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CONCUBINATO ADULTERINO: Panorama histórico e disciplina jurídica a partir do Código Civil de 2002
1.PANORAMA HISTÓRICO – 1.1. Povos Primitivos – 1.2. Civilizações antigas – 1.3 Povos bárbaros – 1.4 Idade Média – 1.5 Modernidade. 2. O CONCUBINATO ADULTERINO NO BRASIL – 2.1 Brasil - colônia – 2.2 Do Brasil - império ao Código Civil de 1916 – 2.3 O Código Civil de 1916 e o desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência atinentes ao tema – 2.4 A Constituição da República de 1988 – 2.5 As leis 8.791/94 e 9.278/96 – 3. A DISCIPLINA JURÍDICA DO CONCUBINATO ADULTERINO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 – 3.1 Novo Código Civil de 2002 – 3.2 O concubinato no Código Civil de 2002 – 3.3 A disciplina jurídica do concubinato adulterino no Código Civil de 2002: o retrocesso – 3.4 Concubinato adulterino X Princípio da Monogamia 4. CONCLUSÃO – PONTO DE CHEGADA, PONTO DE PARTIDA 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. PANORAMA HISTÓRICO
1.1 – Povos Primitivos
A poligamia, enquanto caracterizada como relacionamento de uma pessoa com outras várias, pode ser apontada como manifestação primeira do concubinato adulterino.
As primeiras organizações sociais, formadas por pessoas em busca de proteção e alimento, se congregavam em clãs, em que os membros se subordinavam ao líder, escolhido de acordo com os costumes de cada tribo.
Nesse contexto, a família não se constituía, necessariamente, na associação de indivíduos com vínculos consangüíneos ou sócio-afetivos.
Um homem poderia se relacionar com várias mulheres, uma mulher poderia se relacionar com vários homens, sem descartar a provável existência de relacionamentos homossexuais.
Assim, é possível afirmar que os primeiros relacionamentos afetivos entre duas pessoas não se deram sob o signo da exclusividade.
Adahyl Lourenço Dias, citando Nelson Carneiro e Orlando Gomes, escreve que
"(...) a princípio tais relações devem ter sido meramente naturais, como, de resto, acontece em muitas espécies do mundo sub-humano. O desenvolvimento econômico e espiritual dos grupos humanizou-as, provocando a passagem da família como puro fato biológico à condição de fato social humano."
1.2 – Civilizações Antigas
O instinto de perpetuação da linhagem, aliado ao desejo de conservação do patrimônio, fizeram com que, paulatinamente, os indivíduos fossem diminuindo a quantidade de parceiros.
Além disso, o receio trazido pela interferência religiosa, ligado ao instinto natural do amor ao filho, a certeza da prole, a ambição, o desejo de posse afetiva, criaram o princípio do respeito às mulheres pertencentes a um só homem.
Contudo, essa maior censurabilidade aos relacionamentos poligâmicos não se traduziu, efetivamente, na completa reprovação social deles nas antigas civilizações.
Entre pastores habitantes da Caldéia, antes da consolidação da Babilônia, o amor era livre por imposição de normas ou ritos religiosos, nos chamados cultos de Vênus e de Milita.Com a expansão do império Babilônico, o culto a Milita se estendeu a outras regiões de sua influência, inclusive Egito e Pérsia.
Como resultado natural dos costumes da época, a poligamia disseminou-se também entre os hebreus. Todavia, diferenciava-se a concubina adulterina da prostituta, ao mesmo tempo em que a esposa legítima, colocando-a como superior à meretriz e em linha intermediária a concubina.
O povo persa admitia a poligamia, se do primeiro matrimônio não houvesse descendente.
Os gregos, grandes exaltadores do hedonismo, eram essencialmente poligâmicos. Todavia, ao estabelecer-se na Grécia, o sacerdote egípcio Cécrope combateu os costumes sociais dos gregos, ditando regras de repulsa à poligamia, despertando o interesse geral pela monogamia, na base do ciúme e na certeza da filiação. Séculos depois, Sólon instituiu definitivamente a monogamia.
Os egípcios admitiram o concubinato adulterino por toda a época antiga, nos mesmos moldes da lei muçulmana, a qual concede aos homens a possibilidade de relacionar-se com até quatro mulheres ao mesmo tempo.
Apesar de menos freqüente que na Grécia, o concubinato adulterino se fazia presente também na Roma antiga, principalmente entre a plebe. Entretanto, o casamento já se fazia a forma predominante de constituição de família.
Segundo Ana Elisabeth Lapa Wanderley Cavalcanti, existiam as seguintes formas de união na Roma antiga:
a) Confarreatio: casamento entre patrícios, com grande solenidade.
b) Coemptio: casamento entre plebeus.
c) Usus: casamento configurado pela aquisição, pela posse, da mulher por parte do homem por um determinado lapso de tempo, sem que ela se ausentasse na casa do marido.
d) Juris Gentium: casamento em que pelo menos um dos nubentes era peregrino.
e) Contubernium: união de fato entre escravos, ou entre um escravo e um cidadão livre romano, e gerava tão somente um vínculo de afinidade entre as partes.
f) Concubinatus: união livre entre homem e mulher desimpedidos.
As uniões clandestinas entre pessoas já casadas eram consideradas vergonhosas, por serem impuras e contrárias ao posicionamento da família perante Deus, de acordo com os preceitos da Igreja Católica.
Com o advento da lex Julia de adulteriis, Julia de maritendis ordinibus e da lex papia poppaea de maritandis ordinibus, como tentativa de eliminar as uniões consideradas inferiores, é que foram criadas normas rígidas e protetoras do casamento.
1.3 – Povos bárbaros
Entre os gauleses, era comum um homem possuir várias mulheres, que desempenhavam importante papel, colaborando ativamente nas atividades do homem, nas guerras, caçadas e festas.
Contudo, era proibido às mulheres unir-se a mais de um homem.
Na vigência do casamento, o regime de bens adotado determinava que partes dos mesmos fossem excluídas da administração do marido, na proporção do número de suas concubinas adulterinas.
Os germanos prestigiavam o casamento, inadmitindo concubinas adulterinas e punindo o adultério, com exceção dos nobres e chefes guerreiros, que possuíam diversas mulheres.
Como forma de forçar a diminuição do número de relações fora do casamento, os francos privavam aos filhos da concubina adulterina os direitos sucessórios.
Os noruegueses podiam manter concubina adulterina e mulher legítima concomitantemente. A concubina normalmente se convertia em serviçal doméstica, auxiliando a esposa.
Somente com a invasão romana os costumes dos bárbaros foram alterados, principalmente após a ascensão do cristianismo, defensor ferrenho da monogamia.
1.4 – Idade Média
O crepúsculo do Império Romano ocorreu concomitantemente ao crescimento da influência do cristianismo no ocidente.
O imperador Constantino, cristão, tornou ilegais as uniões não oriundas do casamento, e o imperador Justiniano, no Digesto, aboliu qualquer eventual benefício a filhos de concubinos.
Contudo, nos primeiros séculos da Idade Média, o concubinato foi de certa forma tolerado, a ponto de, nos dizeres de Adahyl Lourenço Dias, "invadir os conventos ameaçando os alicerces do clero".
O Bispo de Mayença, ciente da situação, endereçou correspondência ao Papa Zacarias, expondo-lhe relatos sobre a imoralidade que invadia os conventos, a promiscuidade de bispos e diáconos, que pernoitavam com quatro ou mais concubinas.
Batista de Melo, citado por Adahyl Lourenço Dias, escreve que o Papa João XII e Leão X instituíram tarifas nas quais um adultério era absolvido com o pagamento de 87 francos e 3 soldos.
Desse modo, entende-se que, durante a Idade Média, a união entre pessoas impedidas de se casar era apenas aparentemente combatida, porém não oferecendo grandes resistências diante do poder do dinheiro.
1.5 – Modernidade
O Concílio de Trento, realizado pela Cúpula da Igreja Católica entre 1545 e 1563, regulamentou o casamento religioso como união legítima entre homem e mulher.
Já o casamento com efeitos civis foi regulamentado pela primeira vez na Holanda, também no século XVI.
Assim, faz-se importante salientar que apenas a partir da instituição do casamento civil é que, como assevera Edgard Moura Bittencourt, a união entre duas pessoas, na qual pelo menos uma já é casada, passa a existir também no campo da ciência do direito como relacionamento ilícito.
Dessa forma, a instituição do casamento civil representa um marco histórico na delimitação do concubinato adulterino, que desde então deixou de ser somente um relacionamento com características poligâmicas, ganhando contornos de instituto capaz de produzir efeitos jurídicos.
Remontam a meados do século XIX as primeiras decisões judiciais a apreciar pretensões de concubinas diante da ruptura da relação concubinária adulterina. Edgard Moura Bittencourt aponta que essas pretensões eram fundamentadas na tese da existência de sociedade com caráter nitidamente econômico ou na tese de obrigação natural, quando o concubino, rompendo as relações, prometia à concubina certas vantagens.
Esse autor aponta como marco doutrinário na defesa das pretensões da concubina o julgado de 18 de dezembro de 1833, do Tribunal de Rennes, França: uma concubina adulterina ingressou em juízo alegando ter contribuído para a formação do patrimônio do concubino falecido, requerendo assim a partilha dos bens. O Tribunal concedeu a ela a quarta parte dos bens deixados pelo de cujus, a título de serviços prestados e da contribuição de seus bens no acervo comum.
Nesse talante, decisões judiciais posteriores prendiam-se ao pressuposto da existência de uma relação comercial entre homem e mulher, à margem do concubinato, sob a égide da proibição do enriquecimento sem causa.
No início do século XX, passou-se a reconhecer o direito a indenização da concubina segundo a teoria da obrigação natural, mediante a comprovação de que o concubino tivesse iludido ou usado de manobras escusas para ludibriar a concubina.
A proibição do enriquecimento sem causa, a teoria da sociedade de fato e da obrigação natural, postulados que serão melhor delineados adiante, apesar de invocados para amparo dos concubinos adulterinos no século XIX, continuam a fundamentar decisões judiciais sobre o tema neste início de século XXI.
2. O CONCUBINATO ADULTERINO NO BRASIL
2.1 – Brasil - colônia
Assim como nas civilizações primitivas mencionadas no item 1.1 deste estudo, a poligamia também é característica marcante nos relacionamentos dos primeiros habitantes do Brasil.
Em meados do século XVI, Padre Anchieta identificou que a mulher indígena convivia tranquilamente com o fato de que seu homem tomasse outra ou várias mulheres, já que ela também tinha a liberdade de tomar outro como seu.
Gilberto Freyre aponta que o comportamento polígamo dos indígenas brasileiros ofereceu substrato para a expansão da tendência dos portugueses de viverem com muitas mulheres, adquirida após séculos de dominação moura na península ibérica.
Essa tendência se faz acentuar ainda mais quando se leva em conta a relação de subordinação que o português imprimiu ao indígena e ao negro, fazendo-os muitas vezes objeto de suas taras e sadismos, estabelecendo relação de poder que muitas vezes se prolongava no tempo e na concomitância de um casamento. Contudo, essa relação jamais poderá ser considerada como concubinária adulterina, já que caracterizada a existência de coação de uma das partes sobre a outra.
Para Freyre, a poligamia foi elemento preponderante para o povoamento do território nacional, uma vez que, num primeiro momento, o número de europeus era escasso, e apenas a hibridização da população possibilitou a abertura do caminho para o adentramento dos colonizadores nos rincões do país.
As Ordenações do Reino de Portugal, vigentes à época e aplicável também nas colônias portuguesas, proibiam veementemente qualquer relacionamento amoroso que não fosse fundado no casamento.
As violações a essa proibição eram encaradas como condutas pecaminosas e criminosas, com cominação de penas pecuniárias e de degredo para as colônias portuguesas.
A essa época, em Portugal, denominavam-se os concubinos adulterinos como barregã e barregueiro, nomenclatura também utilizada nas Ordenações.
As Ordenações Afonsinas, vigentes de 1.441 a 1.521, determinavam em seu título VIII do Livro V que o homem que trouxesse à corte sua barregã perdia seus subsídios enquanto com ela estivesse, caso fosse funcionário do rei; se não fosse, seria degredado, assim como a barregã.
O título XII do livro IV dessa legislação prevê que a esposa legítima do barregueiro poderia revogar e reaver para si qualquer doação ou venda dele para a barregã.
As Ordenações Manuelinas, vigentes de 1.521 a 1.603, previam que todo homem casado que mantivesse relacionamento concubinário adulterino merecia a morte, pena também aplicada às mulheres casadas que mantivessem outro relacionamento.
O título XXV do livro V dessa mesma compilação previa que o homem casado que mantivesse uma barregã era condenado a quatro anos de degredo e ao pagamento do valor correspondente à quadragésima parte de seus bens, penas as quais poderiam aumentar em caso de reincidência.
Já as Ordenações Filipinas, vigentes de 1.603 a 1867, preservaram os mesmos dispositivos das Ordenações Manuelinas atinentes ao tema, e acrescentaram em seu título XXIX do livro V que a mulher do barregueiro poderia demandar civilmente o que a barregã porventura tiver retirado do seu lar.
Contudo, como bem assevera Gilberto Freyre, a necessidade do português de povoar o território colonizado acarretou uma maior tolerância aos relacionamentos não oriundos do casamento, uma vez que,
" Refletiu-se nas leis portuguesas o problema de escassez de gente ao qual parece às vezes ter-se sacrificado a própria ortodoxia católica. Vemos com efeito a Igreja consentir, em Portugal, no casamento de juras, ou secreto, consumado com o coito; e as Ordenações Manuelinas, e depois as Filipinas, o permitirem, considerando cônjuges os que vivessem em pública voz e fama de marido e mulher. Uma grande tolerância para com toda espécie de união que resultasse o aumento de gente. Uma grande benignidade para com os filhos naturais. Na própria Espanha, notaram viajantes dos séculos XVI e XVII que havia o maior desprezo pelas leis contra a mancebia, educando-se juntos, em muitas casas, filhos legítimos e naturais. Nem se alegue o ascetismo dos frades e padres como obstáculo aos interesses nacionais e imperiais de povoamento e de geração. O concurso de grande parte, senão da maioria deles, à obra de procriação, foi tão generosamente aceito em Portugal que as Ordenações do Reino mandavam que as justiças não prendessem e nem mandassem prender clérigo algum, ou frade, por ter barregã."
2.2 – Do Brasil – Império ao Código Civil de 1916
O livro V das Ordenações Filipinas, que regulava o tratamento do concubinato adulterino também no Brasil, foi revogado pelo Código Criminal do Império de 1831.
O artigo 294 desse Código tipificava como crime a poligamia, entendida como a conduta de contrair matrimônio duas ou mais vezes, sem ter dissolvido o primeiro, cominando penas que variavam de um a sete anos de prisão.
Já o artigo 250 desse diploma previa o crime de adultério, no qual incorria a mulher casada que tivesse encontros amorosos com outrem que não seu cônjuge, ou o homem casado que mantivesse concubina adulterina, assim como aqueles que participaram da consumação do crime, com penas previstas de um a três anos de prisão.
O jurista Lafayette Rodrigues Pereira, em sua obra Direitos de Família, referência para a redação do Código Civil de 1916, salientava o caráter distinto da conduta delituosa do adultério do cônjuge varão e do cônjuge virago: para que fosse caracterizado o adultério do virago, bastava-se a ocorrência de um mero encontro furtivo com outrem que não seu marido; para a caracterização do adultério por parte do varão, era necessária a manutenção, por parte dele, de uma concubina adulterina, de modo que meras infidelidades fugazes não o qualificariam como adúltero.
O Decreto nº 5.604, de 25 de abril de 1874, criou o registro civil dos casamentos no Brasil. Contudo, apenas em 1888, com o Decreto nº 9.886 é que surgiu a obrigatoriedade deste registro para a validade de todos os casamentos celebrados no país.
Já durante o período Republicano, o Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, previa em seu artigo 82, § 1º, que o adultério poderia ser fundamento do pedido de divórcio. O artigo 83 deste mesmo decreto previa que o adultério poderia deixar de ser motivo para o divórcio, caso a ré fosse o cônjuge virago e tivesse sido violentada; se houvesse concorrência do autor para a ocorrência do crime, e quando sobreviesse o perdão, presumido pela continuidade de coabitação do cônjuge inocente com o culpado do adultério.
Além disso, essa norma ainda teve importância salutar, no sentido de que instituiu o casamento civil, como a única forma legítima de constituição de família.
Em 11 de outubro do mesmo ano, entrou em vigor o Decreto no 847, denominado Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, o qual manteve em seu artigo 279 o mesmo conteúdo do artigo 250 do Código Criminal do Império.
Já no que tange à esfera cível, a esta época, ainda sob o signo das disposições das Ordenações Filipinas, o doutrinador Lafayette Pereira já tecia balizas significativas para o norteamento do Código Civil de 1916.
Defendia a proibição de eventual casamento entre cônjuge adúltero e seu cúmplice após a morte do cônjuge inocente, mesmo que nada tivessem a ver com esse fato.
Além disso, coadunava com a possibilidade de divórcio nos casos de adultério, a não ser nos casos em que é resultado de violência ou erro escusável, quando um dos cônjuges concorreu diretamente para o adultério do outro, ou quando ambos incorressem no mesmo delito.
Esse autor também prelecionava a respeito dos deveres do casamento, entre eles o da fidelidade recíproca. A respeito da fidelidade da mulher, asseverava que:
É inegável, contudo que a infração de tal dever por parte da mulher reveste um caráter mais grave: primeiro porque ela, em razão de seu sexo e das idéias recebidas, é obrigada à maior recato, e pois sua falta fere mais pronunciadamente a moral e os bons costumes; segundo porque a sua infidelidade pode dar lugar ao nascimento dos filhos adúlteros e destarte introduzir no seio da família elementos de perpétua luta e desordem.
2.3 – O Código Civil de 1916 e o desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência atinentes ao tema.
Com edição prevista desde a outorga da Constituição de 1824, o primeiro Código Civil Brasileiro passou finalmente a vigorar desde 1o de Janeiro de 1917, dando fim à vigência das Ordenações Filipinas no que dizia respeito à matéria cível.
Este diploma, em seu artigo 183, sem apresentar grandes diferenças no conteúdo normativo que já apresentava as Ordenações Filipinas, postulava que não podiam casar:
Inciso VI – As pessoas casadas; a esse respeito, Clóvis Bevilaqua justificava a inclusão deste dispositivo no Código com a afirmação de que "em todo o ocidente, a família é fundada sobre a monogamia, modo de união mais puro, mais conforme os fins culturais da sociedade, e mais apropriado à conservação individual tanto dos cônjuges quanto da prole".
Inciso VII – O cônjuge adúltero com seu co-réu, por tal condenado; nesse sentido, Bevilaqua asseverava que "o Código destaca o adultério do homicídio, e não faz depender o impedimento da promessa de matrimônio ainda em vida do cônjuge ultrajado. O adultério por si só merece a condenação social, e o direito recusa-se a legalizar uma bigamia de fato que, despudoradamente, afronta a moral pública. Não quer, porém, que uma cominação dessa gravidade seja tomada por vagas suposições ou mexericos dos malévolos. Exige a condenação judicial, em ação proposta pelo cônjuge inocente, com fundamento no artigo 279 do Código Penal".
Neste momento, faz-se importante salientar que a esta época ainda vigia o Código Penal de 1890, que dava tratamento diferenciado à conduta caracterizadora do crime de adultério, caso ele fosse cometido pelo cônjuge varão ou pelo virago, como já demonstrado no item 2.3 do presente estudo.
O Código Penal de 1940 manteve o adultério como crime em seu artigo 240. Entretanto, a partir de então, para a consumação do crime, bastava a mera violação do dever de fidelidade, mesmo que de forma fugaz, para ambos os cônjuges. Portanto, a partir de então, o adultério enquanto crime deixa de ser relevante na temática do tema em estudo, já ele definitivamente deixa de se confundir com o concubinato adulterino, mesmo que essa confusão só ocorresse no que tangia à infidelidade do varão.
Durante a vigência do Código Civil de 1916, o concubinato adulterino se confundia com o companheirismo, sendo comum a denominação de todos os partícipes de uniões livres simplesmente de concubinos.
Edgard de Moura Bittencourt, por exemplo, conceituava o concubinato como:
Em poucas palavras, o concubinato é a união estável no mesmo ou em teto diferente, do homem com a mulher, que não são ligados entre si por matrimônio.
(...)
Segue, do sentido amplo de concubinato, desde a posse do estado de casado, com notoriedade e de longos anos, até a união adulterina, tudo se inclui na conceituação. Tudo, nesta ou naquela condição, é concubinato.
Com o passar do tempo, foi sendo dilapidada a distinção entre a união estável, considerada um concubinato puro, e o concubinato adulterino um concubinato impuro.
Paulatinamente o companheirismo foi ganhando mais respeitabilidade, garantindo às uniões livres conversíveis em casamento certa aceitação social e jurídica, principalmente no tocante ao direito trabalhista e previdenciário.
O mesmo não se deu com o concubinato adulterino. Apesar do enorme impacto social que ele representa, doutrina e jurisprudência, em sua maioria, possuem a tendência de ignorar o instituto, seja pelo entendimento de que não há possibilidade de produção de efeitos jurídicos, seja pela simples crença de que o instituto não merece a menor consideração no âmbito jurídico, seja pela dificuldade de encarar tema tão complexo.
O Supremo Tribunal Federal, nas poucas vezes em que teve de enfrentar o tema, optou por negar qualquer efeito jurídico ao concubinato adulterino:
"Sociedade de fato em concubinato: resultando este de adultério, que a lei repele como crime, não pode ter efeitos de natureza patrimonial e não provada a participação efetiva da mulher na formação do patrimônio do concubino, casado e com filhos, não tem a concubina direito a meação dos bens do companheiro, pertencentes ao seu casal." ( Rec. Ext. nº 81.707 – RJ, Rel. Min. Cordeiro Guerra, à unanimidade. DJ 12/09/1975)
A referida ementa explicita as formas de tratamento das uniões livres à época: pela teoria da sociedade de fato, a teoria da proibição do enriquecimento sem causa e na teoria da prestação de serviços.
A teoria da sociedade de fato se espelha no direito societário, levando em conta que nas uniões livres há uma união de interesses e bens que une as partes. Por força desta teoria, as partes, teriam direito a receber parte dos bens e valores, no caso de ruptura do vínculo entre eles.
Segundo a teoria da vedação do enriquecimento sem causa, a ninguém é lícito locupletar-se com o prejuízo alheio, mesmo que o acúmulo de bens se dê em situação moralmente reprovável, como no concubinato adulterino.
Com base nesta teoria, em 1985 o Ministro do STF, Aldir Passarinho, apesar de vencido em seu voto, ponderou sensatamente sua decisão no sentido de que:
"(...) A mim parece, data vênia, que não tem suporte em qualquer princípio de moralidade é que venha a concubina a perder tudo aquilo que reconhecidamente foi fruto de seu labor, empregado na aquisição do imóvel juntamente com aquele que era seu concubino, vindo este e sua esposa a ficar com tudo, mediante uma manobra sobremodo ardilosa e condenável". (Rec. Ext. nº 143.775 – RS, Rel. Min. Aldir Passarinho, por maioria, DJ 17/09/1985)
Por fim, a teoria da prestação de serviços leva em conta o esforço das partes durante a vida em comum, lhes outorgando indenização correspondente a prestação de serviços. Foi a saída muitas vezes encontrada para os casos em que inexistia patrimônio formado durante a união.
Mesmo que represente uma garantia aos concubinos adulterinos diante do término do relacionamento, a aplicação destas teorias ao caso concreto perpetua o tratamento indigno e hipócrita do instituto do concubinato adulterino, já que, como brilhantemente afirma Maria Berenice Dias, "a repulsa aos vínculos afetivos concomitantes não os faz desaparecer, e a invisibilidade a que são condenados pela Justiça só privilegia o 'bígamo'".
Assim, a aplicação dessas teorias não coaduna de forma alguma ao paradigma do Estado Democrático de Direito, inaugurado pela promulgação da Constituição da República de 1988, da qual falaremos a seguir.
2.4 – A Constituição da República de 1988
A promulgação da Constituição da República de 1988 constitui um marco para o Direito de Família brasileiro.
A redação do artigo 226 desta carta constitucional implica na enumeração da família como ente central da tutela constitucional, e não mais o casamento. Desse modo, cai por terra o dogma segundo o qual o casamento seria a única fonte legítima da família, dando espaço ao reconhecimento de outras entidades familiares, tais como as famílias monoparentais e as constituídas pela união estável, expressamente citadas neste artigo.
Nesse talante, o foco da proteção constitucional não se refere essencialmente à família consangüínea; a família protegida pela Constituição da República de 1988 é aquela "essencialmente funcionalizada à dignidade dos seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.".
Em outras palavras, a família só merecerá proteção do Estado na medida em que se fizer meio de promoção da dignidade e desenvolvimento da personalidade daqueles que a compõem.
Dentro deste contexto, surgiram duas correntes opostas: a dos que acreditam que o artigo 226 da Constituição da República tem caráter taxativo, compreendendo como entidades familiares apenas aquelas oriundas do casamento, da união estável e as famílias monoparentais. Outra corrente, a meu ver acertadamente, defende que o rol das entidades familiares explicitadas naquele artigo é meramente exemplificativo, pelo fato de que a família não pode mais ser considerada organismo inflexível, engessado pelas convenções sociais, justamente porque ela só se justifica enquanto propulsora da dignidade humana, e não por possuir um formato pré-estabelecido.
Nesse sentido, o jurista português Canotilho enumera o princípio constitucional da máxima efetividade, segundo o qual "a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê".
Desse modo, pode-se considerar que um relacionamento caracterizado como concubinato adulterino pode perfeitamente ser considerado uma entidade familiar, caso seja capaz de promover a dignidade e a personalidade dos envolvidos, merecendo assim a proteção do Estado.
2.5 – As leis 8.971/94 e 9.278/96
Em meados da década de 1990, foram editadas duas leis com intuito de disciplinar os relacionamentos não fundados no casamento.
A primeira delas, de nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994, previa em seu artigo 1º que:
"A companheira comprovada de homem solteiro judicialmente, divorciado ou viúvo, quem com ele viva há mais de cinco anos ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na lei n. 5.468/68, enquanto não constituir nova união desde que prove a necessidade.
§Único: Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva."
Este dispositivo teve primordial importância para a disciplina jurídica das entidades familiares não fundadas no casamento, já que pela primeira vez o legislador explicitamente atribuiu aos conviventes a pretensão de pleitear alimentos e direitos sucessórios. Entretanto, como se depreende da leitura do texto legal, neste primeiro momento apenas as entidades familiares não fundadas no casamento em que ambas as partes são impedidas de casar é que foram contempladas com a proteção da lei.
Já a lei 9.278, de 10 de maio de 1996, ao regulamentar o §3º do artigo 226 da Constituição da República não mais utilizou o vocábulo "companheira" para fazer referência às partes de uma união de fato, mas sim "conviventes", sem impor os requisitos previstos no artigo supra mencionado da lei nº 8.971/94.
Dessa forma, o legislador ordinário assumiu uma postura mais abrangente que a de dois anos antes para tratar das entidades familiares, como demonstra o conteúdo do artigo 1º dessa lei:
"É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecidos com intuito de constituição de família."
A partir da leitura deste artigo, é possível concluir que todo e qualquer relacionamento afetivo entre homem e mulher que se dê de forma pública e contínua, com o intuito de constituição de família pode ser considerado como entidade familiar.
Logo, não haveria mais obstáculo legal para o reconhecimento de um relacionamento concubinário adulterino como uma entidade familiar, já que revestido dos requisitos legais; e uma vez revestido dos requisitos legais, tornar-se-ia possível aos concubinos adulterinos, em caso de rescisão da união, pleitear alimentos e divisão de bens adquiridos por esforço mútuo, assim como todos aqueles que constituíram uma entidade familiar.
3. DISCIPLINA JURÍDICA DO CONCUBINATO ADULTERINO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
3.1 – Novo Código Civil de 2002
Em 1.975, foi levado à apreciação da Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 634, elaborado por uma comissão liderada pelo jurista Miguel Reale, prevendo a publicação de um novo Código Civil.
Ao longo do tempo, este projeto foi sofrendo inúmeras emendas e modificações, de modo que apenas em 16 de maio de 1984 foi obtida a aprovação dele na Câmara dos Deputados, unanimemente, quando então foi remetido à apreciação do Senado Federal.
No Senado Federal, em face da transição para o regime democrático pela qual passava o país em meados da década de 1980, com a instalação da Assembléia Nacional Constituinte, o projeto ficou paralisado, uma vez que os senadores entenderam que era necessário aguardar a promulgação da nova Constituição da República, que poderia acarretar mudanças significativas na matéria atinente ao Novo Código Civil.
Assim, somente em 1997, após várias emendas, o projeto foi aprovado no Senado Federal. De volta à Câmara dos Deputados para a votação das emendas realizadas no Senado, a redação final do projeto foi aprovada em 06 de dezembro de 2001, tornando-se lei em 10 de janeiro de 2002, pela sanção do então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ao expor os delineamentos motivadores do conteúdo do projeto, que após 27 anos de tramitação transformou-se em lei, Miguel Reale ressaltou a preferência por legar a disciplina das relações familiares extramatrimoniais à legislação especial e à jurisprudência, por entender que os institutos ainda se encontravam em formação.
No entanto, essa idéia não prosperou, mantendo-se a base da legislação familiarista inserida dentro de um texto codificado. Após a promulgação da Constituição da República de 1988, surgiu a necessidade de adaptar o texto do projeto ao novo paradigma do Estado brasileiro. Desse modo, Miguel Reale aponta que "foi no campo do direito de família que vieram as mudanças essenciais, que por sinal vieram corresponder às emendas de Nelson Carneiro e outros".
Nesse talante, foram realizadas no texto do projeto emendas importantes, tais como a isonomia entre cônjuges e entre filhos, a normatização da União Estável e a evolução do pátrio poder, agora sob a denominação de poder familiar. Contudo, essas emendas não foram suficientes para evitar que o Código Civil de 2002 trouxesse em seu bojo os reflexos da demora de sua tramitação, já que foram omitidos no texto alguns assuntos importantes, como a disciplina jurídica da fertilização heteróloga, assim como das demais entidades familiares inseridas implicitamente no texto constitucional.
3.2 - O Concubinato no Código Civil de 2002
Apesar da preferência do Professor Miguel Reale em tratar apenas da família fundada no casamento em seu projeto de Código Civil, o texto aprovado não deixou de abranger as mudanças trazidas pelas leis 8.971/94 e 9.278/96 (vide item 2.6).
A União Estável foi consagrada neste novo Código, que em seu artigo 1.723 a reconheceu expressamente como entidade familiar, aplicando-se à ela as mesmas prerrogativas dos casados (alimentos, partilha de bens adquiridos em comum, direitos sucessórios).
Além disso, o Código Civil de 2002 apresentou um enorme avanço, por dissociar definitivamente o instituto da união estável do instituto do concubinato, outrora tantas vezes tratados como sinônimos.
O artigo 1.727 deste Código definiu o concubinato como:
"As relações não eventuais entre homem e mulher, impedidos de casar (...)".
A partir da conceituação de cada um dos institutos, percebe-se que o que separa a união estável do concubinato é a conversibilidade ou não da relação em casamento.
As hipóteses de impedimentos para o casamento estão arroladas no artigo 1.521:
Não podem casar.
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com que o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até terceiro grau, inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Dessa forma, percebe-se que todos os relacionamentos que se encaixem nas situações previstas no artigo 1.521 podem ser considerados como concubinato.
Assim, o concubinato adulterino, previsto no inciso VI do referido artigo e tema deste trabalho, é apenas uma das hipóteses de configuração do concubinato.
3.3 – A disciplina jurídica do Concubinato Adulterino no Código Civil de 2002: o retrocesso
Como já dito, inegável reconhecer o avanço representado pela explícita distinção conceitual entre concubinato adulterino e a união estável empreendida no texto do Código Civil de 2002.
Entretanto, cumpre salientar que esta distinção se deu de forma a resguardar apenas aos companheiros as conquistas legais alcançadas pelas entidades familiares em meados da década de 1990, que como já exposto, lhe proporcionaram garantias frente à rescisão da relação, uma vez que, no texto do Código Civil de 2002, não há menção a qualquer espécie de prerrogativa àqueles que se relacionam em concubinato adulterino. Muito antes pelo contrário. Excetuando-se o disposto no artigo 1.727, o concubinato só é mencionado no Código Civil de 2002 para imprimir restrições. Vejamos:
Art. 550 - A doação do cônjuge adúltero a sua cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.
Art. 1.642 - Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livremente:
V - reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino, desde que provados que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes, e o casal estiver separado de fato por mais de cinco anos.
Art.1801 - Não podem ser nomeados nem herdeiros nem legatários:
III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato há mais de cinco anos.
Dessa forma, percebe-se que o texto do Código Civil de 2002 representa um retrocesso no tocante à disciplina do instituto do concubinato adulterino. Esse retrocesso se explicita no trecho de acórdão do de Justiça do Rio Grande do Sul, que reconheceu a existência de uma união estável concomitante ao casamento (configurando tecnicamente um concubinato adulterino) e atribuindo direitos sucessórios à concubina, apenas pelo fato de que a morte do concubino se deu após a promulgação da Constituição da República de 1988, porém antes da vigência do Código Civil de 2002:
Inicialmente, salienta-se que o relacionamento amoroso entre N. e A. iniciou, conforme se depreende da prova dos autos – testemunhal e nascimento da primeira filha – em julho de 1980, findando com o falecimento dele, ocorrido em 20 de junho de 1996.
Por conseguinte, projetou-se além do início da vigência da Constituição Federal de 1988, que, por seu art. 226, § 3º, outorgou a condição de entidade familiar à união estável.
Desse modo, como o relacionamento em pauta teve parte de sua vigência e o seu término sob o pálio da Constituição Federal de 1988, a ele se aplica pacificamente o texto constitucional; por outro lado, iniciou e findou sob o comando do Código Civil de 1916, não sendo atingido pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o Novo Código Civil.
Em face disso, não se está, aqui, diante de caso de reconhecimento do concubinato previsto no art. 1.727 do novo Código Civil, tampouco de aplicação dos artigos elencados pelos apelantes do novo Código Civil, o que leva a examinar o presente feito com base no instituto da união estável reconhecido pela Constituição Federal de 1988." (AC nº 700.156.934.76 TJRS, Rel. Des. José S. Trindade, datado de 20 de julho de 2006).
Uma vez que o Código Civil de 2002 não atribuiu ao concubinato adulterino as mesmas prerrogativas inerentes às demais entidades familiares, resta apenas aos concubinos adulterinos, em caso de controvérsias geradas com o fim da relação, seja pela rescisão, seja pela morte, o recurso ao direito das obrigações.
O retorno ao direito das obrigações faz com que ressurjam teses jurídicas completamente obsoletas e contrárias ao paradigma atual do Estado brasileiro: a da sociedade de fato e a da indenização pelos serviços prestados, em face da proibição do enriquecimento ilícito.
Levando-se em conta que existe entre concubinos adulterinos uma comunhão de afeto e da promoção da dignidade, e não da riqueza ou do lucro, é absurdo o enquadramento do relacionamento no conceito de uma sociedade.
A indenização por serviços prestados revela-se ainda mais perversa, pelo fato de que a pretensão indenizatória pressupõe a existência de dano; mais grave ainda, pressupõe que o que existiu não foi uma relação baseada no afeto, e sim uma relação de mais-valia, de troca de favores (sexuais, principalmente), evidenciando ainda mais o estigma que o concubinato adulterino carrega.
3.4 – Concubinato adulterino X Princípio da Monogamia
Um dos maiores entraves à atribuição das prerrogativas atinentes às entidades familiares no ordenamento jurídico brasileiro ao concubinato adulterino é o argumento de que essa proteção feriria o princípio da monogamia.
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, o princípio da monogamia "não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador."
Este princípio, de forma sucinta, imprime a proibição da existência de relacionamentos extraconjugais..
Como assevera o autor supra, o concubinato adulterino, mesmo que considerada entidade familiar, caracteriza-se como relacionamento simultâneo ao casamento, por conseguinte violador do princípio da monogamia, e que por isso não poderia ser protegida pelo Estado.
Contudo, essa falta de proteção acaba por violar um outro princípio, o da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro.
Ao não reconhecer os direitos inerentes às entidades familiares também ao concubinato adulterino, dá-se espaço para a ocorrência de toda sorte de injustiças, como por exemplo, o enriquecimento ilícito da família institucionalizada do concubino casado, e mais grave: o encorajamento da infidelidade conjugal, uma vez que não haverá para o adúltero nenhuma conseqüência de ordem patrimonial.
Desse modo, a fim de que não se empreenda a injustiça, a mácula maior do Estado Democrático de Direito, deve-se priorizar a essência da entidade familiar em detrimento da forma, caso a caso, já que a busca pela ética nos relacionamentos não pode sucumbir ao moralismo arraigado.
4. CONCLUSÃO - PONTO DE CHEGADA, PONTO DE PARTIDA.
Poligamia, adultério e concubinato adulterino não se confundem. É certo que todo concubinato adulterino começa com o adultério, que por sua vez caracteriza um relacionamento como polígamo; mas ele não para por aí. Para que um relacionamento possa ser caracterizado como concubinário adulterino, é necessária a comunhão de interesses, de afeto; certa notoriedade social, e principalmente, que seja perene.
A análise da perspectiva histórica do instituto permitiu vislumbrar que a poligamia, enquanto elemento caracterizador do relacionamento concubinário adulterino existe desde os primórdios da humanidade, obtendo reconhecimento e relativa aceitação social em determinados momentos históricos.
Contudo, o concubinato adulterino deixou de ser mero fato social para ganhar status de instituto jurídico apenas quando da instituição do casamento civil, na Holanda do século XVI.
Pelo estudo dos costumes sociais no Brasil colonial, foi possível mensurar a enorme influência dos relacionamentos meramente polígamos e até mesmo dos concubinários adulterinos na formação da identidade nacional do país, uma vez que a existência deles foi preponderante para o povoamento do território brasileiro.
Como demonstrado, estes costumes sociais não coadunavam com a expressa proibição de relacionamentos extramatrimoniais, havendo inclusive previsão de sanções penais em caso de descumprimento dessa proibição, tanto nas Ordenações do Reino de Portugal quando na legislação do Brasil Império.
A legislação do início do Estado brasileiro acentuava o caráter de inferioridade com o qual era a mulher tratada, uma vez que, segundo o Código Criminal de 1831 e o Código Penal de 1890, era muito mais fácil para uma mulher incorrer em adultério que para o homem, uma vez que segundo essa legislação, para o cônjuge varão, adultério e concubinato adulterino eram sinônimos. Somente na redação do Código Penal de 1940 é que esta distinção deixou de ser utilizada.
Por outro lado, constatou-se que a temática do concubinato adulterino enquanto instituto de direito permaneceu por muito tempo desprovida de uma análise mais aprofundada, que superasse o juízo de valor depreciativo e excludente, tanto por parte do legislador quanto da doutrina e da jurisprudência.
A invisibilidade jurídica a que o concubinato adulterino foi relegado acabou por fomentar soluções completamente inadequadas para conflitos oriundos da rescisão do relacionamento: o "empréstimo" de institutos do direito societário e do direito das obrigações.
No entanto, restou demonstrado que o desprezo e a exclusão a que são submetidos concubinos adulterinos não podem prosperar em um ordenamento jurídico inserido no Estado Democrático de Direito, fundamentado pelos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, e que possui como base a família; não aquela essencialmente fixada por formalidades legais, mas sim aquela que, pelos laços afetivos, instrumentaliza a promoção de cada pessoa como cidadã plena.
Neste sentido, o texto do Código Civil de 2002 efetua uma involução no tocante à disciplina jurídica do concubinato adulterino, uma vez que consagra apenas à União Estável as conquistas asseguradas pelas entidades familiares no final do século XX.
Pode-se apontar como causa preponderante dessa involução a grande demora na tramitação do projeto de lei que deu origem a este novo diploma, já que permitiu que ocorressem grandes descompassos entre o texto legal aprovado (formulado há várias décadas) e a realidade fática em que essas normas são aplicadas.
Nesse talante, o legislador imprimiu tratamento jurídico ao concubinato adulterino em consonância aos ditames do Código Civil de 1916 (que estava submetido a influências doutrinárias do século XIX), e não com o paradigma introduzido pela Constituição da República de 1988.
Ademais, o próprio Miguel Reale, receoso das implicações da demora da aprovação do Novo Código Civil, já salientava que o novo diploma deveria ser obrigatoriamente lido tendo como base três diretrizes: "o sentido social, e sob alguns aspectos, até mesmo socializantes; forte impacto de natureza ética a fim de que se possa realizar a justiça social; cláusulas abertas que favoreçam a adequação à justiça do caso concreto, em vez de opção sistemática por um rigorismo formal que bloqueia a força expansiva dos valores jurídicos."
Dessa forma, na aplicação do direito ao caso concreto, deve-se buscar a verdadeira intenção do legislador, que como demonstrado, visa dar uma ampla abrangência ao sentido da norma, de modo a permitir que o maior número possível de relações jurídicas sejam contempladas com a proteção legal, harmonizando a lei ordinária com o objetivo traçado pelo poder constituinte originário de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Assim, deve-se levar em conta que, mesmo considerado moralmente repreensível, o concubinato adulterino representa um relacionamento com conseqüências jurídicas relevantes, que não podem ser ignoradas, sob pena de se perpetuar um ciclo de injustiças e de falta de ética, que não se pode mais admitir.
Portanto, desde que fique caracterizada a comunhão de afeto entre as partes, não há óbice para o enquadramento do concubinato adulterino no rol das entidades familiares, objeto de proteção pela Carta Magna de 1988, independentemente de comprovação de aquisição de patrimônio pelos concubinos.
E como entidade familiar, concubinos adulterinos têm direitos subjetivos diante da dissolução da relação, como o de pleitear alimentos e partilhar os bens adquiridos pelo esforço mútuo na constância da união.
Por isso, devem ser consideradas inconstitucionais todas as normas que contém algum comando restritivo à entidade familiar constituída pelo concubinato adulterino, uma vez que se colocam contra o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro.
Urge dar novo tratamento às entidades familiares em geral, e ao concubinato adulterino em particular: um tratamento ético, digno e humano, isento de hipocrisias e juízos de valor, no qual se privilegie o conteúdo do relacionamento afetivo, e não a forma pela qual ele se constitui.
A família é um fato natural, primordialmente. Encerrar esse fato natural e em constante evolução dentro de um arcabouço normativo fechado e excludente é dar espaço ao cometimento de injustiças de toda ordem. A família deve ser encarada como o ambiente de afeto propiciador da dignidade e da cidadania de cada um, e não como estrutura juridicamente construída.
O legislador deve se preocupar em instrumentalizar a proteção do indivíduo enquanto membro de uma entidade familiar, mesmo que essa entidade familiar seja socialmente estigmatizada (como o concubinato adulterino), e não em impor restrições que perpetuem exclusões e preconceitos.
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Fabiana Meira Maia é sódia do IBDFAM e bacharelanda em Direito pela UFMG
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