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Paternidade e patrimônio
Quando o menino entrou na sala de audiência, logo mirei seu jeito: porte igual, o cabelo azeitado, a empáfia, cutuquei o cliente e avisei num sussurro: "perdestes a causa".
O juiz sorriu e olhou sobranceiro na espera do reconhecimento; a cópia era autêntica, um clone antecipado, nem era preciso exame de sangue; testemunhas, para quê? A investigação de paternidade pode ter surpresas, mas alguns axiomas estão sumulados, tanto se repetem no cotidiano forense e nas páginas dos processos.
Um deles é que a mãe do autor dificilmente se engana em apontar quem explorou sua intimidade; mesmo a mulher promíscua não titubeia, ou necessita teste ou cálculo para indicar ao advogado o nome suspeito; claro, há exceções levadas ao folclore.
E outras situações que a jurisprudência aguarda como a ação proposta contra diversas pessoas, resultado possível em festas de arromba ou bailes funqueiros, aonde a sedução da madrugada e o feitiço da música embalam a permuta e incentivam a variedade.
Também com expressiva liderança os autos registram a gravidez sôfrega resultante de único e furtivo acontecimento; é fato que impressiona; como se naquele solitário instante a pulsão dos hormônios cedesse aos cheiros primitivos que acasalavam os avoengos da floresta.
A busca da filiação é uma garantia constitucional, e a descoberta da ascendência se inscreve entre os direitos da personalidade, como se disse em outros textos. A ação proposta pela jovem abandonada é a resposta ao sonho que se desvaneceu e lenitivo à frustração, assim como a da companheira exilada é o grito pela família em projeto; a declaração da paternidade é um selo que tutela a pessoa desamparada e a prole em gestação.
Ressoa nesses dias algo que se entroniza como um teorema assustador e com visibilidade: a patrimonialização da demanda. A estatística dos tribunais é surda em investigações contra indivíduos sem recursos, embora seja natural o anseio à historicidade genética; ninguém deseja saber de um pai pobre, nem mesmo para completar a certidão.
E isso mais se acentua no desnível econômico entre o suposto pai e quem registrou o investigante, criando-se abominável comparação entre um desconhecido com posses e alguém que teve apenas desvelo e afeição; e agora relegado ao desprezo, quando o filho ambicioso ou a mãe interesseira preferem investir mais na fortuna que no amor.
A ciência jurídica contemporânea tem a desbiologização como fator preponderante na aferição da paternidade, debruçada hoje na ternura e no afeto. Muitos veredictos valorizam a paternidade sociológica em desfavor de outras pretensões; e no futuro hão de admitir a pesquisa da ancestralidade genômica apenas para a prevenção de doenças hereditárias, como acontece em outras nações.
Não ofende a razoabilidade imaginar-se, então, que havendo um pai registral e comprovada a existência de paternidade socioafetiva, o provimento na ação investigatória intentada contra terceiro aquinhoado sirva apenas para satisfazer mera curiosidade ou interesse médico de seu autor.
É o modo de sepultar a monetarização do parentesco.
José Carlos Teixeira Giorgis é desembargador aposentado e sócio do IBDFAM
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