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Responsabilidade civil na relação paterno-filial*
1. Primeiras palavras
O enfrentamento do presente tema – que me foi especialmente deferido, neste conclave, pela conhecidíssima e eterna gentileza de nosso Presidente, o Dr. Rodrigo da Cunha Pereira – descortinou para mim, ao tempo em que me dediquei a imaginar como construir esta exposição, um panorama tão variado e rico, que não tenho hoje nenhuma dúvida de que se trata de mais um daqueles assuntos que não se esgotam, que não auto-desenham os seus próprios limites, mas, ao contrário, oferecem de modo contínuo e incessante, ao pesquisador, ao estudioso e ao operador do direito, um fabuloso manancial de aspectos que podem ser sempre e sempre percorridos, sem o risco do esgotamento da seiva profícua que o vivifica.
Pessoalmente, na minha atividade acadêmica, tenho dedicado muita atenção e grande esforço de pesquisa à volta da temática da responsabilidade civil, mormente esta conhecida como indireta, da qual se diz ora ser uma responsabilidade subjetiva – por culpa presumida – ora se tende a dizer ser uma responsabilidade objetiva, por se lhe conferir cada vez menos o ônus probatório da culpa. Estou a me referir à responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos seus filhos menores, conforme é a regra da Lei Civil que ainda vige, o Código de 1916, em seu art. 1521, especialmente.
Tem me sensibilizado, igualmente, nesta vertente da relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade, este viés naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.
Mas, dizia-lhes antes, o descortinamento do tema, conforme minha concepção, permitiu-me logo verificar que havia um estreitamento na temática que me fora presenteada, de sorte que a preocupação com a responsabilidade deveria cingir-se à civil e, sob este viés, deveria decorrer dos laços familiares que matizam a relação paterno-filial.
Ora, assim visualizado o tema, impôs-se, prontamente, para mim, esta idéia de que deveria tratá-lo sob as tintas da responsabilidade civil propriamente dita, costurando os conceitos – tão conhecidos, para mim e para tantos dos senhores – da urgência da reparação do dano, da re-harmonização patrimonial da vítima, do interesse jurídico desta, sempre prevalente, mesmo à face de circunstâncias danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputáveis...
E não me satisfiz com esta idealização estrutural, já bem formatada na minha mente.
Pensei ainda mais e concluí que a insatisfação vinha de um fato muito simples: se íamos nos reunir em Congresso de Direito de Família, certamente a pujança do tema deveria – como o sadio ramo de trigo que se enverga ao ritmo do vento, mas não se quebra – inclinar-se para um outro lado e suscitar outra ordem de inquietações, além daquelas (importantíssimas igualmente, não resta dúvida) que se condensa na preocupação com a vítima – quer a vítima de danos produzidos por filhos menores e indenizáveis pelos seus pais, quer a vítima consolidada na pessoa do próprio filho, pela violação de seus direitos de personalidade, principalmente – na recuperação de sua normalidade patrimonial ou moral, como instrumento de superior categoria e valoração, endereçado à mantença da dignidade da pessoa humana.
Pensei então que seria adorável e certamente oportuno revirar os alicerces mais profundos do assunto para trazer à tona as inquietações, as dúvidas, as questões que nem sempre são do interesse imediato do direito, mas que são, indubitavelmente, a sua raiz mediata. Melhor de tudo, pensei, esta busca, ainda que significativamente difícil para mim, revelaria aquela nova maneira de se procurar desvendar e descrever o fenômeno jurídico a partir de sua interface com os fenômenos não-jurídicos que o antecedem.
Este é, senhores, o rico caminho da interdisciplinaridade, que admite – a um agrupamento de pessoas como este nosso de hoje, sob as dobras da diversidade de pensamento, de linhas e de construções científicas, dobras essas que caracterizam e personificam o IBDFAM – que nos sentemos uns ao lado dos demais, sociólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos e homens do direito. Sem castelos ou prisões. Sem moldes pré-estruturados e estratificados. Mas absolutamente abertos à contemplação da vida como ela é, e atentos aos contornos do caminho que leva à realização pessoal e plena de cada um dos homens, enquanto membro do grupo familiar que o abriga e guarda.
E a inquietação intrigante que se encontrava presa dentro de mim, emergiu e expandiu-se, desdobrando-se na mais singela das perguntas: Por que impõe-se – e repercute no Direito de Família – a responsabilidade advinda da relação paterno-filial?
Em que bases extra-jurídicas estariam assentadas as razões, as justificativas e os fundamentos da imposição de tal dever?
Poderia, acaso, a filosofia fornecer alguma base para a discussão da responsabilidade civil na relação paterno-filial?
Poderia, acaso, a psicologia adequadamente explicar qual o liame existente entre pais e filhos, que seja capaz de gerar e de justificar a concretude desta responsabilização, à face de terceiros, mas – e principalmente – à face deles próprios, um em ralação ao outro?
Sim, certamente sim, do mesmo modo como outros segmentos de apreciação e formulação do conhecimento humano, como a antropologia, como a sociologia, e como todas as demais persecuções científicas que tenham por objeto de interesse imediato o homem e sua circunstância relacional humana.
E assim, sob este desenho pré-jurídico, sob esse matiz fundante, sob esta inquietação acerca da raiz, decidi mudar o curso de minha apreciação, a qual lhes trago hoje, deixando-a sob suas mais que competentes considerações e críticas.
2. O arco filosófico da circunstância relacional humana, entre pais e filhos.
Levando o conceito de responsabilidade civil para suas bases mais longínquas, que o confundem com o termo genérico da responsabilidade, e o dever clássico da prestação do devido, a filosofia, por exemplo, tem sim, muito que dizer.
Basicamente, ela tem muito que dizer sobre essa responsabilidade na relação entre pais – ou só o pai, ou só a mãe – e filhos, sempre que a idéia de família estiver presente ou for o centro das suas questões.
Há, a propósito, uma longa história do conceito de família na própria história da filosofia, além da história das instituições civis. E essa é uma história que vem desde os gregos – portanto, desde o início da filosofia ocidental – e que se confunde muitas vezes com a própria filosofia política, com o próprio pensamento em torno do direito e das sociedades.
Já de uma forma muito sofisticada, o tema da família aparece nessa ligação com a política justamente no pensamento político de Aristóteles, quando, em sua Política, apresenta uma explicação da pólis (cidade) como sendo uma associação de várias associações menores, das quais a originária é a família.
A cidade, antes de ser uma reunião de poderes, de instituições, de leis, é uma associação de famílias. Essa concepção aristotélica da cidade como uma reunião de famílias, célebre na história da filosofia política, não prosseguiu, todavia, com grande repercussão desde a Idade Média.
A partir do longo período medieval, a concepção da vida política se verá derivada, em especial, das próprias instituições e da presença efetiva de certos poderes ou autoridades, perdendo-se de certa forma a idéia grega de que a cidade é uma grande família. Mais do que isso, quer no período medieval, quer nos períodos subseqüentes (em especial naquele em que se desenvolve o jus-naturalismo moderno), será possível encontrar longas considerações jurídicas a respeito do que a família é ou deva ser.
Mas há algo na concepção aristotélica que é fundamental, que talvez não convenha esquecer, mesmo quando se desviar a atenção para as concepções mais modernas. Trata-se do seguinte, resumindo este aspecto: Por que a cidade é uma associação máxima que resulta da reunião de outras associações que resultam, por sua vez, da reunião de associações menores que são, enfim, as famílias? Porque, justamente, a família é uma associação natural humana (como a cidade, de certa forma, será de maneira mais complexa), onde as relações dentro dessa associação são naturalmente determinadas. O que permitiria, assim, conceber não só a família, não só a cidade, mas qualquer associação, é a sua condição de elo de ligações naturais.
Há, bem sabe e lembra Aristóteles, vários tipos diferentes de associações, e conseqüentemente vários tipos diferentes de cidades, de famílias e de comunidades de toda ordem. A conseqüência é que, se for o caso de tentar uma classificação dos tipos de cidade ou dos tipos de família, isso só será possível se for definido um critério para a tipologia.
Esse critério é buscado por Aristóteles para a classificação das cidades; e é encontrado não como critério único, mas como critério duplo: primeiro, uma cidade pode ser governada por um só, por poucos ou por muitos; segundo, o governo pode ser puro ou corrompido. Conseqüência: há seis tipos de cidades – três tipos puros (monarquia, o governo de um só; aristocracia, o governo de poucos; politéia, o governo de muitos) e três tipos impuros, corrompidos, que são correspondentes às três formas puras (respectivamente: tirania, oligarquia e democracia).
E para a família? Diferentemente do que ocorre com a cidade, para o caso da família não há critério que permita sua classificação em vários modelos puros; existem, certamente, vários tipos de família, no sentido de que há famílias com diferenciados números de componentes, que se beneficiam ou não de servos, propriedades, etc. Mas, diferente do que ocorre com a cidade (onde o poder pode estar na mão de um só, ou não), no caso da família o comando familiar está sempre nas mãos dos pais, e para certas funções está exclusivamente em poder do pai. Em outras palavras: em Aristóteles, assim como em toda a tradição grega, é um consenso entre os autores a idéia de que são os pais que têm autoridade sobre seus filhos, e que é o marido que tem autoridade sobre sua esposa (ou suas esposas).
Por que essa autoridade masculina, paterna e marital? Porque ela é, como toda autoridade, uma autoridade natural, segundo a visão filosófica de Aristóteles.
Ora, segundo a concepção clássica, então, será por uma necessidade natural humana que os filhos devam obedecer aos pais e a mulher deva obediência ao marido. Se a família antiga, assim, é patriarcal, é porque a natureza inteira o é.
Essa concepção clássica, que obviamente se encontra em completo descompasso com a contemporaneidade, é a concepção que, como se sabe, mais dominou as teorias ou doutrinas em torno da família, por toda a história da humanidade. De fato, Aristóteles está mais presente do que distante em certos aspectos: ainda que nunca mais se tivesse desenvolvido a idéia de que a cidade é uma reunião de famílias, por praticamente toda a história da humanidade se manteve a idéia de que a família é a mais originária das associações naturais, e que sua composição envolve uma autoridade natural dos pais sobre os filhos e do marido sobre a mulher.
Por isso mesmo, pressinto que a análise do tema, a partir de Aristóteles seja relevante, na medida em que deixa claro o que sempre estará em questão, na composição da família: a família é uma associação na qual alguém tem poder sobre outrem, restando saber, primeiro, a quem e por que se deve esse poder e, segundo, se a família não pode ser uma associação baseada em outra coisa que não a dominação ou a dependência.
Sempre que se tratar das relações de família e da responsabilidade envolvida nas relações de família, fundamental será que se trate, também, da base dessa relação.
A inquietação tipicamente pós-moderna assenta-se em buscar a resposta à pergunta: no seio da família da contemporaneidade desenvolve-se ainda, e tipicamente, uma relação de poder ou é possível afirmar, por exemplo, que a ênfase relacional se encontra deslocada para a afetividade?
O tema da responsabilidade nas relações de família envolve necessariamente essa visão clássica da autoridade, para bem ou para mal.
O olhar histórico de contemplação pretérita sobre o assunto admite afirmar que é marcante essa significação da família do passado mais como uma relação de poder do que como uma relação de afeto. Por conseqüência, a família aparece tradicionalmente como uma associação cujos benefícios se dirigem mais para os pais (e mais ainda para o pai ou o marido) do que para os filhos (ou para a mulher).
A tradição patriarcal, de índole francamente autoritária, na concepção das relações de família, pretendeu muitas vezes, e na intenção de justificar-se como instituição civil, fazê-lo por vieses imaginados racionais ou científicos.
E mesmo que uma tal justificação fosse ideológica e impossível, o principal argumento utilizado para a defesa da autoridade do patriarca foi, desde os gregos, a existência de uma hierarquia ou de uma dependência natural. Essa idéia – que está na base das concepções antigas e clássicas de família e que se faz notar principalmente na imposição da autoridade nas relações familiares – curiosamente aparecerá também como índice, no pólo oposto dessa relação, vale dizer, aparecerá como o fator de consagração da responsabilidade dos pais diante dos filhos, assim como do marido diante da mulher.
O que a tradição mostra, enfim, é que a concepção da autoridade é baseada numa idéia de natureza, mas ao mesmo tempo essa idéia de natureza traz uma concepção de responsabilidade muito equivalente.
A primeira explicação para a idéia de que a associação mais primitiva é a família, pode ser vista, ainda em Aristóteles, por meio de sua afirmação de que a família é o resultado da associação daqueles seres que "não podem, por natureza, ficar separados um do outro". Refere-se, o filósofo grego, ao homem e à mulher.
Ou seja: Aristóteles até concebe que as famílias tenham ou não posses, que tenham ou não filhos, mas não concebe uma família sem a idéia de casamento, e muito menos concebe as famílias homoafetivas. A concepção corrente da família brasileira até muito pouco tempo era vulgarmente aristotélica, ainda que a prática da família brasileira fosse muitas vezes o inverso da sua imagem...
E porque o novo Código Civil não incluiu as uniões homoafetivas entre as entidades familiares, talvez seja o caso de dizer que, em termos oficiais, ainda estamos na visão aristotélica de família, onde essa associação originária só é legítima se obedecer ao que a sociedade patriarcal considera normalidade sexual e moral.
Mas enfim, a idéia original é a de que a família é uma associação que decorre da natureza humana, na medida em que decorre de uma necessidade de vida em comum, que Aristóteles, e novamente a tradição posterior a ele, atribuirá à relação entre homem e mulher.
E que relação é essa? Uma relação física, apenas, ou uma relação de dependência?
Aristóteles coloca que é uma relação de dependência, especialmente da mulher em relação ao homem: esta, sozinha, não apenas não é capaz de procriar, como não seria capaz de subsistir, e muito menos comandar uma cidade ou um exército. E não seria capaz por quê? Porque, por sua constituição natural, ela seria mais fraca que o homem, incapaz, enquanto só ele seria capaz, para a prática de certas ações que demandam força e prudência.
Aristóteles quer apontar, portanto, uma deficiência, uma debilidade natural na mulher, visível seja por sua comparação ao homem, seja por sua própria compleição.
Ora, sob o preconceito dessa idéia de que a mulher é fisicamente, mas também racionalmente, inferior ao homem, Aristóteles sequer foi um dos primeiros: a idéia já estivera colocada com todas as letras por Demócrito de Abdera, quando recomendou que a mulher não se exercite na palavra, porque isso é coisa perigosa, ou que ser governado por uma mulher é, para o homem, a suprema violência.
Esse argumento pretensamente naturalista de que a mulher é inferior ao homem hoje nos assusta com sua brutalidade? Pois foi o principal argumento utilizado em quase toda a história da humanidade para tentar justificar o poder patriarcal ou masculista sobre as mulheres. É esse o principal argumento utilizado hoje em dia para justificar a violência doméstica contra as mulheres e meninas no Brasil, assim como a violência generalizada contra as mulheres e meninas em regimes fundamentalistas como o do Taleban, que por uma certa e infeliz contingência tem sido constantemente focado e criticado em nossos dias.
Numa palavra, o argumento da debilidade ou incapacidade natural da mulher é o argumento mais utilizado para tentar justificar a autoridade do homem em relação à mulher dentro da estrutura familiar, ao mesmo tempo que a dependência da mulher em relação ao homem, nessa mesma estrutura.
O nosso tema aqui não é, diretamente, essa relação patriarcalista entre homens e mulheres, entre maridos e esposas, entre pais e filhas, e por isso não é o caso de levar adiante a análise e a crítica dessa concepção irracional que sempre insiste em se manifestar até hoje na concepção dos papéis do homem e da mulher na família.
Mas é fundamental que tenhamos começado por apontá-la, pois ela é a base para aquela outra relação que constitui, aqui, o nosso tema principal: a relação entre pais e filhos.
O que a história mostra, e as histórias do pensamento e das instituições mostram junto, é que, se a relação entre homens e mulheres, em família, foi sempre baseada numa concepção naturalista de dependência e subordinação da mulher, com muito mais razão será apontada uma dependência e subordinação dos filhos em relação aos pais.
Se a própria subordinação da mulher era vista como necessária, mesmo sendo a mulher um indivíduo adulto e experiente, o que dizer então, e sempre, de pessoas que tinham pouca experiência ou não tinham experiência nenhuma? Pessoas que não tinham condições de se manterem sozinhos? Dir-se-á não apenas que dependiam muito mais dos adultos na relação familiar, mas, conseqüentemente, que deviam, na mesma proporção, muito mais obediência.
Se a família, nessa concepção clássica e reiteradamente patriarcal, foi tida como uma relação de poder praticamente despótico, cujo pater era o detentor exclusivo ou principal de todo o poder de decisão quanto à liberdade e o destino dos integrantes da família, então os filhos estiveram, certamente, numa posição muito próxima à escravidão: sua dependência física, material e moral foi eternamente a causa do seu dever incessante de obediência.
Se assim é, o que dizer, então, de uma concepção de família que a vê como uma associação daqueles que não podem deixar de estar unidos (Aristóteles), ao mesmo tempo em que o homem é, naturalmente, o cabeça de sua família (cultura grega, teologia judaico-cristã, direito romano...)?
Nessa associação, o elo de ligação e o índice dos deveres não se indicam pelo amor, não se matizam pela recíproca generosidade, não se caracterizam pela mútua proteção, mas sim se realizam por meio da dominação. E se trata de dominação porque, na concepção patriarcal clássica, jamais haverá um espaço para que a mulher e os filhos assumam, contra a vontade do pai, o posto que deveria lhes corresponder.
O correr histórico desnudará a certeza de que, para se vislumbrar a igualdade de direitos entre homem e mulher – e também entre pais e filhos – na condução da família, serão necessários milênios.
Mas esse longo tempo, necessário certamente para a concepção dessa igualdade de direitos, de certa forma seria necessário, também, para a concretude da própria responsabilidade paterna como um dever dos pais, em lugar de um poder dos pais.
A idéia de responsabilidade paterna que existe hoje não encontra grandes referências nas concepções antigas de natureza humana e de família. É verdade que o mundo antigo concebeu deveres dos pais, dos chefes de família; mas a concepção de responsabilidades civis é muito mais recente. Por quê? Porque, se a simples responsabilidade envolvida no dever de assistência é classicamente determinada pelo poder do pai sobre sua família, a responsabilidade envolvida nos danos decorrentes da má gestão dessa chefia de família não decorre mais do arbítrio desse mesmo pai de família.
Vale dizer: na concepção antiga e tradicional de família, o pater tinha obrigações, mas tinha também poder suficiente para arbitrar quais seriam essas obrigações, já que era senhor de suas mulheres e de seus filhos.
Ao contrário, em concepções mais recentes de família – e que remontam, no máximo, ao início do período moderno – os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado.
3. A concepção jus-naturalista de família e a distinta visualização do pátrio poder.
A partir do Renascimento e da modernidade, ser chefe de família continuou significando deter um poder privilegiado e amplo, mas que já não é mais um poder superior à capacidade – cada vez mais visível – dos outros integrantes da família. A modernidade abre espaço para uma transformação lenta, mas radical, na concepção de família, já que investe pela primeira vez (especialmente no âmbito do jus-naturalismo) na idéia de igualdade entre homem e mulher quanto à capacidade para chefiar a família.
Quem mostra isso com muita ênfase desde a década de 1970 é um dos maiores historiadores do jus-naturalismo, Alfred Dufour. Num ótimo estudo publicado originalmente em 1975, mas retomado e desenvolvido anos mais tarde, denominado Autoridade marital e autoridade paterna na escola do direito natural moderno, Dufour mostra que uma das maiores contribuições do jus-naturalismo foi inovar na concepção dos direitos entre os integrantes da família.
Neste estudo, Dufour mostra que tanto a relação entre homem e mulher recebeu inovações importantes no ambiente jus-naturalista, como também as recebeu a relação entre pais e filhos, ainda que em menor medida. No que diz respeito à relação entre homens e mulheres, autores como John Locke no século XVII, mas também como Christian Wolff, e seu discípulo Daniel Nettelbladt, no século XVIII, investiram na idéia de que a mulher, como o homem, detém uma autoridade natural sobre os filhos, e efetivamente equivalente à do homem.
No que respeitasse, pois, à autoridade sobre os filhos, a mulher teria os mesmos direitos que o homem, e por razões naturais diferentes daquelas que eram alegadas por Aristóteles ou por toda a tradição medieval cristã: a mulher, como o homem, é causa da existência dos filhos, e isso torna a sua autoridade natural. Esta lógica é menos restritiva do que a concepção anterior, mas é ainda, sem dúvida, um reconhecimento tímido do potencial racional da mulher, já que ela não é desenhada, ainda, como uma possível autoridade equivalente à de seu próprio marido.
No que respeita à relação paterno-filial, por outra parte, nota-se que as mudanças serão também visíveis, embora se mostrem menores do que a relativa equalização de direitos ou de autoridade entre homem e mulher. Todavia, apesar do seu menor peso, dar-se-á igualmente, nesta circunstância relacional, uma mudança suficiente para caracterizar, enfim, a concepção da relação entre pais e filhos como uma relação na qual sempre haverá uma responsabilidade dos pais em relação às necessidades dos filhos, a ponto de se poder dizer que é aí que nasce, propriamente, uma concepção articulada de responsabilidade civil na relação paterno-filial.
Esta interferência do jus-naturalismo moderno na reformulação da concepção em tela, ocorrida nos séculos XVII e XVIII, fez com que se realizasse, aos poucos, a noção propriamente jurídica de responsabilidade – que se desenvolve até se tornar responsabilidade civil, no início do século XIX – e também porque é aí, na modernidade, que a condição jurídica dos filhos dentro da família passa a ser apresentada segundo critérios que se pretendem racionais ou científicos, para além dos antigos critérios do costume.
É certo que esta concepção jus-naturalista, assim como traçada, guarda uma grande distância com respeito à concepção contemporânea ou pós-moderna. Contudo, penso que dedicar uma certa atenção à maneira como os autores modernos trabalharam o assunto, pode dizer muito à contemporaneidade, quando somos convidados a considerar a família como uma entidade real, concreta, cuja significação e cujas necessidades talvez não estejam mais definidas unicamente pela lei ou pelo arbítrio do juiz.
4. O desafio da modernidade para demonstrar, racionalmente, os fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus componentes.
Ao tratar da família, os autores modernos tinham, então, o desafio de demonstrar racionalmente quais os fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus componentes. É claro que o tema desta autoridade em família era (como sempre é) um princípio corrente; mas, por mais consensual que fosse a idéia de autoridade marital e paterna, no plano da teoria jurídica havia sempre a necessidade de evidenciar os seus fundamentos. Um dos paradoxos originados dessa tarefa, todavia, foi a revelação, por vezes, de que uma certa prática por quase todos aceita não tinha fundamentos tão racionais, como se poderia imaginar.
Qual efetivamente seria a razão e o fundamento da existência perenizada de um pátrio poder, a significar uma autoridade dos pais sobre os filhos, garantida pelo Estado, e que permite àqueles determinar a vida destes. O que é que, enfim, impulsiona o Estado a conceder e garantir um tal poder?
A argumentação original é, novamente, a que se aperfeiçoa na noção da natureza.
Os filhos vêm ao mundo na dependência completa dos pais, e assim permanecem enquanto não se tornam, eles mesmos, adultos ou emancipados. A dependência natural é tão certa e inegável, que sequer pode ser recusada pelos pais. Perfeitamente compreensível e aceitável.
Mas a questão que insiste em não calar, e que decorre desta singela verdade versa sobre a dúvida de qual seria a origem da autoridade dos pais?
Ou, em outros termos, por que a dependência dos filhos equivale a uma dominação por parte dos pais, a uma autoridade destes sobre aqueles, enfim?
O pátrio poder, justamente, não é um poder acidental, involuntário. Ele é exercido pelos pais como dominação sobre os filhos. Já que é uma dominação, talvez o pátrio poder não envolva nenhum componente afetivo. Ao menos, nenhum componente positivamente afetivo, como a generosidade com respeito aos filhos.
Ao contrário, talvez o seu sentido seja sempre, ou prioritariamente, negativo, no sentido de um aproveitamento ou ‘usufruto’ dos filhos, um exercício desenvolvido – talvez – mais em benefício dos próprios pais, do que para a alegria ou proveito dos filhos. Por que isso? Porque, de ponta a ponta, na relação entre pais e filhos simbolizada pelo pátrio poder, os filhos não têm poder nenhum.
A idéia de pátrio poder, assim, pressupõe algo semelhante à antiga concepção da subordinação da mulher ao homem: ela é devida segundo a natureza. Ela é devida porque a parte dominada na relação é mais fraca, é mais débil... Numa palavra, é dependente da outra.
Talvez.
Mas o que causa esta dependência, de fato? A natureza, como se fosse uma condição sem conserto ou mudança? Ou as circunstâncias, como se fosse uma condição determinada unicamente pela maior força do dominador?
Se a reflexão nos fizer passear os olhos para a história da condição feminina, facilmente observar-se-á que a causa da dependência reside exatamente na segunda opção: o que historicamente determinou, às mulheres, a ausência de direitos e a submissão ao patriarcado foi uma circunstância de imposição pela força, reiterada pelos costumes e pelas instituições, ao mesmo tempo que endossada pelo próprio direito.
Desde a Antigüidade, o homem é caput de sua mulher e das mulheres de sua família. Não porque tenha sido um desejo das mulheres. Mas elas sempre viveram em um mundo dominado por instituições patriarcais, cuja estrutura não permitia a própria modificação.
O mesmo pode ser descrito para a situação dos filhos.
Desde sempre, e com mais forte razão, os pais – mas principalmente o pai – são caput dos infantes. Em parte, por causa de uma concreta dependência dos filhos, que não têm nem forças, nem meios, nem principalmente experiência para emancipar-se na vida. Mas, em parte porque a família foi sempre constituída como um domínio particular de quem o instaurou. O círculo familiar, no qual o chefe de família é senhor dos membros da família, funciona como uma monarquia particular, como bem lembraria Cesare Beccaria, no capítulo 26 de seu tratado Dos delitos e das penas.
A definição tradicional e jurídica de família, então, e por todos os motivos, está muito longe da definição de uma relação afetiva. Ela define diretamente uma espécie muito particular de domínio e dominação.
Na família marcada pelo pátrio poder, como compreender, assim, algum fundamento natural ou racional para a responsabilidade dos pais diante dos filhos?
Se esta responsabilidade, desde o início, diz respeito a uma dependência dos filhos em relação aos pais, então ela é determinada mais pelos filhos do que pelos pais?
Ou determinada mais pelo Estado do que pelos filhos?
Num ou noutro caso, não é, certamente, uma responsabilidade determinada pelos próprios pais, porque não cabe a eles decidir a sua validade ou não. Se lhes coubesse, não seria, então, responsabilidade. Seria assunção volitiva de obrigação.
Há, concretamente, uma condição de dependência dos filhos em relação aos pais que é, sim, uma dependência natural, em dois sentidos: primeiro, porque os pais são causa dos filhos; segundo, porque os filhos, para se manterem, precisam do auxílio dos adultos; e como só existem porque seus pais os deram à existência, são estes que devem ser encarregados da sua subsistência.
A obrigação primeira dos pais em relação aos filhos é, certamente, a transmissão da cultura. Lévi-Strauss esclarece que, para que se passe da natureza (os meros impulsos, o simples biológico, nossa parte mais animal) para a cultura (o humano, o criado), para que se passe do individual para o social, são necessárias três interditos básicos: canibalismo, parricídio e incesto. Dada a condição humana de indefensão, para que os filhos sobrevivam, as suas necessidades vitais primeiras serão satisfeitas pela mãe, por um período relativamente prolongado em relação às outras espécies animais.
Os filhos, assim, são um encargo natural trazido pela união dos pais: o nascimento dos filhos obriga os pais a manterem os próprios filhos, como se os filhos fossem, de certa forma, uma culpa deles próprios, que não incumbe ao Estado assumir. Ou seja, mesmo nos termos em que os filhos dependem dos pais para sobreviver e se desenvolver, não cabe, à luz do viés da Antigüidade que está em foco, tentar enxergar, aí, nenhuma relação afetiva.
Se ela ocorrer também, tanto melhor, é um excedente. Aos olhos do Estado, a relação entre pais e filhos é a de uma sociedade causada por vontades completamente particulares, que não têm poder nem legitimidade para transferir sua causalidade ao Estado, se este não o desejar. Porque causam os filhos, os pais causam, conjuntamente, todos os gastos envolvidos na sua manutenção e desenvolvimento.
Se assim é, raciocine-se: por qual motivo o Estado ou outra entidade que não os próprios pais, poderia ou deveria ser considerado co-responsável nessa criação? Se – e somente se – considerarmos que por nenhum motivo, então, de fato, a relação paterno-filial pode ser avaliada como uma relação de um senhor com seus próprios bens. Apenas isso.
Assim entendida, contudo, a relação paterno-filial não envolve, é claro, o poder paterno de decidir pela vida ou morte dos filhos (isto era coisa dos déspotas antigos), mas envolve, sim, uma precedência na determinação externa da vida dos filhos.
Quem deve decidir o destino e as preferências dos filhos, seria o caso de se perguntar – o Estado ou os pais? Ou, ao menos, quem tem precedência nessa decisão – o Estado ou os pais? Não importa qual seja a resposta que se dê, se a opção for por um dos dois – o Estado ou os pais – se estará, com isso, aceitando a idéia de que os filhos são coisa...
Na verdade, saindo enfim desse plano que concebe a autoridade paterna como pátrio poder, encontra-se o verdadeiro desafio de definir quem deve ter precedência para decidir sobre os destinos da criança ou do jovem atrelado, ainda, à vida em família.
Sem dúvida, a essência da pós-modernidade responde e estampa a concepção contemporânea mundializada, ao menos em sociedades assemelhadas à nossa: é a própria criança ou jovem, sempre, que deve ter precedência na determinação do seu destino. Sempre. Ainda que esteja sob o pátrio poder, ou sob o poder familiar, como prefere a nova Lei Civil Brasileira , ou ainda que esteja sob a dependência dos pais ou do Estado.
Pais e Estado – assim como toda a sociedade, afinal – não podem, em momento nenhum, tratar a criança como coisa só pelo fato de ser ela sem experiência ou sem atividade produtiva, sem maturidade espiritual ou sem autonomia material. A criança, apesar de seu estado de extrema e concreta dependência, é um ser humano como qualquer outro, é um ser desejante e emotivo como qualquer outro, que sente dor diante da crueldade alheia e revolta por não lhe ser concedida a liberdade que é capaz de administrar sozinha. E é por ser dotada desse desejo e dessa necessidade que a criança, enfim, é dotada de dignidade e assim deve ser respeitada. Não respeitar essas necessidades e negar a relevância do desejo é tratar a criança como coisa, é efetivamente ser violento com ela, o que afasta, em definitivo, qualquer relação ética com a criança.
Senhores.
Se é o caso de pensar a responsabilidade na relação entre pais e filhos, vale a pena pensá-la apenas pelo viés do direito ou é o caso de pensá-la a partir especialmente da ética? É o caso de pensá-la em ambos os planos, necessariamente, inclusive porque nenhum deles é válido sem o outro, na consideração da responsabilidade.
Qualquer que seja o tema proposto, a respeito da responsabilidade, ele será um tema tanto jurídico quanto ético. Numa perspectiva ética, como fica essa responsabilidade? Ela não pode, de forma alguma, negar validade ao desejo da criança. O contrário demonstrará a vida em família como uma relação de violência, justamente porque é uma relação de neutralização e de dominação apenas, o que é muito bem mostrado, entre outros autores, por Michel Foucault, em seus vários estudos sobre as relações de poder, mas especialmente a Microfísica do poder e, mais ainda, na sua última obra, a História da sexualidade.
Importante também é verificar que as considerações acerca da responsabilidade na relação entre pais e filhos não devem se reduzir ao fato de se averiguar quais são as obrigações que já existem, ou que decorrem desta relação por sua própria condição e estrutura natural, nem de se averiguar quais são os meios de compensação de danos na má gestão dessa autoridade paterna, por vez patriarcal.
É claro que envolve estes aspectos também, mas de forma alguma deve se restringir a eles, pois, se ficarem, as considerações, restritas a essa perspectiva técnica, talvez não se ampliem satisfatoriamente os horizontes. Talvez seja necessário – e até imprescindível – ir a um ponto outro, de estranha inversão, e verificar que é preciso conhecer o que há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais.
Questão muito curiosa, essa, porque parece inverter a própria idéia de autoridade. Afinal, se alguém tem autoridade sobre um outro, que coisa mais extravagante haveria do que a idéia de que a autoridade é medida por quem está a ela subordinado?
De fato, a questão é extravagante.
Mas será que pode ser garantido algum resultado positivo à questão oposta, que é mesmo a questão clássica, de saber qual é o poder que a autoridade tem por sua própria vontade ou potência? Ao que parece, ela sempre foi útil para conceber a relação dos pais com os filhos como um pátrio poder, como uma relação de dominação dos filhos pelos pais. E sendo apenas isso, os benefícios ou as garantias desta relação, para os filhos, são mais produto da sorte do que das necessidades dos filhos. Ou não?
Deixo essa questão em aberto, porque o mais importante, segundo me parece, é o enfrentamento da outra questão: o que há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais?
5. Os critérios para a definição da autoridade e, conseqüentemente, da responsabilidade paterno-filial, sob o enfoque do jus-naturalismo moderno: o fundamento, a titularidade e a extensão.
Esta questão é, de certa forma, esboçada pelo jus-naturalismo, como mostra Alfred Dufour, no estudo antes mencionado, sendo certo que a partir de então ocorreram algumas inovações de peso na concepção jurídica da relação entre pais e filhos.
Pela primeira vez, provavelmente, apareceu no pensamento jurídico moderno a idéia de que os filhos não são propriedade dos pais, ainda que estejam necessariamente sob sua custódia e autoridade. Não há, entre esses autores do pensamento jurídico moderno, um perfeito consenso em todos os aspectos, mas há pontos em comum que permitem, imagino, uma visão sistemática do conjunto.
O que Dufour mostra em seu estudo é que há três critérios distintos para a definição da autoridade paterna, todos inovadores no sentido de superarem a antiga concepção de que a autoridade paterna é algo inquestionável, ou decididamente arbitrário. Esses três critérios, por terem uma significação moderna, podem soar estranhos à compreensão contemporânea; mas contêm elementos únicos para que a mesma autoridade paterna, e a responsabilidade nessa relação, seja repensada hoje em dia. Os critérios para a definição dessa autoridade, e conseqüentemente das condições da sua responsabilidade, são: o fundamento; a titularidade; a extensão.
A respeito do critério relativo ao fundamento da autoridade paterna, há três formas de expressá-la, segundo o jus-naturalismo moderno: uma fundamentação hierárquica, uma fundamentação convencionalista e uma fundamentação funcional.
A fundamentação hierárquica lembra, em parte, as concepções antigas e consiste na concepção de que a autoridade dos pais sobre os filhos no quadro da sociedade familiar tem como fundamento a natureza. Essa é a posição, por exemplo, de Hugo Grotius (autor do tratado Do direito de guerra e de paz, de 1625), que considera que os pais, por gerarem os filhos, têm direito sobre suas pessoas como quem tem direitos sobre qualquer coisa de que seja o criador. É, na verdade, a primeira das concepções da autoridade paterna desenvolvida dentro do jus-naturalismo e será, em conseqüência, muito combatida mesmo dentro de seus domínios, especialmente porque carrega ainda algo das concepções pré-jus-naturalistas.
Mas ela é inovadora na medida em que coloca como base para a concepção da autoridade a necessidade de um critério que seja racional. Para Grotius, esse critério racional é a natureza, mas a natureza que ele vê é semelhante à que a teologia via quando analisava a relação entre o homem e Deus: já que Deus é o criador dos homens, os homens são como objetos que pertencem a Deus; identicamente, já que os filhos são criação original dos pais, são como que objetos que lhes pertencem, ou cuja liberdade depende diretamente dos pais.
A linha jus-naturalista de pensamento manterá, nos dois séculos seguintes, a idéia de natureza como base para se pensar a liberdade e os direitos; mas trabalhará uma outra idéia de natureza, ou verá, a partir da mesma natureza, outras necessidades e outros direitos, seja para os pais, seja para os filhos.
A fundamentação convencionalista consiste numa idéia que se assemelha muito à concepção jus-naturalista do contrato social, e está presente, por exemplo, no Leviatã (1651) de Hobbes: da mesma forma como a vida em sociedade só existe porque os cidadãos consentem com sua existência, a vida em família também só existe porque os filhos assim o consentem. Mesmo que a família seja uma associação onde há uma certa relação de poder, não à toa muito assemelhada com a relação que um monarca tem com seus súditos, o que ocorre é que esse poder só existe porque os súditos, isto é, os filhos, o aceitam.
A idéia – ainda que bastante curiosa – é reveladora de um certo poder por parte dos filhos, coisa que talvez não se visse em Grotius, e que certamente não se via antes do jus-naturalismo. É uma ousadia gigantesca, em termos teóricos, conceber que há algo na vontade dos filhos que determina o poder dos próprios pais, ainda mais porque se trata de algo que não está sob o poder dos pais: a razão dos filhos, a vontade dos filhos.
Os pais, de fato, podem obrigar as ações dos filhos, mas não podem obrigar sua vontade, seu desejo. Da mesma forma como é inútil legislar a consciência na vida civil, na vida familiar essa tentativa também é completamente inútil. Isso significa, do ponto de vista de Hobbes que, se a sociedade familiar está estabelecida (e ela certamente vem de fatores naturais), é igualmente verdade que a sua continuidade e perpetuidade depende diretamente do arbítrio de quem está abaixo do poder. Ora, este é um modo de análise absolutamente novo na história do pensamento jurídico.
Na mesma linha, um outro autor do século XVII, Samuel Pufendorf, em seu tratado Do direito de natureza e das gentes (1672), dirá que a autoridade paterna é a autoridade mais antiga e a mais sagrada que se acha entre os homens. Ou seja, o que marca a validade dessa autoridade é um valor moral que Pufendorf atribui à autoridade paterna, porque, para ele, o sagrado não é aquilo que decorre do divino, mas é aquilo que é tido como moralmente válido.
É um passo que vai além da simples geração dos filhos como sendo base para a autoridade paterna (como era em Grotius), porque, segundo Pufendorf, o que determina a autoridade dos pais sobre os filhos não é a simples geração, mas a semelhança: há validade na autoridade desde que os filhos sejam semelhantes a nós e estejam, como nós, igualmente dotados daqueles direitos naturais comuns a todos os homens.
Vale dizer, a autoridade paterna tem um fundamento natural que envolve, agora, a moral. Num certo sentido, a autoridade depende, também, dos filhos, porque ela só é válida na medida em que os pais cumprem obrigações perante os filhos. Essas obrigações, se não são impostas pela vontade dos filhos (como talvez fosse o caso em Hobbes), ao menos são moralmente necessárias, e nenhuma autoridade pode ser concebida se não houver, reciprocamente, o cumprimento das obrigações por parte dos próprios pais.
Assim, segundo Pufendorf, a condição paterna envolve moralmente um encargo, do qual os pais não têm como escapar moralmente (ainda que possam dele escapar materialmente).
O que se extrai de Hobbes e de Pufendorf, se tomados em conjunto, é a revelação de que a paternidade, mesmo que envolva um poder sobre os filhos, envolve necessariamente um dever quanto aos filhos. Não importa se em função da vontade dos filhos (concepção de Hobbes) ou se em função da moralidade da própria relação (como em Pufendorf).
Em qualquer caso, não está mais nas mãos dos pais, apenas, todo o arbítrio sobre o valor dessa autoridade e a sua correspondente responsabilidade. Essa idéia é extremamente reveladora, porque mostra a fragilidade a que se pode expor a idéia de domínio dos filhos pelos pais. Esse domínio, sempre que os filhos não o desejarem porque é violento, ou sempre que for contrário à necessidade moral da relação, não pode ser legítimo.
Por seu turno, a fundamentação funcional consiste numa concepção do final do jus-naturalismo que tenderá a ser continuada após o jus-naturalismo moderno: ela considera que a sociedade familiar tem uma finalidade – o sustento e educação ou formação dos filhos – e que a autoridade é válida em função de cumprir essa finalidade.
Se a finalidade é natural ou voluntária, pouco importa; o que importa é que ela é irrecusável, e que nenhuma família poderia ser concebida sem que tivesse como finalidade conjunta a formação dos seus integrantes. Na divisão de poderes e funções dentro da própria família, aos pais cabe, como adultos e ainda como geradores, proverem a formação dos filhos, e a estes cabe obediência na medida em que recebem a formação ou dependem dela.
Caso não mais dependam, todavia, seja da formação, seja dos pais para receber a formação, nada mais de potestativo resta como elo para essa estrutura familiar. Quem formula bases teóricas para uma tal concepção, por exemplo, são jus-naturalistas do final do século XIX, como o inglês John Locke, e outros do correr do século XVIII, como Christian Wolff, Thomasius, Burlamaqui e Barbeyrac.
Uma passagem de Locke, nesse sentido, é esclarecedora: Os filhos, confesso, não nascem [em] estado pleno de igualdade, embora nasçam para ele. Quando vêm ao mundo, e por algum tempo depois, seus pais têm sobre eles uma espécie de domínio e jurisdição, mas apenas temporários. Os laços dessa sujeição assemelham-se aos cueiros em que são envoltos e que os sustentam durante a fraqueza da infância. Quando crescem, a idade e a razão os vão afrouxando até caírem finalmente de todo, deixando o homem à sua própria e livre disposição.
Talvez esta seja, dentre as concepções elementares do jus-naturalismo em torno da relação paterno-filial, a mais próxima da contemporaneidade, mas é importante notar o que ela ainda mantém de essencialmente moderno: a relação de obediência e de autoridade se mantém na medida em que se mantém, antes de tudo, a relação de segurança e formação.
O que há de novo e importante nessa concepção, buscando compará-la, inclusive, com as demais que já eram esboçadas pela século XVII é o fato de que ela diz algo radical: a relação entre pais e filhos deve ser pensada em benefício, principalmente, dos filhos. E é a primeira vez em que isso é dito. E é porque a relação entre pais e filhos deve ser pensada sempre tendo em vista prioritariamente o benefício dos filhos, que aos pais cabe a educação deles, e a estes está legitimada a desobediência em caso de irresponsabilidade ou incapacidade dos pais.
Além da concepção da autoridade paterna a respeito da sua fundamentação, há ainda as concepções a respeito da titularidade e a respeito da extensão:
A respeito da titularidade, a vertente precípua de indagação quer verificar quem é titular do pátrio poder – o pai ou a mãe? Com esta questão, dá-se o retorno ao papel da mulher na família. Como aqui a referência, ainda que temporariamente, está sendo o pensamento moderno, ou seja, os séculos XVII e XVIII, é claro que não se encontrará uma defesa entusiasmada de uma igualdade de direitos para o homem e a mulher no que respeita a esse título. Pelo contrário, para a maioria dos pensadores modernos, o pai tem uma autoridade maior que a mãe, inclusive porque a mulher está sob sua autoridade, na mesma família.
Ainda assim, haveria uma defesa de igual titularidade entre homem e mulher na direção da família, entre os modernos? Sim, houve e ela está, por exemplo, em autores como John Locke e Thomasius, quer dizer, aqueles mesmos autores que, diante da indagação sobre o fundamento da autoridade, fixaram-no na obrigação que têm os pais para com a educação dos filhos. De modo semelhante, eles reconhecerão um igual direito entre o pai e a mãe, quanto à detenção da autoridade sobre os filhos, em função justamente desse igual poder, ou igual obrigação, para educar.
É possível assim concluir, de uma forma curiosa, acerca da finalidade da autoridade dos pais: esta autoridade serve, segundo este pensamento, para indicar a obrigação, dos pais ou de um dos pais, de prover a educação dos filhos. É para isso que se forma a sociedade familiar e, talvez mesmo, a sociedade conjugal. De forma que a titularidade de nada vale se não for exercida como cumprimento de certas finalidades as quais, segundo tais autores, são naturais tanto do ponto de vista dos filhos quanto do ponto de vista dos pais. A educação, portanto, é o índice principal tanto da autoridade quanto da responsabilidade dos pais, que somente nessa hipótese se confundem evidentemente.
A respeito da extensão, como elemento identificador e qualificador da autoridade paterna, caberia indagar até onde e até quando ela se impõe sobre os filhos?
É uma questão delicada, na medida em que envolve a concepção dos filhos como sendo ou não propriedade dos pais. No pensamento jus-naturalista, essa idéia tende a se enfraquecer pela primeira vez, mas é ainda um referencial para sustentar a idéia de dependência dos filhos em relação aos pais. Não importa qual seja a fundamentação da autoridade paterna, ela sempre tem uma necessidade de justificação racional.
Mesmo no caso da idéia de uma fundamentação natural (que era a concepção de Grotius), em que os pais têm autoridade simplesmente por gerarem os filhos, já existe uma certa restrição do poder paterno, na medida em que esse poder necessita, mesmo aí, abandonar o arbitrarismo.
Existe, no pensamento moderno, sempre a idéia de uma finalidade, ou de uma necessidade, a governar a ação humana, e em especial a ação potestativa. Isso vale diretamente para a autoridade paterna, na medida em que o pai não pode ir contra as necessidades dos filhos, ou as finalidades coletivas dessa relação (como a educação).
Ora, mesmo no caso em que se considera, como em Grotius no início do século XVII, que só o pai é titular do poder paterno e que este lhe é devido tão somente por ser genitor, isso ainda não é suficiente para dar, a ele, direito de vida ou morte sobre os filhos. Essa restrição ao arbítrio paterno é constante na figura do pai.
Assim, na definição do direito equivalente, ou seja, do que está em poder do pai ou dos pais para arbitrar a respeito dos filhos, há uma tendência nesse pensamento moderno a desenvolver a idéia de que podem fazer o que não prejudicar a finalidade original da relação de família. Ou seja, os pais podem fazer o que quiserem com os filhos e com seus os bens, desde que não signifique isso uma diminuição de segurança dos próprios filhos. Ao contrário, o que cabe aos pais em termos de segurança dos filhos é justamente a sua formação em conjunto com a preservação de seus bens. Isso quando não significar, como em Locke, que a própria formação envolve ensinar aos filhos a preservar os próprios bens.
A extensão dessa autoridade dos pais equivale, portanto, a considerar que a autoridade continua enquanto continua o processo de formação dos filhos. A partir do momento em que os filhos já são dotados de experiência suficiente para se manterem sozinhos em suas próprias vidas, cessa concretamente a missão original e natural dos pais com respeito à sua formação e, também, com respeito à tutela dos seus bens.
Mas o resultado desse encerramento, em vez de significar uma libertação de um poder opressivo, pode significar, como coroação de toda a história familiar, a fundação de uma identidade entre pais formadores e filhos já formados, eqüalizados agora não só em seus direitos naturais, mas no que lhes cabe como direitos civis: ao final do processo de autoridade paterna, de formação familiar, de dependência dos filhos em relação aos pais, o que temos é uma outra associação, cujos laços mais fortes que os laços determinados pela vida civil a todos os cidadãos são justamente os laços do afeto, quando tais laços tenham tido a devida oportunidade de se formarem, ao longo de todo esse percurso.
A história das concepções de autoridade paterna não começara no pensamento moderno e não terminará com ele. E a história propriamente dita da responsabilidade envolvida nessa autoridade, se aparece com clareza nos modernos, tenderá a continuar.
De modo que seria possível estender essa história da concepção do poder paterno, cada vez mais distinto da concepção clássica e mais ainda da concepção antiga de pátrio poder, para os tempos atuais. Mas não é o objetivo desta palestra.
A intenção desta referência aos modernos é encontrar, na história do pensamento jurídico, uma fonte racional para se pensar a responsabilidade paterna fora daqueles moldes que vinham, desde os gregos, fixando a idéia de que os pais têm um poder equivalente à sua vontade ou seu arbítrio, sem medidas estabelecidas seja pela natureza, seja pela moral, seja pela razão, seja pelo desejo.
E a modernidade nos apresenta esta medida, certamente pela primeira vez.
A autoridade paterna existe somente enquanto corresponde a uma obrigação, obrigação fundamentalmente de prover o sustento e a formação; mas essa obrigação é definida cada vez mais pelas necessidades dos filhos e cada vez menos pelos arbítrios dos pais ou do pai.
A grande prova de que os filhos deixam de ser coisas nas mãos despóticas dos próprios pais é a existência crescente de sua liberdade para interferir na determinação dos rumos de toda a família. Quando o mundo moderno se conclui na passagem do século XVIII para o XIX, os filhos já tinham, dentro do pensamento político e pedagógico, uma importância nunca antes vista.
Ainda que a prática pedagógica e a prática social, assim como a própria dogmática civilista, se demorem a absorver essas concepções, elas são uma conquista estabelecida no interior da modernidade. Como diz Alfred Dufour: "Ao substituir um universo de hierarquias naturais por um universo de autoridades consentidas em favor de aplicação, no domínio das ciências sócio-morais, do método das ciências físicas e matemáticas, os teóricos do Direito natural moderno não se contentaram em lançar as bases de uma nova ordem moral e política emancipada da tutela da teológica."
O que os filósofos jus-naturalistas causaram, com sua revolução metodológica no tratamento do assunto, foi a necessidade de dar ao pensamento em torno da autoridade e da responsabilidade paterna bases exclusivamente racionais, bases necessariamente científicas. É com esse pensamento moderno, enfim, que o cálculo e a definição dos papéis em família exige ser pensado fora de modelos, mas unicamente dentro da observação das relações humanas como elas concretamente se dão.
Tendo isso em vista, podemos passar para um outro registro, que é o de considerar a validade dessa fundamentação racional da autoridade e da responsabilidade paterna. A questão é válida desde que se mantenha válido o princípio de que aos pais não cabe qualquer arbítrio contrário à necessidade dos filhos. Essa é uma lição dos modernos, que cabe diretamente a nós, hoje.
Retomemos algo que foi perguntado mais atrás: o que há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais?
Essa questão é mais ousada do que parece à primeira vista, porque pressupõe o questionamento de algo que o costume usa considerar inquestionável, a autoridade paterna.
Ora, se os pais detêm alguma autoridade sobre os filhos, o que determina a legitimidade das suas decisões?
À luz dos modernos, poderíamos dizer que é o benefício dos filhos, sempre. A julgar pelo que nos esclarece a filosofia jurídica moderna, jamais, não importa qual seja a fundamentação da autoridade, os pais estão livres de atender às necessidades dos filhos.
Os pais que têm aquele poder quase absoluto sobre os filhos porque são genitores e estão, na verdade, subordinados a uma necessidade da natureza inteira, que é a de preservação de todos os seus elementos constituintes.
O direito quase divino dado aos pais, segundo Grotius, sobre seus filhos (porque estes vieram daqueles) não significa, jamais, o direito de retirar-lhes a vida. Pense-se nisto a partir do ponto de vista do filho, por outro lado. É claro que não há nada na sua estrutura natural que peça a sua morte, a sua própria destruição, o seu aprisionamento ou seu suplício. Mas tudo na sua natureza pede proteção e orientação.
Exatamente como na vida civil. Não há nada no súdito ou no cidadão que peça a extinção da sua liberdade. Ao contrário, a sua natureza em sociedade pede liberdades, direitos, segurança da parte do poder soberano.
Parece-me correto, então, dizer que a relação de obediência e orientação só é válida na medida em que ofereça segurança aos atores aí envolvidos, e prioritariamente aos que mais dependem dessa segurança, na família, isto é, os filhos.
Talvez toda a autoridade dos pais possa, por isso mesmo, ser reduzida a esse único princípio – sua potência, ou sua responsabilidade, para garantir segurança aos filhos.
Essa redução, completamente legítima e reveladora do essencial, dá à idéia de poder paterno um significado que retira qualquer pontificação negativa. Com ela, o poder paterno não desaparece, mas se torna uma atividade voltada para o benefício do receptor, portanto para um benefício que é público e não privado. É essa publicidade do poder paterno, dentro da sociedade familiar, que permite chamar a esse poder, na verdade a essa generosidade, uma autoridade em certa medida.
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