Artigos
A beatificação do DNA
"A investigação de paternidade costuma escorar-se nas galas da prova pericial convicta que a manifestação de pessoas habilitadas tem o selo da inerrância".
Foi assim no passado com a comparação dos caracteres antropomórficos do filho e suposto pai, a cabeça, a fronte; as orelhas, queixo e dentes; a cor da pele e seus pigmentos; as anomalias pessoais; depois as marcas digitais; fotografias, até incidências psicológicas; e finalmente o exame biológico do sangue.
A descoberta dos grupos sangüíneos trouxe alento à averiguação do parentesco quando se constatou a incompatibilidade entre proteínas portadas pelos glóbulos vermelhos dos indivíduos; um singelo teste de tipagem dos envolvidos leva à exclusão, quando o jogo aponta que o suspeito não é o pai; mas se constitui em prova circunstancial que precisa outro referendo quando afirme que o indigitado pode ser o pai, já que sua carga genômica pode abranger outros.
O desenvolvimento da técnica de transplantes deu cancha a sistema composto por marcadores genéticos integrados nos leucócitos, que se enfileiravam em diversos alelos e que permitiam combinações díspares, assim melhorando as percentagens de exclusão; e que deviam distar milésimos do limite para conquistar o beijo da certeza científica.
Era evidente a paternidade quando o HLA ultrapassasse 99% de probabilidade; muito provável, se bailasse entre 95% e 99%; mas insignificante, se estacionada em 70%.
A revolução aconteceu com o manuseio do alfabeto formado por uma seqüência de bases do ácido desoxirribonucléico existente nos cromossomas; e o uso de sondas que acessam um grande número de regiões ou minissatélites do genótipo onde se decifram as mensagens genéticas, permitindo obter padrões específicos ou impressões digitais do DNA; o exame das bandas colhidas leva a níveis de 99, 999% tidos por impressionantes e definitivos para a imposição de paternidade.
A confiança na técnica e a disseminação de que a prova pericial é proeminente às demais, leva à equivocada conclusão de que o exame por DNA é incontestável, e suficiente para impingir um registro de nascimento.
Embora o prestígio da pesquisa genética não se pode reduzir a pretensão de paternidade a uma chancela de teste de laboratório, sendo necessário construir-se a persuasão judicial com outros elementos, sob pena de transformar-se a jurisdição em secção homologatória dos gabinetes periciais; o que também abalaria o método processual de avaliação, e retorno ao tarifamento aonde a decisão se apóia em prova solitária.
Não é sem razão que a entidade médica recomenda que os laboratórios sejam dirigidos por doutor, com estudos de três anos em DNA forense ou experiência de cinco anos; que a equipe tenha programa de controle e de qualidade; os reagentes guardados de forma apropriada em ambientes equipados; a coleta efetuada com precauções às infecções do meio e ao trato dos servidores; regras de assepsia, estrita segurança e padrões de fidelidade.
Alguns países operam as análises em duplicata, e às cegas, por equipes e dias diferentes, enviados ao juiz da demanda; em outros, se aceitam testes de afirmação.
Embora confortável para o magistrado ordenar desde logo o exame, descansando de audiências e testemunhas, é bom conselho que o comando se fundamente em amostras de responsabilidade dos autos, para não submeter a dignidade da pessoa às seqüelas familiares e sociais que o transtorno pode causar.
A beatificação do DNA não se coaduna com a glória dos altares onde a justiça já tem trono e a verdade busca apostolado.
José Carlos Teixeira Giorgis é desembargador aposentado e sócio do IBDFAM
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM