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O DIREITO CIVIL EM NOSSAS VIDAS
Em Nossa existência respiramos direito civil. Desde a concepção até a morte somos por ele regulados. Como uma espécie de corregedor de todos os nossos atos, o direito privado fiscaliza a nossa travessia terrena, observando e avaliando cada comportamento, nada escapando de seu olhar, mesmo aquelas condutas inconscientes e irrefletidas.
Durante quase duzentos anos, acordamos e dormimos contando com a fidelidade do mesmo direito civil. Seguro, preciso e apto a lidar com os conflitos intersubjetivos.
Porém, o direito civil vive um momento de evidente perplexidade. Os últimos vinte anos foram férteis em desconstruir mitos. O tão propalado período pós-moderno é rico na edificação de incertezas, mas extremamente econômico na produção de respostas para tamanha insegurança em que nos encontramos.
Do primeiro ao último dos livros do Código Civil presenciamos tal estado de coisas.
Ao tempo da concepção extra ou intra-uterina já se indaga se temos ou não os direitos da personalidade: já somos pessoas ou apenas projetos de pessoas? A resposta a esta pergunta envolve uma série de dilemas bioéticos como a viabilidade do aborto voluntário, a antecipação de fetos anencéfalos e a manipulação para fins de pesquisa e terapia de células-tronco de embriões inviáveis ou congelados. Se filósofos e cientistas não respondem a estas questões de maneira uniforme, o que pensar da ciência do direito...
Adquirir um veículo, alugar um terreno, consertar um eletrodoméstico, atos tão prosaicos do dia a dia são relações obrigacionais nas quais se afirma um débito (prestação) e uma eventual responsabilidade perante o seu inadimplemento. Será que no estágio atual de desenvolvimento do direito é possível que o descumprimento da obrigação enseje a subtração do patrimônio mínimo do ser humano? O direito civil acautela o mínimo essencial, aquele piso vital de bens que permite-nos preservar a nossa especial dignidade, a ponto de não sermos coisificados em face de uma relação patrimonial.
Ao realizarmos um contrato, já não basta que tenhamos utilizado a nossa liberdade para nos submetermos implacavelmente aos termos do pacto. A liberdade de uns é freqüentemente inferior a de outros, e o direito privado entende que a vontade do declarante já não é mais importante que a confiança inspirada no declaratário. Daí se indaga se a autonomia negocial é abalada pela boa-fé objetiva. Outrossim, um contrato sadio para as partes pode ser pernicioso para a coletividade e o direito civil nos remete a uma função social do contrato. Até que ponto a segurança jurídica pode ser relativizada?
Para mantermos a condição de proprietários, não basta que o imóvel esteja registrado em nossos nomes. Uma propriedade sem função social não possui legitimidade e será sancionada pelo ordenamento jurídico. Da mesma forma uma posse provida de função social pode mesmo prevalecer sobre uma propriedade ociosa.
A responsabilidade civil se divorcia do binômio ato ilícito/culpa. O ordenamento não compactua com comportamentos revestidos de uma capa de licitude, mas cuja finalidade é ilegítima a ponto de ferir os limites éticos do sistema. Outrossim, em uma sociedade de riscos, é natural que lei volte as suas lentes para a tutela da vítima, em uma irrefreável tendência de objetivação da obrigação de indenizar.
A família patrimonializada e hierarquizada, cujo núcleo era o casamento e a paternidade dos filhos oriundos do matrimônio, foi fragmentada em diversas entidades familiares, alicerçadas no afeto e na proteção da personalidade de seus membros. O acesso à paternidade se converte em construção cultural, assim como a determinação daquilo que possa ser considerado como família, mesmo em pares do mesmo sexo. O fim da entidade familiar cada vez mais se distancia do exame da culpa e penetra na simples aferição do desamor.
O momento da sucessão também sofre transformações. O cônjuge sobrevivente recebe tutela superior por parte do direito civil, reduzindo-se a autonomia do outro testador para dispor do patrimônio em vida. A doutrina reconhece idêntico status patrimonial ao companheiro, apesar do conservadorismo dos dispositivos do Código Civil nessa seara.
Enfim, ler os sete livros do Código Civil é perceber que o direito privado não mais almeja ser o continente. Temos orgulho de reduzir nossas pretensões e dimensões e nos transformamos em apenas uma ilha. As dúvidas que possuímos - e não são poucas - demandam do civilista uma árdua tarefa: migrar ao continente constitucional e se submeter a filtragem de seus princípios. Aí talvez teremos a aptidão de reconstruir um direito civil solidário, no qual a ponderação de interesses possa paulatinamente oferecer respostas à dinâmica instável que a vida nos conduz.
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