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Família: Para além do "Numerus Clausus"
A família, antes de um dado biológico ou de realidade sócio-cultural, trata-se de complexa teia psíquica, pois evidencia escolhas e extensões essenciais no âmbito da afetividade e da sexualidade. As formas de sua constituição são detectadas, ao longo da história, em graus de visibilidades variáveis, na medida dos valores morais ou religiosos de determinada época e
da maior ou menor proteção jurídico-estatal. O princípio constitucional do respeito à dignidade humana, neste sentido, deve delinear o reconhecimento atual (fático e científico) das entidades familiares, através de uma hermenêutica extensiva da legislação disponível, no sentido de vislumbrar o direito à constituição familiar para além do numerus clausus legal positivado e em direção ao principal elemento amalgamador e constituinte de uma entidade familiar: o afeto.
Interpretações literais do ordenamento jurídico-positivo não são capazes de apreender a realidade afetivo-familiar em toda sua inteireza. Um olhar puramente legalista à Constituição Federal de 1988, por exemplo, pode conduzir ao equívoco de o constituinte apenas ter tutelado, no artigo 226, três modalidades de família: a casamentária (§§ 1º e 2º), a formada pela união estável (§ 3º) e a convivência mono-parental ("qualquer dos pais e seus descendentes" - § 4º). Ao prever, no caput do mesmo artigo 226 da Constituição, que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", o legislador constituinte, rompendo com uma história de verdadeira exclusão constitucional, pôs, pela primeira vez sob a tutela estatal, a entidade familiar, sem dizer, necessariamente, qual tipo de família é merecedor de proteção. Se até a Constituição de 1967, a única família albergada pela proteção estatal era a selada pelo casamento, a partir de Lei Maior de 1988, esta realidade limitante se modificou. Assim, o que delineia, hoje, o que é uma base familiar é a convivência afetiva das pessoas, que deve gerar efeitos na órbita do Direito de Família, para além deste ou daquele posicionamento ideológico, sócio-cultural específico ou religioso. É a perspectiva de vida em comum, aliada à convivência respeitosa e afetivamente estável que diferenciam a família dos demais agrupamentos humanos. Assim formado, por seres humanos que se amam, para além de qualquer restrição discriminatória, o grupo familiar já estará sob a chancela protetora da nova ordem constitucional, a partir da sistemática do referido artigo 226, em sintonia com a base principiológica da Constituição Federal, que tem na dignidade da pessoa humana o seu eixo central de sustentação.
Há doutrinadores e decisões judiciais, por exemplo, que ainda excluem a convivência afetivamente estável entre pessoas do mesmo sexo da caracterização de família, como se tais relacionamentos (ditos homoafetivos) tivessem um cunho meramente obrigacional e não se assemelhassem - como, na verdade, equiparam-se - a todas as demais uniões familiares. Se o que lhes falta é, tão somente, a diversidade de sexos, como negar efeitos familiares a estas relações afetivas, chancelando-se injustiças limitadoras da cidadania dos seus membros e do direito fundamental à livre afetividade? Isso prejudica a proteção de uma vida em comum mais segura, sob, por exemplo, os aspectos alimentício, patrimonial e sucessório. A solução para a atual inexistência de lei que regulamente tais relações é a aplicação analógica da legislação pátria que regula a união estável - caminho que alguns tribunais do país, como o do Rio Grande do Sul, vem traçando, acertadamente. É mais do que claro que Poder Judiciário não pode continuar sendo disseminador e solidificador de preconceitos e, por que não dizer, da homofobia. Se há estabilidade, compromissos mútuos e afeto nas uniões estáveis "entre iguais", as questões decorrentes de tais uniões devem ser processadas e balizadas, judicialmente, nas Varas de Família e jamais nas das Obrigações, como ainda se verifica. No caso do recente deferimento de adoção a um casal homossexual da cidade de Catanduva/SP, por exemplo, a magistrada Dra. Sueli Juarez Alonso (responsável pela decisão) demonstrou não somente estar bem sintonizada com os avanços sociais e em matéria de Direito de Família. Antes de tudo, esta Juíza (à qual parabenizo) evidenciou uma admirável sensibilidade para perceber a família para além de qualquer preconceito ou restrição subjetiva. Nas suas coerentes palavras, "não existe nenhum estudo especializado que indique qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais. Ao contrário, os estudos demonstram que efetivamente o que importa é a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar."Outro exemplo de afirmação que me impactou, positivamente (na época da reedição do meu livro e que cito na obra) foi da Dra. Rosa Castro, Juíza da Vara de Família da comarca de Feira de Santana/BA: "O juiz deve julgar por conceitos e não por preconceitos". Sem dúvida, estes são exemplos de uma Magistratura comprometida com os avanços sociais em matéria de Direito de Família.
É chegado o momento de os operadores jurídicos, de um modo geral, perceberem que não há como prensar o afeto somente no "numerus clausus" legal-positivado. Se a sociedade evolui, se as formas relacionais assumem novas feições, cabe ao Direito, enquanto ciência, abrigá-las em prol da dignidade humana. Os parágrafos do mencionado artigo 226 da atual Constituição Federal devem ser vistos como exemplificativos de modelos familiares; mas nem todas as famílias, neles, exaurem-se. Mais acertado é perceber que o caput do referido dispositivo ampliou a proteção constitucional à família, qualquer que seja o tipo de convivência, desde que apresente o afeto que conjuga, que une, como tônica - na perspectiva de uma vida em comum, com estabilidade e respeito mútuo. No momento em que os tribunais, os legisladores e os juristas puderem considerar "justa toda forma de amor", haverá, sem dúvida, inteira justiça, onde, em muitos aspectos, tem-se oferecido meia. Eis uma das propostas do mais avançado Direito de Família para a nossa sociedade.
Enézio de Deus é Gestor Governamental; Advogado membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/BA; sócio do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM); membro do Núcleo de Estudos da Mulher e das Relações de Gênero (MULIERIBUS/UEFS); professor de Direitos Humanos e pós-graduado em Direito Público. Contato: eneziodedeus@hotmail.com |
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