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Novos olhares sobre a Separação e o Divórcio
INTRODUÇÃO
O breve estudo que ora se inicia foi apresentado pela primeira vez no dia 26 de Maio de 2006, perante o Auditório do Superior Tribunal de Justiça, durante o III Congresso de Direito de Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Seccional do Distrito Federal (IBDFAM-DF).
Seu objetivo é trazer algumas contribuições aos avançados estudos de aperfeiçoamento de nosso Novo Código Civil, no que tange ao sistema de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal.
Em nosso entender, e conforme será demonstrado, o atual sistema encontra-se desatualizado em vários pontos, sobretudo por ter sido basicamente copiado da legislação divorcista, adotada há quase trinta anos, não atendendo mais aos anseios da sociedade brasileira, além de se colocar em confronto com princípios consagrados na Constituição Federal de 1988.
Portanto, faz-se necessário adotar uma posição crítica e combativa, pontilhando os aspectos que demandam urgente alteração, debatendo-os com a sociedade jurídica e leiga, e, inclusive, trabalhando diretamente junto ao Poder Legislativo a fim de viabilizar tais alterações, algo que o IBDFAM vem fazendo de forma efetiva.
1 – UM POUCO DE MÚSICA
Quando falamos de música clássica, o fim do século dezenove encerra uma fase chamada de "Crise do Código de Composição Ocidental" ou "Crise do Sistema Tonal", como chama o nosso maestro Julio Medaglia, em seu clássico "Música Impopular". Segundo este autor, alguns compositores não tiveram forças para reagir a essa crise e tentaram reciclar antigas técnicas e concepções artísticas, outros como Arnold Schönberg (1874-1951), através de obras experimentais e dialéticas, realizaram um paciente e penoso labor que se resumia na substituição de peça por peça daquela mecânica composicional agonizante, edificando, assim, ao longo de várias décadas, uma gramática musical inteiramente nova.
A semente desta revolução musical já estava no Prelúdio da Ópera "Tristão e Isolda" de Richard Wagner (1813-1883), na qual o autor consegue colocar em xeque todo um sistema tonal vigorante, chegando a "enganar" o ouvinte concentrando toda a tonalidade da música em lá menor, embora esta nota não apareça jamais na obra.
Sessenta anos depois, Schönberg e seus ex-alunos, Anton Webern (1883-1945) e Alban Berg (1885-1935), integrantes e artífices da chamada "Escola de Viena", foram buscar em Wagner o fio condutor de uma reformulação técnica e estética cujos terminais se estenderiam até o fim da Segunda Grande Guerra, servindo de base às idéias que se formaram e desenvolveram na segunda metade dos novecentos.
Segundo o maestro Julio Medaglia em seu livro já mencionado, as reações à música da Escola de Viena eram terríveis, mas no fim a genialidade destes músicos triunfou. Disse o maestro: "Do pugilato ao humorismo, da perseguição racial ao desprezo, da execração pública à mistificação, da riqueza à miséria, do espasmo emocional ultra-subjetivo à frieza geométrica de criação, das mastodônticas modulações sonoras ao meticuloso trabalho articulado a pinça e a lupa, de obras que duram horas de angustiante inquietação a outras que se resolvem em meia dúzia de delicados timbres, num espaço de tempo de quinze segundos – de extremos a outros, sempre os mais inconcebíveis, movimentou-se o repertório de idéias dessa geração que, no momento em que o centenário de nascimento de seus integrantes se vai completando, posiciona-se, também, como uma das poucas colunas mestras da cultura do século XX, recebendo as homenagens que seus autores não conheceram em vida."
Os membros da Escola de Viena tiveram a capacidade de perceber em meio à crise, a possibilidade de se criar algo novo em música, a partir de conceitos que já estavam dispersos em alguns de seus antecessores ou contemporâneos, como Wagner e Claude Debussy (1862-1918). Obviamente a criação de uma estrutura musical nova não pode ser descontextualizada de uma época em que os conceitos de "novo" e de "revolucionário" estavam disseminados por todas as esferas da sociedade.
Assim, se havia a Escola de Viena na música, também podemos citar Kafka e Tzara na literatura; Kandinsky e Miró na pintura, Duchamp nas artes plásticas, a Escola Bauhaus de artes e arquitetura na Alemanha, Fritz Lang e George Meliés no Cinema, além dos participantes da nossa famosa "Semana de 22", exemplos de saltos evolutivos em suas respectivas atividades, igualmente criticados e por vezes até perseguidos por seus contemporâneos e muitas vezes tendo sua consagração somente após a morte (casos de Kafka, Meliés e Anton Webern).
2 – UM POUCO DE DIREITO DE FAMÍLIA
Assim como o fim do século dezenove assistiu a chamada "Crise do Sistema Tonal", podemos dizer hoje que vivemos um momento de "Crise do Direito Civil", oriunda da redação de nosso Novo Código Civil (Lei 10.406 de 10 de Janeiro de 2002) e que, para efeito deste estudo, atinge diretamente o Direito de Família e o sistema de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal.
O fim do casamento vem regulado no novo Codex, como se sabe, a partir do artigo 1571. Daí em diante são doze artigos, subdivididos em uma série de parágrafos e incisos, somando cerca de quarenta dispositivos. A maioria esmagadora destes dispositivos são transcrições e ou adaptações da lei do divórcio de 1.977.
A Lei do Divorcio, editada em 1977 foi resultado de cerca de cem anos de debates e discussões que dividiram parlamentares, eclesiásticos, médicos, biólogos, sociólogos, juristas e, enfim, por que não dizer, toda uma sociedade, por mais de três gerações, desde a Assembléia Constituinte Republicana.
Quando finalmente balizou-se o caminho para sua edição, restava ainda em nosso Congresso Nacional uma parcela considerável de parlamentares ligados a instituições mais conservadoras, cuja participação efetiva nos debates levaram a propositura de vários projetos de lei, alguns dotados de uma série de concessões (como o Projeto Nélson Carneiro, que acabou servindo de base para a edição da Lei) e outros mais modernos que acabaram no esquecimento, como o excelente Projeto do Deputado Flávio Marcílio, dotado de contribuições de juristas do porte de Saulo Ramos, Vicente Raó e João Baptista Vilella.
Editada a lei, as críticas foram ferrenhas a certos pontos tais como o sistema dual de separação e divórcio e a necessidade de se apontar um culpado pelo fim da sociedade conjugal, dentre outras.
Com a proximidade da edição de um novo Código Civil (NCC), vários juristas brasileiros, a maior parte ligada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), estiveram empenhados na tentativa de modernizar estes institutos, partindo da base segura da Lei 6.515/77 para a modernização, como fez a Escola de Viena com as pistas deixadas por Wagner.
Porém, assim como os chamados "românticos tardios", que adentraram o século vinte repetindo tendências musicais ultrapassadas, no texto do novo Código optou-se pela recriação das velhas fórmulas, pela chaga ortodoxa do cortar-colar, pela lei do menor esforço, trazendo para a sociedade brasileira um texto vetusto que não mais atende às necessidades do homem moderno.
Percebida a crise, temos duas alternativas, conformarmo-nos ou partirmos para a difícil tarefa de ir para o front jurídico e buscar o aperfeiçoamento do texto publicado.
Um Código não pode ser contaminado pelo que Bobbio chamou de "Dogma da Completude", ou seja, não pode ansiar ser uma obra completa e bem acabada, sobretudo quando se trata dos Direitos da Família, instituição em constante mutação.
Assim, à guisa de colaboração, gostaria de expor três novas possibilidades, cujos debates já se encontram instaurados entre nossos juristas: I - A necessidade de se modificar o sistema dual de Separação-Divórcio; II - A necessidade de se eliminar a perquirição da culpa na Separação; e, finalmente, III – A possibilidade de se desjudicializar alguns procedimentos.
2.1 – O Sistema Dual de Separação-Divórcio
O procedimento brasileiro de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, introduzido pela Lei do Divórcio e mantido pelo novo texto é dito "dual" ou "dualístico", pois pressupõe uma prévia separação – judicial ou de fato - para viabilizar a posterior concessão do divórcio.
De fato, o artigo 1580 dispõe sobre a conversão da separação judicial em divórcio, após um ano a contar do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos.
A seguir, o parágrafo único do mesmo artigo, determina a possibilidade de conversão da separação de fato em divórcio, após o comprovado transcurso do prazo de dois anos. Tal comprovação geralmente se faz em nossos Tribunais através da produção de prova testemunhal e documental, até porquê não se aceita usualmente a mera declaração das partes interessadas, o que, em nosso sentir, fere o Princípio da boa-fé objetiva, consagrado no próprio NCC (Novo Código Civil).
A desnecessidade de dois procedimentos para um mesmo objetivo foi exposta por inúmeros juristas, mesmo quando da edição da lei divorcista, pois a inclusão de tal sistema seria uma vitória da corrente anti-divorcista, consoante lição do mestre SAULO RAMOS: "A separação prévia é uma concessão à influência católica, que considera o desquite, isto é, a separação de corpos um meio de autorizar a cessação da vida em comum por um período indeterminado, mas destinado à meditação e ao longo do qual os cônjuges separados, sem poderem casar-se de novo com outra pessoa, venham a desistir da separação e, em conseqüência, voltem a viver juntos. Em muitos casos a longa meditação não produziu o resultado esperado e que seria sempre um só: a reconciliação. Diante desta realidade, alguns Estados passaram a conceder o divórcio indireto, isto é, a dissolução do vínculo após um determinado período de separação, durante o qual e no entendimento do legislador, houve tempo suficiente para meditação. Findo esse período, sem reconciliação, concede-se o divórcio".
Outra não é a opinião da doutrina atual, ao se manter exatamente o mesmo sistema no Novo Código, conforme se extrai dos ensinamentos a seguir: "Desperdiçou o legislador excelente oportunidade de extinguir o já anacrônico instituto da separação judicial, cuja manutenção em nosso ordenamento jurídico não mais se justifica. Primeiro porque é uma meia-solução para o matrimônio falido, uma vez que não põe fim ao casamento e, por conseqüência, inviabiliza novo consórcio enquanto não formalizado o divórcio. Segundo, porque as razões que levaram à sua manutenção quando da edição da Lei nº 6.515/77 não mais subsistem, considerando que a sociedade brasileira já amadureceu o suficiente para perceber que o divórcio não significou o fim da família, mas sim, uma solução para as uniões onde pereceu o afeto, condição de subsistência do relacionamento conjugal".
Assim, após uma série de deliberações em Congressos e Encontros ocorridos em todo o País, o IBDFAM encaminhou, através do Deputado Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ) uma série de Projetos, dentre eles o Projeto de Emenda Constitucional 413/05, que altera o § 6º do artigo 226 da Constituição Federal, extinguindo a figura da "Separação Judicial", dispondo que o casamento será dissolvido pelo divórcio consensual ou litigioso, pondo fim ao procedimento dúplice de dissolução do casamento.
Acerca deste Projeto de extinção total da "Separação", não podemos deixar de manifestar nossa preocupação com aqueles casais que pretendem extinguir sua relação matrimonial, mas que, por razões principalmente de ordem religiosa, sejam absolutamente avessos à figura do Divórcio.
Interessante solução para este impasse pode estar na Lei nº 15/2005 promulgada pelo Rei Juan Carlos de Espanha, no dia 08 de Julho, deixando ao alvitre dos cônjuges a propositura de Ação de "Separação" - para pôr fim à convivência e aos direitos e deveres do Matrimonio - ou diretamente de "Divórcio" para pôr fim ao elo matrimonial, possibilitando a convolação de novas núpcias.
Desta forma a Espanha passou a adotar a possibilidade de Separação sem posterior Divórcio, bem como do Divórcio sem prévia Separação, ou seja, os institutos que eram complementares, passaram a ser autônomos.
Segundo consta da Exposição de Motivos da citada lei se mantém a Separação Judicial como figura autônoma para aqueles casos en los que los cónyuges, por las razones que les asistan, decidan no optar por la disolución de su matrimonio. E segue destacando que a Separação e o Divórcio se concibe como dos opciones, a las que las partes pueden acudir para solucionar las vicisitudes de su vida en común. De este modo, se pretende reforzar el principio de libertad de los cónyuges en el matrimonio, pues tanto la continuación de su convivencia como su vigencia depende de la voluntad constante de ambos.
Desta forma, embora concordemos amplamente com a necessidade de se eliminar este o sistema dual de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, deixamos a sugestão para o debate desta alteração ocorrida em terras espanholas, pois embora não seja a medida mais radical, talvez seja uma solução para casais mais conservadores.
2.2 – A Culpa na Separação.
Além do Projeto de Emenda supramencionado, o IBDFAM encaminhou através do mesmo ilustre Parlamentar, sugestão que se transformou no Projeto de Lei nº 4945/05, que exclui a "culpa" como um elemento motivador da Separação, determinando uma alteração no art. 1572 do NCC para que o mesmo fique assim redigido: "qualquer dos cônjuges poderá propor a ação da separação judicial quando cessar a comunhão de vida".
Conforme já tivemos a oportunidade de escrever, os elaboradores da nova lei preservaram o Princípio da Culpa como um dos fundamentos da separação, além de apresentarem um desnecessário rol de condutas que podem caracterizar a impossibilidade da vida em comum, precisamente no artigo 1573, tais como adultério, sevícias, tentativa de morte, injúria grave, abandono voluntário do lar por um ano contínuo, dentre outros, ressuscitando uma listagem que se encontrava no Código revogado de 1916.
Não se pode negar que, em alguns casos, a ruptura do casal dá-se por um ou mais atos eivados de violência e/ou má-fé praticados por um dos cônjuges, porém esta circunstância não pode jamais inspirar os operadores do Direito de Família a sempre procurarem um único culpado pela falência matrimonial, pois na maior parte dos casos, esta falência é fruto de meses, às vezes anos, de ausência de diálogo, falta de compreensão, omissões, obsessões, pequenos atos de desrespeito mútuo que vão se avolumando até criar uma situação insustentável.
O fato é que nestes casos de desgaste natural e paulatino do casamento é impossível ao Magistrado, aos advogados e aos representantes do Ministério Público, atuantes em um processo de dissolução do casamento obterem êxito em descobrir quem dos cônjuges foi pela primeira vez grosseiro, inoportuno, ciumento ou omisso, pois isto implicaria em adentrar em uma máquina do tempo para tentar "ver" o que ocorria dentro da morada comum, todos os dias em que este casal esteve junto, o que sabemos ser impossível.
Ademais, no momento em que ex-marido e ex-mulher estão frente a frente em um Tribunal, abalados psicologicamente pelo estresse da separação, em um misto de frustração e humilhação, muitas vezes a razão é deixada de lado e pequenos fatos que já haviam sido relegados a um segundo plano, tornam-se importantes "cavalos de batalha", no sentido de atribuir toda a culpa ao outro, quando a culpa geralmente pode ser atribuída a ambos.
A falta de tato para superar estes problemas, tanto do lado dos litigantes, quanto por parte dos operadores do Direito, pode levar a um duradouro processo de separação litigiosa que pode tranqüilamente dar azo a outros processos que tomarão a forma litigiosa, muitas vezes por mera postura vingativa e beligerante das partes. Assim, não se descarta o posterior ingresso de ações de revisão de alimentos, alteração da guarda dos filhos, sobrepartilhas, dentre tantas outras, prolongando desnecessariamente a dor e o sofrimento destas pessoas, isto sem mencionarmos a série de traumas que podem se abater sobre os filhos do casal.
Tais questões ligadas a determinação de um culpado são herança do sistema Canônico, daí o porquê de a doutrina mais abalizada estar pouco a pouco buscando o afastamento destas considerações, tendo sido festejadas as regras contidas no parágrafo único do art. 1573, bem como no artigo 1580, § 1º do novo Código; sendo que o primeiro dispositivo aduz que o Magistrado pode levar em consideração quaisquer fatos que tornem insuportável a vida em comum; já o segundo dispositivo determina que da sentença concessiva de divórcio não conste referência às causas da Separação.
Destaque-se que desde a edição da Lei de 1977, os comentadores mais perspicazes já se posicionavam contrariamente à perquirição da culpa na separação, como o mestre Saulo Ramos, pois segundo o sempre citado jurista a existência do divórcio-sanção trouxe em seu bojo, tanto na Europa como nos Estados Unidos o deprimente espetáculo da indústria do divórcio, com flagrantes de adultério adredemente preparados, com escritórios especializados em fornecer locais, fotografias e parceiros para a prova da infidelidade, com testemunhas depondo falsamente, fazendo do processo judicial um lamentável simulacro.
Nos dias atuais, mister se faz transcrever importante lição de WELTER, cuja preciosa lavra não deixa qualquer dúvida acerca da desnecessidade, e até a inconstitucionalidade de perseguirmos a "culpa" na dissolução da sociedade e do vínculo conjugal:
"No Direito de Família, em vista dos princípios da secularização, da dessacralização do casamento, da liberdade, da igualdade, da prevalência dos interesses dos cônjuges e dos companheiros, da felicidade, da solidariedade, do afeto, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, não se pode falar em culpa ou em responsabilidade civil. A responsabilidade imposta no Direito de Família é apenas o "direito de ser feliz e o dever de fazer o outro feliz". O amor é uma estrada de mão dupla, na qual os cônjuges ou companheiros são responsáveis pelos seus atos e suas escolhas, pelo que não se pode discutir a culpa. No Direito de Família, não há responsabilidade civil, e sim a responsabilidade pessoal, em vista da liberdade de escolha do consorte, da situação em que o cônjuge ou companheiro se encontra, ao optar pela dissolução da entidade familiar, e pela saída desse conflito, enfim, se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a existência digna.
Destarte, o Estado de Direito laicizou, tornou leigo, secularizou, descristianizou, profanou, desconsagrou, degredou, dessacralizou, desdramatizou, enfim, extinguiu o princípio da culpa, pelo que, em um Estado Constitucional, deve-se compreender que a Constituição (ainda) constitui, não se podendo admitir a discussão da culpa do Direito Canônico no âmbito do Direito de Família".
De qualquer forma, ainda que mantida esta vetusta posição em nosso Código, são alvissareiras as decisões que vem sendo tomadas pelas Cortes mais avançadas deste País, no sentido de desconsiderar a perquirição da culpa pela falência do matrimônio, como por exemplo, nos Embargos Infringentes nº 70001797711, do 4º Grupo Cível do TJRS, onde restou assentado que "Não tem mais justificativa a atribuição de culpa pelo rompimento da vida em comum, quando qualquer conseqüência pode advir desta declaração, bastando para a decretação da separação, o reconhecimento do fim do vínculo afetivo".
2.3 - A Desjudicialização de Certos Procedimentos
Indo mais adiante em nossas considerações, não podemos deixar de mencionar as novas teses que proclamam a simplificação e desburocratização dos procedimentos de dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, chegando alguns autores a falar em desjudicialização.
A relevância dos argumentos favoráveis é incontestável. Mestre Paulo Lobo informa-nos que "o movimento mundial de acesso à Justiça tende para a desjudicialização crescente da resolução dos conflitos, pois a Justiça oficial não consegue mais atender às demandas individuais e sociais. Ao mesmo tempo, buscam-se soluções que levem à simplificação, redução e desburocratização de processos e procedimentos. Cresce a compreensão que o acesso â Justiça não se dá apenas perante o Poder Judiciário formal. Se a atual ordem constitucional tutela a liberdade de constituir e extinguir entidades familiares, e de serem mantidas enquanto afeto houver, o processo judicial para dissolver o casamento, sem igual exigência para as demais, tornou-se dispensável. Para constituir o casamento não há necessidade de processo judicial, porque o há para extinguí-lo, quando os cônjuges estão de pleno acordo, sem qualquer situação litigiosa ?"
Assim, com base nestes argumentos, vários juristas pátrios têm fomentado a idéia da desnecessidade de procedimento judicial para os casos de separação amigável. Há de ser assim, por certo, uma vez que os procedimentos litigiosos demandam, obrigatoriamente, a presença de um Magistrado, devendo as partes estar acompanhadas de seus patronos.
Com isso, a dissolução consensual de um casamento poderia ser feita perante o mesmo Cartório em que o casamento encontra-se registrado, contribuindo para o desafogamento de nossos Tribunais, podendo o Magistrado e os representantes do Ministério Público ocuparem seus preciosos tempos analisando feitos litigiosos, mais complexos por natureza, os quais realmente demandam um exame mais acurado dos fatos e provas.
Em consulta recente ao sítio do IBGE (www.ibge.gov.br), pudemos constatar que no Ano de 2003, por exemplo, de um número total de cerca de 100.000 (cem mil) separações judiciais, mais de 79.000 (setenta e nove mil) foram consensuais. Já no que tange aos divórcios, de cerca de 130.000 (cento e trinta mil) processos, mais de 93.000 (noventa e três mil) eram amigáveis. Assim, somente no ano de 2003, os Juízes de Família foram obrigados a realizar mais de 170.000 (cento e setenta mil) audiências meramente homologatórias.
Isto sem mencionarmos o constante desapontamento dos clientes que freqüentemente interrogam seus patronos do porquê de uma audiência, se a ação é amigável, prova de que a sociedade brasileira pode estar começando a sedimentar a idéia de que o procedimento judicial não seria necessário em casos de separação ou divórcio feitos na forma consensual.
É certo que a idéia não deve ser aplicada quando existirem filhos deste casamento, ao menos em um primeiro momento, pois à medida que for sendo cristalizado em nosso ordenamento o Princípio do Melhor Interesse da Criança, e, por conseguinte, um novo olhar acerca da filiação e da paternidade, sendo pouco a pouco adotadas novas formas de exercício da guarda e suas funções correlatas, nada impedirá que os pais, conscientes de seus direitos e deveres para com seus filhos (também sujeitos de deveres e direitos), auxiliados por profissionais especializados, disponham de forma coerente e humanista acerca destes assuntos.
Assim, desnecessária será a intervenção ostensiva do Poder Judiciário para proclamar a pessoa que ficará (e a que não ficará) com a criança, os horários em que a criança deverá estar em casa no Domingo à noite, o que ocorrerá na Páscoa, no Natal, no Ano-Novo, enfim, para dizer, quem é o vencedor, quem é o derrotado; quando sabemos, na verdade, que todos acabam sendo um pouco perdedores nesta situação em que o bom senso desaparece, principalmente os filhos, seres humanos ainda em formação.
Segundo informação trazida no último Boletim do IBDFAM, datado de Março/Abril de 2006, a desjudicialização de alguns procedimentos já é realidade em alguns Países. Na Colômbia, por exemplo, a Lei nº 962, de 08 de Julho de 2005, chamada Ley Antitrámite, contém disposições diversas sobre a racionalização de procedimentos em geral, dentre elas: podrá convenirse ante notário, por mutuo acuerdo de los cónyuges, por intermedio de abogado, mediante escritura publica, la cesación de los efectos civiles de todo matrimonio religioso y el divorcio Del matrimonio civil, sin perjuicio de la competencia asignada a los juices por la ley.
Este sistema é similar ao previsto nas legislações japonesa e portuguesa, animando o autor (e este seu aprendiz) a sugerir um acréscimo às propostas legislativas feitas pelo IBDFAM para permitir o divórcio por mútuo consentimento perante o Oficial do Registro Civil de Casamento, em forma similar à sua constituição, pelo menos em circunstâncias especiais (ausência de filhos menores, prévio acordo patrimonial, por exemplo) a cargo de lei regulamentadora, tudo muito dinâmico, expresso, direto e simples, sem tensões nem traumas.
CONCLUSÃO
Estas são as breves considerações que gostaríamos de fazer. Nosso objetivo é que elas se tornem velhas e ultrapassadas com a vindoura renovação de nossa legislação familiarista, nos termos pesquisados, debatidos e propostos pelos "gênios" do IBDFAM, entidade que há quase dez anos vem promovendo um relevantíssimo trabalho de reposicionamento do Direito de Família brasileiro no cenário internacional, buscando agregar aos nossos diuturnos debates os temas mais candentes, as discussões mais importantes e as porfias mais acirradas oriundas dos Países juridicamente mais evoluídos do nosso planeta.
Não podemos nos esquecer do atraso em que nos encontrávamos com relação às demais nações quando da adoção da Lei do Divórcio, em 1977, quando o mestre Silvio Rodrigues asseverava serem "quase nenhuns" os Países que ainda não admitiam a dissolubilidade do casamento.
E quando falamos em "gênios" do IBDFAM não estamos a nos referir ao gênio como aquele ser dissociado da realidade e do convívio social, algo sorumbático e eremítico, mas sim à concepção do termo no entendimento da escritora Gertrude Stein, ou seja, "aquele que consegue entender e atuar em sua época, correta e criativamente, antes dos outros".
Reconhecida a existência de uma crise, resta combatê-la como fizeram os compositores da Escola de Viena, derrubando conceitos ultrapassados e superando velhos paradigmas. No dia em que formos exitosos em aplicar tal comportamento obstinado ao aperfeiçoar de nosso ordenamento, talvez estejamos fazendo Direito "por música" e quem sabe, do Direito de Família, uma poesia.
Outrossim, em que pesem os entendimentos contrários, temos a mais absoluta convicção de que as idéias aqui preconizadas hão de ser adotadas em nosso ordenamento jurídico, pois atendem aos desejos da sociedade brasileira e aos Princípios insculpidos em nossa Lei Maior. É apenas uma questão de tempo. Tempo e trabalho.
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA
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Cristian Fetter Mold é advogado no Distrito Federal especializado em Direito de Família e Sucessões e membro do IBDFAM |
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