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Indivi-dualidade
O trabalho na Central de Conciliação das Varas de Família da Comarca de Contagem, cuja função primordial é a realização das audiências de tentativa de conciliação, vem sendo realizado há quatro anos, e é feito nos ditames legais, preservando o "segredo de justiça". As ações encaminhadas pelos Juízes são do tipo: separação judicial consensual ou litigiosa, divórcio consensual ou litigioso, dissolução de sociedade de fato, regulamentação de guarda e visitas, alimentos, revisional e exoneração de alimentos, investigação de paternidade e etc.
A audiência é conduzida por um Conciliador estudante de Direito acompanhado de outro Conciliador, estudante de Psicologia, e sempre que necessário, conta também com a participação da Supervisora/Psicóloga da Central.
Percebo, enquanto Supervisora/Psicanalista, que no decorrer das audiências as partes precisam falar de suas supostas razões e argumentos, no intuito de provar suas verdades. Verdades repletas de falas passionais que parecem, em tese, confundir aquele que as ouve.
A Lei é cuidadosa, mas não trata, em princípio, da subjetividade envolvida em cada uma dessas ações, que trazem questões que deveriam ser analisadas também no aspecto emocional. Em função disso, surgiu , a necessidade de interação entre Direito e Psicanálise, com a intenção de dirimir ou administrar conflitos de forma mais assertiva e particular.
Na referida Central de Conciliação, acontecem, em média, vinte audiências de tentativa de conciliação, diariamente, e nelas podem ser ouvidos discursos e relatos repletos de significantes, que devem ser escutados também sob o prisma da Psicanálise.
Realizam-se também reuniões semanais em que é feita uma espécie de supervisão dos casos tratados, discutindo-se os relatos das partes e dirimindo-se as dúvidas técnicas, sempre em parceria (Direito e Psicanálise). Assim, na pauta destas reuniões estão inseridas aulas de Direito de Família, ministradas por uma profissional da área jurídica, Coordenadora da Central, e claro, aulas de Psicanálise aplicada ao Direito de Família, ministradas pela Supervisora/Psicanalista.
No tocante à Psicanálise, aprendemos a escutar os atos falhos cometidos pelas partes, os lapsos e passamos a observar, inclusive, a postura corporal destas pessoas que muitas vezes dizem algo, querendo falar sobre outra coisa, que até elas mesmas desconhecem. Dentro deste contexto, surgem as manifestações inconscientes, passíveis de serem escutadas, (e que nos servem como pistas) para que o próprio sujeito envolvido numa ação de família possa perceber esse "desconhecido".
Portanto, na Central de Conciliação das Varas de família, a palavra é dada às partes.
Observamos que no tocante às ações de separação e divórcio, quando convidadas a falar, as partes revelam até mesmo as fantasias do início do relacionamento, onde a idéia ou o objetivo do enlace amoroso era: "fazer dois com um". Um sonho romântico, naturalmente. Na cerimônia do casamento, muitas vezes elas ouviram e acreditaram que seria possível se transformarem em "um só corpo, uma só carne".
Vale lembrar que a etimologia da palavra "cônjuge" está entrelaçada a algo sobre "canga", que pode ser entendido como: "debaixo do mesmo jugo".
Num segundo momento, aquele casal que estivera apaixonado, experimenta um descontentamento diante do projeto tão perfeito e idealizado que era "sermos um só".
Assim surge a idéia da separação judicial. E lá vão as partes magoadas, confusas, decepcionadas com alguma coisa que não pode ser explicada em palavras ou não pode ser entendida apenas no significado puro do discurso. Elas partem então para a procura de "seus direitos".
Diante da separação iminente, a dor se apresenta inteira e quase palpável. O lamento é pautado no ocaso da ilusão do encontro com a "cara-metade".
Nas audiências, os ressentimentos, as queixas são expostas e existe uma necessidade das partes de imputarem a culpa ao outro pelo fracasso do sonho cuidadosamente alimentado em outro momento.
A audiência presidida pelos conciliadores é feita com toda a delicadeza que a demanda merece. E as partes (partidas e faltosas) carecem falar. Seus relatos são acolhidos. Existem momentos de calorosos debates, emoções revividas. Pontuações são feitas com todo o cuidado.
O próximo passo é tratar do "acordo". Algumas partes se implicam, percebem as falas nas entrelinhas e, às vezes, acatam a separação, que pode ser convertida em consensual.
As falas e entendimentos são reduzidos a termo objetivamente, sempre preservando o "segredo de justiça". A demanda jurídica é resolvida e sabemos que aquele casal que assina o termo, ou a ata, deverá tratar num outro lugar a questão da individualidade.
É hora de lembrar... _ "Mas o que é mesmo individualidade"?
Constatam-se as perdas, mas, por outro lado, se as pessoas querem encontrar e viver conforme o próprio desejo terão de renunciar (não ao amor, ao companheirismo), mas sim, ao sonho romântico de "dois fazerem um".
A conquista da individualidade não está necessariamente enlaçada na solidão, ou na opção de viver só, mas está atrelada ao fato de se deparar com o que se é e com a constatação de que é possível construir parcerias amorosas sim, desde que cada consorte tenha sua individualidade preservada.
O momento sinaliza uma reconquista, porém desta vez, é uma reconquista individual. É tempo de cuidar da pessoa sozinha que é cada uma. Assim, num outro momento, não por acaso, sempre existirá a possibilidade de se esbarrar de novo com o amor, entretanto, esta nova pessoa não será melhor nem pior que o ex-cônjuge, e poderá ser partícipe de uma nova história mais feliz, onde dois são realmente dois e onde eles possam caminhar lado a lado.
A guisa de sugestão, podemos definir juridicamente estes novos parceiros amorosos não mais como cônjuges e sim como "consortes", até porque o significante partido nos faz lembrar a expressão "com sorte".
Sei que vocês vão dizer: "Ah, esses psicanalistas: pescadores, escravos de palavras"...
Terão dito uma verdade!
REFERÊNCIAS:
BARROS. Fernanda Otoni de(organiz.). Contando "causo"... Psicanálise e direito: a clínica em extensão. Belo Horizonte: Del Rey, 2001
NAZARETH. Eliana Riberti. Psicanálise e Direito: um intercâmbio possível. Revista Jurídica Del Rey. Número 8 – Ano IV- Maio/2002 , pg.20.
PEREIRA. Rodrigo da Cunha. A Sexualidade vista pelos Tribunais. 2o ed. Ver. E atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Direito de família:uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, _____.
ROUDINESCO, Elisabeth, PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Neide Heliodória é Psicanalista/Supervisora da Central de Conciliação das Varas de Família de Contagem e sócia do IBDFAM
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