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As famílias e seus direitos
Difícil encontrar uma definição de família, de forma de dimensionar o que, no contexto social dos dias de hoje, se insere nesse conceito. É mais ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento, ou seja, um conjunto de pessoas ligadas a um casal, unido pelo vínculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, sendo o pai a figura central, na companhia da esposa, e rodeados de filhos, genros, noras e netos.
Essa visão hierarquizada da família, no entanto, vem sofrendo com o tempo uma profunda transformação. Além de ter havido uma significativa diminuição do número de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis, e seus novos contornos estão a desafiar a possibilidade de encontrar-se uma conceituação única para sua identificação.
Para o cristianismo, as únicas relações afetivas aceitáveis são as decorrentes do casamento entre um homem e uma mulher, configuração com nítido interesse na procriação. Essa conservadora cultura do início do século passado de larga influência no Estado acabou levando o legislador, em 1916, a reconhecer juridicidade apenas ao matrimônio, como uma verdadeira instituição, gerador de um vínculo indissolúvel. Identificava-se assim o conceito de família como a relação decorrente do casamento.
A previsão do regime da comunhão universal de bens e a indispensabilidade de a mulher adotar os apelidos do marido mostram o significado que tinha o casamento. Duas pessoas fundiam-se numa só, formando uma unidade patrimonial, tendo o homem como único elemento identificador do núcleo familiar.
O regime legal da comunhão parcial e a facultatividade de adoção do nome do marido só vieram com a Lei do Divórcio, que data de 1977, que , em um primeiro momento, possibilitava somente um segundo casamento.
A legislação, além de se omitir em regular relações extramatrimoniais, rejeitava, com veemência, a possibilidade de se extraírem conseqüências jurídicas de todo e qualquer vínculo afetivo fora do casamento. Tal ojeriza, entretanto, não coibiu o surgimento de relacionamentos sem respaldo legal, levando seus partícipes, quando do rompimento da união, às portas do Judiciário. Viram-se os juízes forçados a criar alternativas para evitar flagrantes injustiças, tendo sido cunhada, via jurisprudencial, a expressão companheira, como forma de contornar as proibições para o reconhecimento dos direitos banidos pela lei.
Em um primeiro momento, aplicou-se por analogia o direito comercial, face à aparência de uma sociedade de fato entre os convivas. Quando ausente patrimônio a ser partilhado, passou-se a ver verdadeira relação laboral, dando ensejo ao pagamento de indenização por serviços prestados.
A Constituição Federal de 1988 alargou o conceito de família, passando a integrá-lo as relações monoparentais: de um pai com os seus filhos. Esse redimensionamento, calcado na realidade que se impôs, acabou afastando da idéia de família o pressuposto de casamento. Para sua configuração, deixou de se exigir a necessidade de existência de um par, o que, conseqüentemente, subtraiu de sua finalidade a proliferação.
Também a Carta Constitucional identificou como família a união estável entre um homem e uma mulher, emprestando juridicidade ao relacionamento existente fora do casamento. Tal era o conservadorismo dos juízes, que difícil foi ampliar os direitos que já vinham sendo reconhecidos na Justiça. Somente nos anos de 1994 e 1996 surgiram duas leis (8.971 e 9.278) regulando a previsão constitucional.
O Código Civil, que entrou em vigor em 2003, inseriu em seu bojo a legislação que existente reconhecendo como estável a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Socorre-se o legislador da idéia de família como elemento configurador de um relacionamento suscetível de gerar efeitos jurídicos. O tratamento, no entanto, não e igual ao casamento. Ainda que conferido direito a alimentos, não está incluído o companheiro na ordem de vocação hereditária. É deferido direito de concorrência exclusivamente quanto aos bens adquiridos na constância do relacionamento.
Os novos modelos familiares, muitos formados com pessoas que saíram de outras relações, levaram ao surgimento novas estruturas de convívio, sem que seus componentes tenham lugares definidos ou disponham de terminologia adequada.
A Lei Maior, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de entidades familiares fora do casamento, mas, continuando na busca de exercitar um certo controle social, se restringiu a emprestar juridicidade às relações heterossexuais. Por absoluta discriminação de natureza moral, deixou de regular os relacionamentos que não têm como pressuposto a diversidade de sexos.
Necessário é encarar essa realidade sem preconceitos, pois a homoafetividade não é uma doença nem uma opção livre. Assim, descabe estigmatizar quem exerce orientação sexual diferente, já que, negar a realidade, não irá solucionar as questões que emergem quando do rompimento de tais relações. Não se como chancelar a ocorrência de enriquecimento injustificado e deferir patrimônio a familiares - que normalmente hostilizam a orientação sexual do de cujus - em detrimento de quem dedicou a vida ao companheiro, ajudou a amealhar um patrimônio e se vê sozinho, abandonado e sem nada.
Muito raras têm sido as decisões judiciais que acabam por extrair conseqüências jurídicas dessas relações, mostrando-se ainda um tema permeado de preconceitos. Mas é preciso que se reconheça que em nada se diferencia a convivência homossexual da união estável. Ainda que haja restrição em nível constitucional, imperioso que, por meio de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionavelmente se trata de relacionamento que constitui uma unidade familiar.
A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana.
Maria Berenice Dias é Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS e Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM |
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