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Violência doméstica: fim da hierarquia familiar
Em julgamento histórico ocorrido no dia 31/05/07, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) determinou o processamento criminal de marido que agrediu a esposa na cidade de Samambaia, mesmo sem a autorização da vítima. O Tribunal entendeu que o "perdão" da vítima, que continua a residir com o acusado, não pode afastar a responsabilidade penal das "atitudes covardes de homens que resolvem abandonar seu perfil natural de guardiões do lar para se transformarem em algozes e carrascos cruéis de sua própria companheira", segundo voto do desembargador Sérgio Bittencourt, condutor do julgamento. Determinou o Tribunal, assim, que se cumpra a Lei Maria da Penha (Lei 11.340), que entrou em vigor no Brasil no dia 22/09/06, a qual, dentre outras medidas, estipulou que os crimes de lesão corporal praticados nos lares sejam coibidos obrigatoriamente.
É que, apesar da Lei Maria da Penha, a Justiça continuou a arquivar ocorrências policiais (mais de 90%), alegando que o Ministério Público não deve agir para coibir os fatos, pois seria das vítimas o ônus de impulsionar a apuração e autorizar eventual prisão dos agressores. Promotores deixaram de atuar sob a justificativa de que não vale a pena intervir nas questões "privadas", para preservar a "harmonia familiar". Esse entendimento significou o ressurgimento da doutrina jurídica que atribui o direito de correção ao "Chefe da família" para preservar a hierarquia familiar, fundamento que seduziu a Justiça brasileira durante todo o século XX.
Com efeito, para garantir a ordem familiar preconizada pelo Código Civil de 1916, ao seu "Chefe", representado pelo gênero masculino, foi conferido o poder de comando e direcionamento de seus subordinados, esposas e filhos. Tal ordem hierárquica, covarde e perversa, porém, foi abolida em 1988, com a promulgação da Constituição, a qual estabeleceu que a República Brasileira se funda na dignidade do ser humano e que homens e mulheres, por serem absolutamente iguais perante a lei, devem exercer em conjunto o direcionamento familiar, sem que um esteja subordinado ao outro.
Apesar disso, a lei dos juizados especiais criminais de 1995 (Lei 9099), no afã de desafogar a Justiça, retirou do Ministério Público a responsabilidade de punir a violência, ao determinar que os crimes de lesão são de responsabilidade das vítimas. Na prática, os juizados criminais legalizaram a violência, tanto a pública quanto a doméstica, que passou a ser "de menor potencial ofensivo".
Inconformada com a situação, a sociedade brasileira passou a se mobilizar para rechaçar a privatização da violência. A primeira mudança ocorreu em 1999, quando a Lei 9.839 determinou que a lei dos juizados especiais criminais não se aplicaria à Justiça Militar. Assim, passou o Ministério Público a dispensar a autorização das vítimas de crimes de lesão praticados por militares, em sua atividade pública, sendo que a Justiça acatou unanimemente e sem divergências o novo ordenamento, como forma de preservar a hierarquia e disciplina militares. A alteração não se referia à violência doméstica, mas demonstrou a necessidade do Estado assumir sua responsabilidade no combate à violência, em todas as suas formas.
Imbuído desse propósito, o Congresso Nacional aprovou a Lei Maria da Penha. O novo ordenamento também determinou que a criticada lei dos juizados especiais criminais não se aplicaria aos crimes praticados com violência doméstica contra a mulher. Ao contrário, porém, do rápido e unânime acolhimento dispensado à lei dos militares de 1999, grande parte do Judiciário e Ministério Público nacionais decidiram não aplicar a Lei Maria da Penha de 2006. A necessidade de preservar a "harmonia" familiar foi o pretexto para a rejeição da nova lei.
É incrível que a mesma situação jurídica tenha gerado entendimentos opostos. É facilmente constatável que a diferença de tratamento tem sua lógica perversa na discriminação das mulheres. Assim, após oito meses de vigência da Lei Maria da Penha, o espancamento de mulheres segue impune no País. Facadas, quebra de ossos e dentes, hemorragias, deslocamento de mandíbula, afogamentos e queimaduras, fatos considerados "banais" e classificados como lesão "leve", são diariamente arquivados nos fóruns sem qualquer providência estatal.
Por isso, a decisão do TJDF acima citada merece o reconhecimento e aplausos da sociedade brasileira, porque representa, nesse início do século XXI, um passo importante para a implantação da verdadeira harmonia familiar, com base na igualdade (e dignidade) absoluta dos seres humanos. As futuras gerações certamente agradecerão.
Fausto Rodrigues de Lima é promotor de Justiça do DF
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