Artigos
PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA
INTRODUÇÃO
A família brasileira guarda suas marcas e suas origens inspiradas na família patriarcal romana, com a autoridade do chefe de família; na família medieval, com o caráter sacramental do casamento e outras mais com as Ordenações Filipinas.
Estudiosos das relações familiares afirmam, com unanimidade, os valores afetivos que a família unida consegue trazer para a sociedade, o bem estar de cada indivíduo integrante da família. Desde a apreciação mútua cultivada pelos seus membros até a capacidade de resolverem juntos os conflitos através de uma comunicação valorizada, sem tabus e sem rancores, imperam em prol da família saudável, onde emana carinho, respeito e afetividade.
É inegável que o Direito de Família é um dos ramos da ciência jurídica com maior evolução desde a promulgação do primeiro Código Civil Brasileiro, sendo certo que a partir de 1º de janeiro de 1917, data em que entrou em vigor o referido Código, tanto o legislador ordinário como o constituinte, sentiram a necessidade de modificar aquela primitiva codificação, adaptando o regramento substantivo às mutações sociais e que até hoje vem se adaptando gradativamente.
Com o passar dos tempos, alcançamos a um avanço legal, aprovando um novo Código Civil Brasileiro em 2002 e que sua estrutura vem sendo arrolada e alterada desde o projeto inicial de 1975, estando em vigor hoje, mesmo assim, necessita ainda de muitos ajustes para se adequar à realidade social em constante mutação.
PATERNIDADE
Enfocando nosso assunto no que tange a paternidade e suas peculiaridades, vimos que, com o avanço tecnológico, nos propiciou a trazer à tona, julgamentos transitados em julgado que antes eram tidos como intocáveis. Agora, com o exame de DNA, nos trás uma nova verdade, a verdade real sem o formalismo processual puro existente, sem a morosidade da justiça e sem a frieza de uma sentença que não corresponde com a realidade.
Ser pai era considerado algo da ordem do natural e da ciência, mas as mudanças sócio-econômicas e culturais que consolidaram nos últimos tempos, juntamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, mostraram-nos que a paternidade requer envolvimento afetivo e primordialmente resguardar a dignidade da pessoa humana e os interesses da criança.
Culturalmente vem sendo analisada que a paternidade não é somente um "dado", ela se "faz", se constrói com o passar do tempo, com dedicação, atenção, respeito, carinho, zelo, etc.
Ao tratar desse assunto, temos a necessidade de discorrer sobre o que entendemos por paternidade. Segundo Inês Hennigen e Neuza Guareschi, ambas de Universidades do Rio Grande do Sul, "paternidade é uma experiência humana profundamente implicada com propósitos sociais e institucionais que a legítima, ou seja, uma construção que deve ser compreendida face ao contexto sócio-cultural de um tempo".
Experiências vivenciadas por operadores do direito e sempre dispostos a ouvir os desabafos em seus escritórios, nos traz o significado da paternidade e o envolvimento afetivo com o filho ou os filhos, como algo que é normalmente relacionado com a identidade de gênero e com as experiências dos homens com seus próprios pais e parentes. Uns fazem de tudo para os filhos por terem condições de proporcionar aquilo que nunca tiveram, outros, mais tradicionais e rígidos, fazem de menos, uma vez que também nunca tiveram tal mordomia e acham que os filhos não devem viver o que os pais não vivenciaram. Afinal, o que é ter uma paternidade com sucesso?
Entendemos que há uma diversidade muito grande por conta da maneira de conviver em família, a influência de variações culturais e étnicas e, que também não existe uma simples definição de paternidade com sucesso que possa abranger uma aceitação generalizada. Muito pelo contrário, há propostas que expectativas paternas, práticas realizadas e seus efeitos sobre as crianças precisam e devem ser vistos dentro do contexto familiar, comunitário, cultural e histórico, que infelizmente, pouco difundido em nosso meio.
Antigamente, o pai era apenas o provedor que mantinha a família. A paternidade era para o homem apenas um fato, ao invés de sê-lo também um ato, como hoje em dia vemos acontecer, ou pelo menos deveria. O homem quer participar, quer se envolver, ser realmente pai e estar convicto de estar perdendo se não o fizer, não somente por correr o risco de ser cobrado no futuro, mas por sentimento próprio de realização paterna.
PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA
Antigamente, tínhamos a verdade jurídica como premissa da paternidade, depois passamos para a verdade biológica e agora, estudiosos do direito e a própria exigência para atingir o princípio da dignidade humana, faz-nos partir para a defesa da paternidade socioafetiva, mas sem desprezar as demais.
Hoje, temos por bem, dar valor ao sentimento, a afeição, ao amor da verdadeira paternidade, não sobrepujar a origem biológica do filho e desmistificar a supremacia da consangüinidade, visto que a família afetiva foi constitucionalmente reconhecida e não há motivos para os operários do direito que se rotulam como biologistas e se oporem resistência à filiação sociológica. Essa é a realidade!
A filiação socioafetiva é compreendida como uma relação jurídica de afeto com o filho de criação, como naqueles casos que mesmo sem nenhum vínculo biológico os pais criam uma criança por mera opção, velando-lhe todo amor, cuidado, ternura, enfim, uma família, em tese, perfeita.
A adoção judicial, que é estabelecida por meio de um julgamento, não é somente um ato jurídico, mas também um ato de vontade; o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade e a conhecida "adoção à brasileira", isto é, aquele que comparece perante um Cartório de Registro Civil, de forma livre e espontânea, solicita o registro de uma criança como seu filho, muito comum em nossos dias, nesses casos também há a socioafetividade paternal.
Neste último exemplo, não é necessária nenhuma comprovação genética para ter sua declaração admitida como verdade, mas, em decorrência desse ato, somente poderá depois invalidá-la se demonstrar que sua manifestação não foi livre e sim foi viciada; que não houve a sócioafetividade, e sim uma falsidade ideológica.
Discute-se muito na jurisprudência se o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade e maternidade é revogável, ou não, como poderemos ver nos seguintes termos:
Por mais que se afigure deplorável a atitude de um homem que, por treze anos, acalenta o fato de ser pai de alguém, para depois destruir essa verdade socioafetiva, não pode prevalecer um registro de nascimento falso, pois, no nosso País, vige o critério da verdade Biológica da filiação.
Quem, sabendo não ser o pai biológico, registra como seu filho de companheira durante a vigência de união estável, estabelece uma filiação socioafetiva, que produz os mesmos efeitos que a adoção, ato irrevogável. O pai registral não pode interpor ação negatória de paternidade e não tem legitimidade para buscar a anulação do registro de nascimento, pois inexiste vício material ou formal a ensejar sua desconstituição.
A jurisprudência também tem dito que a "adoção à brasileira" torna-se irrevogável quando estabelecido o estado de filho afetivo, pois, nesse caso, nasce a filiação socioafetiva, conforme constitucionalmente assegurado nos artigos 226 e 227 e seus parágrafos da Constituição Federal do Brasil de 1988.
Por estado de filho afetivo, parafraseando o jurista Orlando Gomes, entendemos que é ter de fato o título correspondente, desfrutando as vantagens a ele ligadas e suportando seus encargos. É passar realmente a ser tratado como filho, levando o nome dos presumidos genitores, recebendo tratamento de filho e ter sido constantemente reconhecido por filho pelos presumidos pais e pela sociedade, como filho.
No estado de filho afetivo, devem ser cumpridas as mesmas condições do estado de filho biológico, já que a filiação deveria ser uma imagem refletida entre pais e filhos, sem discriminação, sem identificar-se com o aspecto sanguíneo ou a voz do coração.
Com isso, Belmiro Welter explica "que não existe qualquer analogia entre o domínio, posse e estado de filho, na medida em que o afeto está para o direito de família assim como a posse e o domínio estão para o direito das coisas".
O mesmo jurista não adota essa doutrina de equiparação do estado de filho afetivo a posse dos direitos reais, pois tem para si que com isso representa a perpetuação da coisificação do filho e entende que na investigação de paternidade socioafetiva, não basta a prova da aparência do estado de filho, mas, sim, a busca intransigente da verdadeira paternidade sociológica. Se trouxer como parâmetro que na investigação de paternidade biológica é exigida a verdade da filiação, incluindo a produção do exame genético em DNA, também deveria ser obrigatório a mesma verdade na investigação da paternidade socioafetiva, já que na Constituição Federal de 1988 residem apenas as duas verdades da filiação: biológica e sociológica.
A Carta Política e Jurídica do País de 1988 afastou do ordenamento jurídico a presunção da aparência, a ficção, a paternidade meramente judicial, acolhendo tão somente as duas verdades, a biológica (art. 226, §§ 4º e 7º da CF) e a sociológica (art. 227, § 6º da CF), mas a teoria da evidência deve ser aplicada e também devemos lutar por isso, para que a decisão judicial declare a verdadeira, e não a fictícia filiação socioafetiva.
O jurista Belmiro Welter também cita em sua obra um curioso acórdão que relata a defesa de uma paternidade sociológica, nos seguintes termos que merece ser aqui exposto:
Um coito apenas determina para a vida inteira um parentesco, um coito entre pessoas que, às vezes, só tiveram aquele coito e nada mais! Desprezam-se anos e anos de convivência afetiva, de assistência, de companheirismo, de acompanhamento, de amor, de ligação afetiva. Daí não se tratar de um rematado absurdo e cogitação de que se pudesse pretender pôr limites à investigação da paternidade biológica, porque, quando se permite indiscriminadamente esta pesquisa, se está jogando por terra todo o prisma sócio-afetivo do assunto, e isto vale também para a paternidade biologia, não só para a adotiva. O pai e a mãe criaram um filho, com a melhor das criações possíveis, com todo o amor que se podia imaginar; passam-se os anos; 40 anos depois, resolve o filho investigar a paternidade com relação a outra pessoa, esbofeteando os pais que o criaram por 40 anos! E normalmente esses pedidos são tão despropositados que, falando em tese, muitas vezes têm a ver apenas com a cobiça: descobre que o pai biológico tem dinheiro, vai herdar, então despreza os pais que o criaram, que lhe deram toda educação, quer adotivos, quer biológicos – tidos como biológicos –, e vai procurar o outro pai que teve o tal de coito, uma vez na vida.
Com certeza, na maioria dos casos, a filiação deriva da relação biológica, mas ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. Frizamos com veemência que o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto, carinho e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A filiação socioafetiva pode até nascer de indício, mas toma expressão na prova; nem sempre se apresenta desde o nascimento vindo a florescer com o tempo.
Quando um pai cria e educa uma pessoa como filho, mesmo que não biológico, ele deixa transparecer ali o estado de filho sociológico, a verdade socioafetiva. Com isso, não mais poderá impugnar essa paternidade, mesmo que não seja o pai genético. Portanto, os verdadeiros pais são aqueles que amam e dedicam sua vida a uma criança, pois o amor depende de tê-lo e se dispor a dá-lo, sendo então aqueles em quem a criança busca carinho, atenção e conforto, sendo o pai para os sentidos dela o seu "apoio maior" .
O Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu em seu artigo 48 que a adoção é irrevogável. Se fizermos uma analogia e considerar que a Constituição Federal engendrou a unidade da filiação, assim a adoção é uma das formas de filiação socioafetiva, portanto, a filiação sociológica também é irrevogável.
Muitas pessoas não conseguindo suportar os trâmites procedimentais que a legislação exige para adotar uma criança, acabam registrando um menor, como seu filho, dando-lhe um prenome e colocando nele o seu patronímico, ou seja, o apelido de família.
Tal prática deve ser condenada, pois não se submete ao mesmo rigor do regime jurídico da adoção prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente que, primando pelo interesse do menor, tornou a adoção irrevogável. Essa regra jurídica procurou evitar que, uma vez constituída a filiação, o vínculo familiar fosse, por conveniência unilateral, posteriormente dissolvido, e com isso os interesses do menor não seria sobreposto aos demais.
CONCLUSÃO
Para finalizar concluímos que a paternidade não é apenas um mero fato, um dado biológico como tentam tratá-la friamente, e sim, como já mencionamos anteriormente, uma relação construída na vida pelos vínculos que se formam entre a prole e seu genitor, e não deve ser privilegiada em relação à paternidade sócio-afetiva, sendo essa não menos importante para o filho.
Muita das vezes, em uma paternidade biológica, onde existe o vinculo jurídico e o vinculo natural, também existe a marca viva da rejeição, faltando amor, compreensão e dedicação, e em outras vezes, onde existe o vínculo da sóciopaternidade, esse sim, dará ensejo a real e irrefutável função de pai, com a construção cultural na sociedade e no meio jurídico e a permanente afetividade, essa que não é fruto da consangüinidade.
Por essas e outras razões que ser pai não é somente ser aquele que possui o vínculo genético com a criança. É, primeiramente, a pessoa que cria, que ampara, que dá amor, educação, carinho, dignidade, o porto seguro do menor, ou seja, a pessoa que realmente exerce as funções de pai ou de mãe atendendo, prioritariamente, o melhor interesse da criança. Dessa forma a paternidade sócio-afetiva, muitas vezes, vai se sobrepor à paternidade biológica.
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, Antonio Ezequiel Inácio Barbosa. Ao Encontro do Pai. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, nº 16, p. 56-65, jan.-fev.-mar. 2003.
BARROS. Fernanda Otoni. Direito de Família Contemporâneo: Interdisciplinaridade: Uma Visita ao Tribunal de Família – pelo Olhar da Psicanálise. Belo Horizonte: Dey Rey, 1997.
BEBER, Jorge Luis Costa. Ação negatória de paternidade aforada por pai registral ou reconhecido judicialmente. Disponível em: <http://www.gontijo-familia.adv.br/
escritório/outros28.html>. Acesso em: 18 Maio 2004.
BRASIL, Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Exame de DNA não é obrigatório para reconhecer paternidade. Direito Vivo: on line. Disponível em: <http://www.direitovivo.com.br/asp/noticias.asp?id=13522>. Acesso em: 09 Março 2004.
CONTIJO, Segismundo. A Família no Brasil. Disponível em: <http://www.gontijo-familia.adv.br/monografias/mono16.html>. Acesso em: 18 Maio 2004.
DIAS, Maria Berenice. Investigação de Paternidade e a Questão de Prova. Revista de Processo nº 95, p.97-99, jul./set. 1999.
FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 346 p.
HENNIFEN, Inês; GUARESCHI, Neuza Mª de Fátima. A Paternidade na Contemporaneidade: Um Estudo de Mídia sob a Perspectiva dos Estudos Culturais. Psicologia & Sociedade: Revista da Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO, v. 14, nº 1, p.44-63, jan./jun. 2002.
LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de Filiação e Direito à Origem Genética: Uma Distinção Necessária. Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 316, p.19-36, fev. 2004.
LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito de Família: O Ensino do Direito de Família no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 4, 1999.
PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Direito de Família Contemporâneo. Belo Horizonte: Dey Rey, 1997.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira. Proposta de Nova Redação ao Art. 1606 do NCC. Disponível em: <http://www.intelligentiajuridica.com.br/artigos/artigo8-oldnov2002-2.html>. Acesso em: 08 Abril 2004.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. 4ª Grupo Câm.Cív, EI 599.277.365. Relatora: Desembargadora Maria Berenice Dias. DJRS 31 Out. 1999.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. 7ª Cam. Cív, Ac. 597236298. Relator: Desembargador Eliseu Gomes Torres. j.02 set.-1998. CD Júris – Síntese 28, mai.-2001.
SANTIAGO, Onete Ramos. Pai paterno. Disponível em: <http://www.pailegal.net/textoimprime.asp?rvTextoId=793901286>. Acesso em: 12 Fevereiro 2004.
VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. 228 p.
WELTER. Belmiro Pedro. Igualdade entre a Filiação Biológica e Sócioafetiva. Revista de Direito Privado, v. 14, p. 111-147, abr.-jun. 2003.
WELTER. Belmiro Pedro. Relativização do Princípio da
Coisa Julgada na Investigação de Paternidade. Porto Alegre: Síntese, 2000.
Everton Leandro da Costa é Advogado e Pós-Graduado em Direito Processual |
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM