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Sucessão: Cônjuge Casado no Regime da Separação de Bens não concorre com os descendentes
O novo Código Civil trouxe importantes inovações no direito sucessório, especialmente modificando a situação do cônjuge sobrevivente, que passou a ostentar a qualidade de herdeiro necessário (art. 1.845).O cônjuge será chamado à sucessão em terceiro lugar na ordem da vocação hereditária e também nas hipóteses de concorrência previstas nos incisos I e II do art. 1.829.A interpretação do art. 1.829 vem se revelando um tema de muita controvérsia no Direito das Sucessões.
A alteração da ordem da vocação hereditária, em relação ao direito anterior, beneficiou o cônjuge sobrevivente que, mesmo ocupando a terceira classe na ordem da vocação hereditária, passa a concorrer, simultânea e alternativamente, na primeira e segunda classes, respectivamente, com os descendentes e ascendentes do autor da herança.A concorrência do cônjuge sobrevivente com os ascendentes se dá independentemente do regime de bens adotado no casamento; assim como o direito real de habitação será conferido ao cônjuge supérstite, qualquer que seja o regime de bens.Destarte, o direto sucessório do cônjuge sobrevivente só vai depender do regime de bens do casamento na hipótese de concorrência com os descendentes e, é justamente esta hipótese que tem gerado polêmicas em sua interpretação. Assim, como a concorrência com os descendentes vai depender do regime de bens adotado no casamento com o de cujus, nos termos do inciso I do art. 1.829, este dispositivo requer mais profunda análise para sua correta e sistemática interpretação.Aliás, tem se revelado questão intrincada esta referente à interpretação que se deve dar ao inciso I do art. 1.829 do novo Código Civil, segundo o qual a sucessão legítima cabe, em primeira linha, aos "descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares".
A primeira interpretação corrente na doutrina é, de forma majoritária, no sentido de entender que o cônjuge casado no regime da separação convencional de bens (art. 1.687 do novo Cód. Civil) seria herdeiro necessário. Tal entendimento decorre da análise literal e isolada do disposto no art. 1.829, I, do novo Código Civil; asseverando a doutrina, de um modo geral, que o cônjuge sobrevivente só vai concorrer com os descendentes nas seguintes hipóteses: quando casados no regime da separação convencional, quando casados no regime da comunhão parcial e o falecido possuía bens particulares, quando casados no regime da participação final dos aqüestos. É certo que tal enumeração dos diversos regimes de bens determinantes da concorrência hereditária do cônjuge com os descendentes decorre de interpretação a contrario sensu do referido dispositivo legal.
Afirma a doutrina que a lei assegura, como regra geral, o direito de concorrência do cônjuge com os descendentes, estabelecendo as exceções enumeradas pelo dispositivo legal.Segundo Débora Gozzo, o cônjuge não concorre com os descendentes quando casado por regime patrimonial que implica em meação. Isso porque, se concorresse nessas hipóteses, receberia muito mais do que os descendentes. E, no caso dos descendentes não serem filhos do cônjuge meeiro, estes seriam muito prejudicados; pois, além de não sucederem o cônjuge supérstite na meação, ainda veriam a legítima dividida entre o cônjuge supérstite e os descendentes do autor da herança. Segundo Débora Gozzo, historicamente já havia a tendência de se admitir o cônjuge supérstite como herdeiro necessário e concorrendo com os descendentes, quando a ele não cabia meação pelo regime de bens. Diz a referida autora que o atual legislador retomou tanto o previsto no Projeto original de Beviláqua, embora este fosse menos abrangente, quanto o proposto no Anteprojeto do Código Civil de Orlando Gomes, admitindo o cônjuge como herdeiro em concorrência com os descendentes. (Gozzo, Débora. Alves, José Carlos Moreira. Reale, Miguel, coordenadores. Principais controvérsias no novo código civil: textos apresentados no II Simpósio Nacional de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2006) Entretanto, assegurou o Prof. Miguel Reale, supervisor da "Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil", que o cônjuge casado no regime da separação de bens (art. 1.687) não é herdeiro necessário. Alegou o saudoso jurista que a interpretação no sentido de que o cônjuge casado pelo regime da separação pactuada seria herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, se deve ao fato de ter o art. 1.829, I, do Código Civil excluído o cônjuge somente no caso de "separação obrigatória", mas que a interpretação isolada desse dispositivo leva a uma conclusão equivocada, quando o intérprete deveria situar a questão no contexto sistemático das regras relacionadas à questão examinada.
Assim, somente a análise dos dispositivos legais referentes à matéria colocada poderia conduzir à correta interpretação do disposto no art. 1.829, I, do Código Civil. Assim, o Professor Miguel Reale, em artigo publicado no jornal "O Estado de São Paulo" , em 12 de abril de 2003, analisou o disposto no art. 1829, inciso I, do Novo Código Civil, entendendo que tanto o cônjuge casado pelo regime da separação convencional de bens, quanto aquele casado pelo regime da separação obrigatória de bens, não são herdeiros necessários na hipótese de concorrência com os descendentes. A análise do Prof. Reale é baseada no princípio primordial de hermenêutica jurídica, que consiste na interpretação de um artigo em harmonia com os demais contidos naquela codificação. Assim, a análise isolada do art. 1829, I, do Código Civil pode levar a uma conclusão equivocada; devendo-se, ao contrário, situar o referido dispositivo no contexto do conjunto das regras relativas à questão examinada.
No referido artigo, seu autor explicou que a idéia de tornar o cônjuge herdeiro foi a de proteger o cônjuge casado pelo regime legal, ou seja, pelo regime da comunhão parcial de bens, no tocante aos bens particulares, não pretendia o legislador incluir na categoria de herdeiros necessários aqueles cônjuges casados pelo regime da separação de bens, obrigatória ou pactuada, já que ambos implicam na "obrigatoriedade da separação de bens". Desta forma, prossegue o saudoso professor afirmando que a expressão "separação obrigatória" é aplicável tanto no caso da separação de bens imposta pela lei (parágrafo único do art. 1641) quanto no caso de separação de bens imposta pelo pacto concluído pelos nubentes, nos dois casos, o cônjuge não é herdeiro necessário.
Destarte, forçoso concluir que, no caso da separação total de bens pactuada, tendo os cônjuges deliberado pela separação total de bens na vigência do matrimônio, é inadmissível imaginar-se que com o fim do casamento pela morte de um deles, seja alterado o regime pactuado, permitindo que o cônjuge sobrevivente venha a receber bens de exclusiva propriedade do autor da herança. Resumindo, admitir-se a condição de herdeiro necessário ao cônjuge sobrevivente casado no regime da separação total de bens (pactuado ou legal), implicaria em revogação tácita do art. 1687 do Código Civil.Nesse sentido a interpretação do Prof. Miguel Reale:Nessa ordem de idéias, duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma delas é a prevista no parágrafo único do art. 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens.A obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão "separação obrigatória" aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art. 1.641.Essa minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que – se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança – estaríamos ferindo substancialmente o disposto no art. 1.687, sem o qual desapareceria todo o regime de separação de bens em razão do conflito inadmissível entre esse artigo e o de n. 1.828, I [na realidade, art. 1829, I], fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio da unidade sistemática. (O Estado de São Paulo: São Paulo, 12 de abril de 2003, p.2).
Assim, segundo o Prof. Miguel Reale, o legislador não deveria ter usado a expressão "separação obrigatória", posto que, de fato, não pode concorrer à sucessão tanto aquele que é casado pelo regime da separação obrigatória quanto o casado pelo regime da separação voluntária. Esta é a melhor interpretação e a mais justa solução para aqueles que se casam pelo regime da separação total pactuada, já que, se as partes pactuaram a separação de bens, muito provavelmente não gostariam que o cônjuge supérstite fosse seu herdeiro em concorrência com os descendentes e, se às partes interessar tal concorrência, poderão fazer doação em vida ao cônjuge ou testamento deixando o disponível para o cônjuge.Interpretação diversa causará impensáveis prejuízos e conflitos para aqueles que precisam, por situações peculiares, constituir família com base em pacto pré-nupcial. Ora, nessas hipóteses, em que as pessoas se encontram em situação particular que exige o pacto, estas não hesitarão em lançar mão de testamento ou de doação em vida ao cônjuge para defendê-lo, se assim o quiserem, posto que não estão tais pessoas dentre aquelas avessas a testamentos e pactos antenupciais.
Assim, para essas pessoas não serve a interpretação corrente na doutrina de que a lei é que deve regulamentar a vida civil de todos, já que a maioria das pessoas é avessa a pactos e testamentos, ao contrário, aqueles que fazem pacto antenupcial não se encontram na situação fática da maioria e por isso precisam tomar providências para regulamentar sua vida civil: fazendo pactos antenupciais, testamentos, etc. Assim, parece-nos que o entendimento expresso pelo Prof. Miguel Reale traz a melhor e mais justa solução para os conflitos e interesses das partes, além de estar em maior harmonia com os demais dispositivos atinentes à matéria.
Ademais, não precisa a lei impor o cônjuge casado pelo regime da separação de bens (legal ou pactuada) como herdeiro necessário para a sua proteção, posto que sempre poderão os cônjuges, querendo, deixar legado ou mesmo instituir herdeiro por testamento, deixando o disponível (ou parte dele) ao outro cônjuge.Ainda, no tocante aos casados pelo regime da separação convencional pura ou absoluta (aquela pactuada entre os nubentes) merece observar que há a possibilidade de um cônjuge fazer doações ao outro durante o casamento, pois, nesse caso (diferentemente da hipótese da separação legal) não há que se falar em eventual burla ao regime de separação de bens imposto por Lei, como assegura José Antonio Encinas Manfré, Regime Matrimonial de bens no Novo Código Civil, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, pág.135.Parece-nos que, ao contrário, tanto no caso da separação legal, em que a lei impõe tal regime para a proteção dos próprios cônjuges ou de seus familiares, quanto mais no regime da separação decorrente de pacto, em ambos os casos é forçoso presumir que a separação de bens é o melhor para as partes envolvidas, não devendo o intérprete da lei plantar discórdias que serão evidentes se formos admitir o cônjuge como herdeiro necessário, quando casado pelo regime da separação de bens (legal ou pactuada).
Ainda no sentido de se dar interpretação sistemática à matéria tratada, é de se ressaltar que o regime de separação de bens expresso no novo Código Civil (art. 1.687) tem como característica a absoluta distinção de patrimônio dos cônjuges, não se comunicando os frutos e aquisições e permanecendo cada qual na propriedade, posse e administração de seus bens, como ensina Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil: direito de família, 4ª. Ed. –São Paulo: Atlas, 2004 – Coleção direito Civil, v. 6, pág.203.Com base na lição de Silvio de Salvo Venosa, pode-se dizer que o novo Código Civil estabeleceu verdadeiramente uma separação de patrimônios, diferentemente do que era disposto no Código Civil de 1.916, que exigia a outorga conjugal para a alienação de imóveis (art.276), o atual Código Civil é expresso no sentido de autorizar a livre alienação dos bens e a administração do patrimônio de cada um dos cônjuges, independentemente do outro, como decorre da interpretação conjunta dos arts. 1.687 e 1647, incisos I a III, já que o inciso IV não se aplica a esta modalidade de regime de bens, em que não existem bens comuns tampouco bens que viriam integrar futura meação (na parte final só se aplica ao regime de participação final nos aqüestos -art. 1.672 a 1.686).
Esse regime de separação absoluta isola totalmente o patrimônio de cada um dos cônjuges, a menos que, na separação convencional, os cônjuges estabeleçam comunhão de certos bens. Do contrário, estabelecida a separação absoluta de bens, há distinção absoluta de patrimônio, estando cada um dos cônjuges livres para dispor e administrar seu patrimônio. Doravante, segundo Caio Mario da Silva Pereira, podem os cônjuges, livremente, alienar ou gravar de ônus real os seus bens, inclusive os imóveis, permanecendo sob a administração exclusiva de cada um. (Instituições de Direito Civil. 14ª. Ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p.237). No Código Civil de 1.916, no dizer de Silvio de Salvo Venosa, obra citada, pág.204, havia uma certa aversão pela separação absoluta de bens e se incentivava a comunicação de aqüestos, já que, se o pacto antenupcial não fosse expresso acerca da distinção absoluta de patrimônios, haveria a comunhão de aqüestos, nos termos do art. 259 do referido diploma legal.
Tal posicionamento não mais existe no atual Código Civil que, ao contrário, prevê a absoluta separação do patrimônio e da administração deste patrimônio por cada um dos cônjuges.Ora, se o novo Código Civil, ao disciplinar o regime da separação legal e convencional de bens decidiu pelo total isolamento do patrimônio dos cônjuges, dispensando a outorga uxória e afastando inclusive a comunhão de aqüestos, não se pode conceber o entendimento de que os cônjuges casados sob o regime da separação voluntária ou convencional de bens seriam herdeiros necessários, concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao disposto no art. 1.687 do referido diploma legal. Assim, não faz sentido interpretar-se isoladamente o art. 1.829, I, do Código Civil para admitir o cônjuge casado pelo regime da separação de bens convencional pura ou absoluta como herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, posto que tal interpretação não se coaduna com as inovações introduzidas pelo novo Código Civil com relação ao regime de separação de bens, no sentido de dar maior independência aos cônjuges na disposição e administração de seus bens, sem as restrições que existiam na codificação revogada.
Ainda merece ressaltar que, atualmente, não são mais irrevogáveis os regimes de bens pactuados, em face da inovação trazida pelo novo Código Civil (art. 1.639, parágrafo 2º), não devendo o legislador impor o cônjuge casado pelo regime da separação voluntária ou pactuada como herdeiro necessário, já que as partes envolvidas têm muitos caminhos para defender o cônjuge supérstite. Assim, na constância do casamento, se as partes envolvidas entenderem que o regime pactuado deve ser alterado, poderão pedir motivadamente a alteração à autoridade judiciária, nos termos do disposto no art. 1.639, parágrafo 2º, do Código Civil. E, como se vê, se as partes envolvidas têm um pacto firmado no sentido de não terem bens comuns e, se não pediram a alteração do regime pactuado, não fizeram doação ao cônjuge durante o casamento e não deixaram testamento ou legado para o cônjuge supérstite, quando poderiam fazê-lo, não deve o legislador ou o intérprete da lei impor o cônjuge supérstite como herdeiro necessário concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao regime de separação de bens pactuado.
Segundo Karime Costalunga, o novo Código Civil ao tratar o Direito Pessoal, fundamentado em altíssima dose de pessoalidade, apresenta dois dispositivos de enorme importância nas relações pessoais e patrimoniais de Direito de Família e Sucessões, quais sejam: a cláusula geral da comunhão plena de vida (art.1.511) e da exclusividade (art.1.513). Tais dispositivos devem ser considerados pelo aplicador da lei na esfera das relações pessoais, com nítida relação com os Direitos de Personalidade de suma importância para o Direito de Família e Sucessões. Assim, seja qual for o regime de bens escolhido, o modelo de família que traz o novo Código Civil é aquele fundado na comunhão plena de vida, de modo que uma família seja estruturada com base no afeto e na realização pessoal de seus membros, refletindo sua união material e espiritual no desenvolvimento da personalidade dos seus membros.
Afirma a autora que se facultar ao casal decidir sobre o regime de bens está de acordo com as premissas do princípio da exclusividade, deveria, necessariamente, haver a coerente projeção dessa faculdade no Direito Sucessório. Entretanto, a previsão legal de incluir o cônjuge como herdeiro necessário, inclusive se casado pelo regime da separação voluntária, está em dasacordo com o princípio da exclusividade e, em conseqüência, acaba por ferir a lícita autodeterminação em matéria patrimonial, contradizendo a própria finalidade do regime de separação de bens. Por essa razão, tal regra não pode ser interpretada de modo divorciado dos demais princípios e regras do Ordenamento, atingindo, assim, direito de personalidade, afetando a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional fundamental. Assim, na conclusão de Karime Costalunga, "a imposição de sucessão como herdeiro necessário àquele matrimoniado pelo regime da separação total de bens constitui um desrespeito para com o cidadão e com o modelo de família pelo qual optou, bem como seu desejo de não comunicar os patrimônios trazidos para a união" (COSTALUNGA, Karime. O art. 1.829 e a Constituição: proposta de uma análise estrutural e axiológica. In Mário Luiz Delgado; Jones Figueiredo Alves (org.).
Questões controvertidas no direito de família e das sucessões, 1ª. ed., São Paulo: Editora Método, 2005, vol.3, p.397-415).Ainda na mesma esteira, para se dar proteção à personalidade do morto, personalidade que permanece para várias eficácias para além do momento da morte biológica, o que justifica o tratamento dos direitos da personalidade post mortem, com base no direito geral de personalidade, constitucionalmente deduzido do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, torna-se impositiva a análise do art. 1829, I, do Código Civil de acordo com a Constituição e com as diretrizes teóricas do próprio Código Civil, segundo entendimento de Judith Martins-Costa e Miguel Reale. Para resumir a questão, em respeito a princípios constitucionais decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana, e os seus corolários no plano negocial, ou seja, o princípio da autonomia privada e da conseqüente auto-responsabilidade, bem como da confiança legítima, matriz da boa-fé, é de se dar interpretação ao art. 1.829, inciso I, do Código Civil no sentido de preservar o que foi pactuado pelos cônjuges no pacto antenupcial, é nesse sentido o parecer publicado in RTDC, vol 24 pág.205-228, de autoria de Miguel Reale e de Judith Martins-Costa, cuja conclusão passamos a transcrever:"Com efeito, pensamos que não faria o menor sentido (I) assegurar-se constitucionalmente às pessoas a proteção de sua dignidade, na qual se inclui a autodeterminação; (II) garantir-se a tutela de sua personalidade; (III) possibilitar-se aos cônjuges a lícita escolha do regime da separação total de bens; (IV) facultar-se que expressem tal ato de autonomia em pacto antenupcial, dotado de publicidade e eficácia de oponibilidade perante terceiros; (V ) alterar-se, respeitantemente ao Código de 1916, a regra relativa à outorga conjugal para a alienação de seus bens, dispensando-se a outorga conjugal quando da alienação ou constituição de ônus reais sobre imóveis; (VI) determinar-se, no Código, que a vida do casal é regida pelo "princípio da exclusividade", sendo defeso a terceiros ou ao Estado interferir nas escolhas licitamente feitas quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar; para, ao final, dar-se ao indigitado art. 1.829, inciso I, interpretação que contraria todas aquelas premissas e nega os efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido.Cremos, mesmo, que tal interpretação contraria as "balizas de licitude" dos negócios jurídicos postas no art. 187 do Código Civil, de modo especial as da finalidade econômico-social do negócio e da boa-fé."Como afirma Maria Berenice Dias, a igualdade e a liberdade são os princípios que sustentam o dogma maior de respeito à dignidade humana, e assegura que há uma afronta ao princípio da liberdade ao se facultar a escolha do regime de bens e introduzir modificações que desconfiguram a natureza do instituto e alteram a vontade dos cônjuges. Assim, não seria razoável não disponibilizar a alguém qualquer possibilidade de definir o destino que quer dar a seus bens, como fez o codificador ao impor o cônjuge casado sob o regime da separação pactuada como herdeiro necessário.
Destarte, segundo o seu entendimento, já que o legislador cometeu inconstitucionalidades, cabe aos juízes fazer justiça, posto que descabido que se curvem às "aberrações legais". A única saída seria reconhecer a inconstitucionalidade das exceções posta no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, quiçá de todo o art. 1.829.(Pós-escrito – filhos, bens e amor não combinam! Consideração sobre o novo instituto da concorrência sucessória. In: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Rodrigo da Cunha Pereira (coordenadores). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.439-454).
Pelo exposto, parece-nos que o melhor entendimento é no sentido de afastar a concorrência do cônjuge supérstite com os descendentes no caso de casamento pelo regime da separação legal ou pactuada, devendo prevalecer tal entendimento por estar em consonância com os demais dispositivos legais ligados à matéria, atendendo à interpretação sistemática, essencial à interpretação de um código que se apresenta sempre como uma "unidade sistemática", na qual a interpretação de um artigo pode implicar na interpretação de vários outros, não devendo fazê-lo com sacrifício de seus princípios formadores, menos ainda em dissonância com princípios constitucionais. Referências bibliográficas:COSTALUNGA, Karime. O art. 1.829 do Código Civil e a Constituição: proposta de uma análise estrutural e axiológica. In: Mário Luiz Delgado; Jones Figueirêdo Alves (org).
Questões controvertidas no direito de família e das sucessões. São Paulo, 2205, v. 3, p.397-415.DIAS, Maria Berenice. Pós-escrito - filhos, bens e amor não combinam! Considerações sobre o novo instituto da concorrência sucessória. In: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Rodrigo da Cunha Pereira (coordenadores). Direito das sucessões e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 439-454DELGADO, Mário Luiz. Controvérsias na sucessão do cônjuge e do convivente. Uma proposta de harmonização do sistema. In: Mário Luiz Delgado; Jones Figueiredo Alves (org.). Questões Controvertidas no direito de família e das Sucessões, vol. 3, São Paulo: Editora Método, 2005, p.417-446.GOZZO, Débora. ALVES, José Carlos Moreira. REALE, Miguel, coordenadores Principais controvérsias no novo código civil: textos apresentados no II Simpósio Nacional de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 73-98.MARTINS-COSTA Judith. REALE, Miguel, Casamento sob o regime da separação total de bens, voluntariamente escolhido pelos nubentes. Compreensão do fenômeno sucessório e seus critérios hermenêuticos. A força normativa do pacto antenupcial. Revista Trimestral de Direito Civil, vol 24, p.205-228, Rio de janeiro: Editora Padma, outubro/dezembro 2005.MANFRÉ, José Antonio Encinas. Regime Matrimonial de bens novo código civil, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Direito de herança: a nova ordem da sucessão, São Paulo: Saraiva, 2005.PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 5.REALE, Miguel. O Cônjuge no novo Código Civil. O Estado de São Paulo, São Paulo, 12 de abril de 2003.VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 4ª. ed. São Paulo: Atlas, 2004, v.6.
Celina de Sampaio Góes é Promotora de Justiça de Família e sócia do IBDFAM-SP
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