurtar esse caminho é salutar a todos.
A partir de então, é facultado aos interessados requerer a separação ou o divórcio consensual administrativamente perante aos tabeliães de notas, com a lavratura da respectiva escritura pública, desde que compareçam acompanhados de advogados.
No Estado de Minas Gerais, através do Parágrafo único do artigo 3º do Provimento nº 164/CGJ/2007, emanado da Egrégia Corregedoria de Justiça, "o tabelião de notas deverá fazer constar da escritura o nome do advogado e o número de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, cuja assinatura será aposta na escritura juntamente com as das partes, sem necessidade de exibição do instrumento de procuração".
Parece-nos que há possibilidade de o Cartório acabar "indicando" advogado nas separações e divórcios consensuais, numa captação indevida de clientela. Porém, nada impede, se comprovado o consórcio entre advogado e cartório, que a própria OAB tome as medidas administrativas contra o causídico que assim proceder, bem como a Corregedoria de Justiça poderá apurar possível falta por parte do próprio Tabelião.
Cristiano Chaves de Farias[1] ao comentar a sistemática da Lei nº 11.441/2007 entende que o divórcio e separação consensuais, na forma ditada pelo art. 1.124-A do Código de Processo Civil, passam a ser admitido somente através da via administrativa cartorária. Para o renomado Promotor de Justiça do Estado da Bahia, há carência de ação, na ausência de interesse de agir em juízo.
Discordamos da posição esposada pelo festejado jurista. Na verdade, sequer é correto falar em ausência de condições da ação, nas separações ou divórcios consensuais, eis que estamos diante da chamada jurisdição voluntária ou graciosa. Sequer há ação; sequer há processo. Trata-se de mero procedimento, que poderia, por inexistir litígio, ser deixado sim apenas na esfera cartorária. Entretanto, não foi essa a intenção do legislador que acabou permitindo aos interessados escolher entre a função judiciária ou a via administrativa cartorária, caso desejarem o divórcio ou a separação consensuais, desde que não existam menores ou incapazes.
E, considerando que a cultura brasileira é toda calçada na necessidade de ir e estar em juízo, quer nos parecer que mínimos serão os requerimentos cartorários permitidos pela nº 11.441/07. A grande maioria das pessoas preferirá o requerimento judicial, entendendo ser mais seguro e em alguns casos mais rápidos, principalmente se prevalecer o entendimento que será lançado abaixo.
Porém, a legislação em destaque leva-nos a refletir sobre algumas mudanças que também deverão ser observadas em juízo, numa interpretação finalística, sistemática e teleológica.
Nota-se, na separação consensual administrativa cartorária, que não há audiência conciliatória e nem a presença do ilustre Representante do Ministério Público. Assim, quer nos parecer que também em juízo não haverá mais a participação do Ministério Público e também não há mais espaço para a audiência conciliatória ou confirmatória do requerimento de separação consensual, na inexistência de filhos menores ou incapazes. Não há nenhuma lógica em dispensar a presença do "Parquet" na separação judicial consensual cartorária e continuar exigindo-a em juízo.
No tocante ao divórcio direito consensual cartorário, a prova da separação de fato foi substituída, em Minas Gerais, através do artigo 15 do antes referido Provimento nº 167/2007, por simples declaração de, no mínimo, duas testemunhas devidamente qualificadas, com firma reconhecida. Assim e também em juízo, a prova testemunhal poderá ser tranqüilamente substituída pelas declarações antes mencionadas, bem como também, a exemplo do que ocorre administrativamente, não mais haverá a participação ministerial nestes requerimentos.
Portanto, a racionalização das atividades processuais e a simplificação da vida jurídica dos cidadãos brasileiros, ditadas pela Lei nº 11.441/07, também devem ser observadas em juízo.Assim, nos divórcios e separação consensuais, ausente filhos menores ou incapazes, ressalvado, com relação à prole, o que abaixo, na conclusão destas discussões, será exposto, não há mais a participação do Ministério Público, mesmo para os interessados que optaram pela via judicial. Não há audiência conciliatória ou confirmatória do pedido de separação. E, em assim agindo, inúmeras e desnecessárias audiências deixarão de existir, com marcação de outras, em menor espaço de tempo, para os casos em que realmente existir litigiosidade e, por conseguinte, exigir, por exigência Constitucional, processo, como procedimento em contraditório.
4. Conclusão
Neste país, até hoje, salvo no caso de divórcio direito, ainda é exigido que o cidadão primeiro se separe, amigável ou consensualmente, para depois requerer o divórcio. É chegado o momento de extirpar do ordenamento jurídico nacional tal instituto. Entretanto, para justificar a manutenção da separação amigável ou judicial no Direito Brasileiro há um artifício jurídico, de difícil entendimento até mesmo pelos militantes no Direito das Famílias. Diz o legislador que a separação dissolve a sociedade conjugal e que apenas a morte e o divórcio é que extinguem o laço matrimonial. Com toda a franqueza, não há mais nenhuma necessidade de dissolução apenas da sociedade conjugal no Direito brasileiro, salvantes motivos religiosos, que devem ser apartados do Direito, e também em razão de possível reserva de mercado de trabalho.
Assim, louvável é o projeto de emenda constitucional do deputado federal Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA) que suprime o instituto da separação judicial do ordenamento jurídico brasileiro. Justifica aludido e dinâmico Parlamentar aos seus colegas da Câmara Federal que, desde o advento do divórcio há uma duplicidade "artificial" entre dissolução da sociedade conjugal (separação) e dissolução do matrimônio (divórcio), de difícil convencimento e aceitação junto aos cidadãos deste país.
Porém e enquanto não abolida a separação judicial ou consensual do ordenamento jurídico nacional, pensamos que a aplicação da racionalização ditada pela Lei nº 11.441/07 também em juízo facilitará, sobremaneira, a vida de milhões de pessoas. Assim, as partes não mais necessitarão de se deslocar para audiências de nenhuma utilidade nos dias atuais, a exemplo do que ocorre na separação judicial consensual.
No tocante à possível vício no divórcio e separação consensuais cartorários, se presentes as hipóteses previstas no artigo 171 do Código Civil, a parte prejudicada poderá propor ação anulatória de ato administrativo, pelo procedimento ordinário, no prazo decadencial de 04 (quatro) anos.
De questionar-se a lei nº 11.441/07 ao coibir a separação ou divórcio consensual, caso existam filhos menores ou incapazes. Ora, desde que da escritura não conste nada sobre os direitos indisponíveis dos menores e dos incapazes, perfeitamente possível é o divórcio e separação consensuais cartorários, mesmo existindo prole incapaz. Possíveis divergências com relação à guarda, visita, pensão alimentícia ou outros direitos relacionados com os filhos poderão ser discutidos em ação própria, sem necessidade de adentrar no íntimo, na vida privada, do casal.
Também de entender-se possível a separação e o divórcio administrativos cartorários, mesmo não existindo consenso no tocante à partilha de bens, aplicando-se, na espécie, o artigo 1.581 do Código Civil , a permitir que o divórcio poderá ser concedido sem que haja prévia partilha de bens. A partilha poderá ser feita, posteriormente, no cartório ou em juízo, se consensual ou somente em juízo, caso não superada possível carga litigiosa.
A Lei nº 11.441/07 preocupou-se, sobremaneira, com a assistência jurídica integral ao pobre. Assim e antevendo possível obstáculo por parte dos Cartórios no que se refere ao deferimento de assistência judiciária, aludida legislação, no atual parágrafo 3º do artigo 1.124-A do Código de Processo Civil, deixou expresso que basta a declaração de pobreza. Assim e uma vez apresentada declaração de pobreza pelos interessados, a escritura de separação ou do divórcio consensual deverá ser lavrada sem nenhum ônus aos interessados. Qualquer insistência contrária, por parte dos Cartórios, ensejará, pela parte prejudicada, a impetração de mandado de segurança ou suscitação de dívida ao inverso ao Juiz de Registro Público ou reclamação funcional à Corregedoria de Justiça, com o escopo de ver restabelecida a ordem jurídica.
Parece-nos, também, que, diante da faculdade legal de as partes interessadas optaram entre o divórcio ou separação consensual na Justiça ou no Cartório Extrajudicial, as Defensorias Públicas Estaduais deverão se adequar a esta nova realidade, sob pena de negar assistência jurídica integral aos necessitados.
Para finalizar, também numa interpretação sistemática, finalística e teleológica da Lei nº 11.441/07, perfeitamente possível é a sobrepartilha e o restabelecimento da sociedade conjugal por escritura pública e, mesmo existindo a separação judicial, o restabelecimento da sociedade conjugal poderá ser no Cartório de Notas, o mesmo acontecendo com a separação judicial, que não inibe o divórcio consensual por conversão administrativo cartorário.
5. Bibliografia
ALBUQUERQUE, J.B. Torres. Inventários, Partilha, Separações e Divórcios Consensuais. São Paulo: JLA Editora e Distribuidora, 2007.
CÃMARA, Alexandre de Freitas. Condições da Ação? In: Escritos de Direito Processual. Rio de Janeiro; Lúmen Júris, 2001.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3ª ed.rev. Atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
FARIAS de, Cristiano Chaves. O Novo Procedimento para a Separação e o Divórcio Consensuais e a sistemática da Lei nº 11.441/2007: O Bem Vencendo o Mal. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: SÍNTESE, IBDFAM, ano VIII, n. 40, p. 48l-71, fev./mar.2007.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume VI: direito de família. 2. ed. rev e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
Newton Teixeira Carvalho é presidente do IBDFAM-MG e juiz Titular da 1ª Vara de Família de Belo Horizonte
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