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O Direito de Ser Uma Mulher Cidadã
Uma das lutas injustas, que se têm assistido ao longo dos séculos, é a que reflete a complexa teia de preconceito e de discriminação com relação às mulheres. Com efeito, através de intrincados dispositivos ideológicos, a partir do discurso, expressa ou tacitamente, as pessoas do sexo feminino foram encaminhadas a um âmbito restrito de atuação, que lhes acabou excluindo de muitas decisões (políticas, inclusive) relevantes.
Na Antigüidade (Grécia antiga, por exemplo), as mulheres não gozavam do status da cidadania. Na França pós-revolucionária do século XVIII, os homens, na divisão do espaço político, impuseram-lhes o lócus privado (do lar), como se esta seara, restrita, fosse a única onde elas poderiam estar. Percebe-se, inclusive, que preconceitos variados, em questões de sexo e de gênero, até os nossos dias - por incrível que pareça -, ainda dificultam uma convivência igualitária das mulheres com relação aos homens. Somente a partir da chamada "revolução sexual" (depois de meados do século XX), deflagrou-se um lento e gradual processo de eqüidade ou de equiparação social, familiar, profissional, política e jurídica das pessoas do sexo feminino, com relação às do sexo masculino.
É crucial que este caminho de emancipação não seja visto como uma "arena" de competições entre os sexos / gêneros, mas como possibilidades estratégicas de re-significação do "ser" homem, do "ser" mulher, com vistas a uma integração que gere crescimento em todos os âmbitos da convivência. Do mesmo modo que mulheres são detentoras das mesmas capacidades inerentes a todos os seres humanos, a sua condição de cidadania passa por todos os atributos e prerrogativas de que gozam os homens.
Os traços construídos/caracterizados como masculinos e femininos são moldados culturalmente e, para além de preconceitos ou discriminações, eles podem ser incorporados ou exercitados, indistintamente, por todos os seres humanos, rumo a uma sociedade mais tolerante para com as diferenças, menos excludente.
A construção da mulher cidadã passa pela luta política, no sentido de busca efetiva da emancipação que, somente do ponto de vista formal, não ocorrerá. Desde 1988, por exemplo, o inciso I do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, prevê que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". Na verdade, o "caput" de tal artigo já versa que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Quando o legislador realiza o corte de sexo/gênero no referido inciso I redunda em um reforço - consciente de que, de fato, a sociedade ainda permite desrespeitos que vitimam pessoas, por serem do sexo feminino e outras que, mesmo sendo do sexo masculino, aproximam-se dos papéis / representações tidos(as) como femininos(as).
Como a cidadania não passa somente pela sua feição legal-formal (de exercício dos chamados direitos políticos), o proposto caminho de emancipação das mulheres passa, justamente, em primeiro momento, por outras instâncias - a educacional especialmente, que fomenta reforço em senso crítico-transformador, promovendo mudanças paradigmáticas e comportamentais em diversas searas da vida (subjetiva e objetivamente vislumbrada).
O Brasil ainda carece de avanços, em políticas públicas de implementação e de sustentabilidade mais eficiente, para que abrigue número considerável de mulheres efetivamente cidadãs (não somente de mulheres eleitoras simplesmente). Abrir espaço para uma ampla participação feminina é preciso, porque, como bem pontua Pierre Bourdieu (em A Dominação Masculina, p. 18), "a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la".
O grande jurista, Prof. Calmon de Passos, enuncia que "se não for possível salvar o ser humano, nada mais há digno de ser salvo". E como, sem dúvida, o Direito (enquanto micro-sistema dependente do sistema maior, político-econômico) é mais um instrumento de dominação social - do que de libertação, no aspecto de emancipação -, aos operadores jurídicos de formação crítica e a todos os profissionais de outras áreas, cabe a tarefa de explicitarem a relevância da educação e da desconstrução contínua dos discursos em torno da mulher, para que a mesma seja reintegrada, recomposta e fortalecida, também diuturnamente, em matéria de cidadania e de respeito à sua dignidade. Aprovações de leis de combate à violência feminina, como a Maria da Penha, bem como outros avanços legais são de grande importância. Mas entre o cumprimento efetivo do discurso jurídico-legal e a incorporação social da necessidade de uma convivência respeitosa, há uma distância que somente uma educação sólida em direitos humanos pode fazer cessar.
Quando penso que mulheres em diversas situações e circunstâncias (gestantes pobres ou miseráveis; profissionais do sexo; deficientes; homossexuais, bissexuais ou transexuais; violentadas de toda sorte; negras; traficadas como objetos, dentre outras, em vários contextos) são vítimas de preconceitos que se sobrepõem aos que já lhes pesam por serem mulheres, também imagino que, nestes dias de reflexão sobre o Dia 8 de Março, muitas delas só existem em discursos de eventos ou em ensaios como este.
Por isso, fixar os nossos compromissos profissionais e de vida na preservação da dignidade humana, para além de qualquer natureza ou singularidade pessoal-existencial, é a desafiadora e sólida trilha rumo a uma sociedade mais livre, justa e solidária. E refletir para uma ação mais sólida e consistente, sem dúvida, constitui o primeiro de muitos passos. Eis mais um desafio posto!
Enézio de Deus é sócio do IBDFAM, advogado e professor de Direitos Humanos |
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