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A Tomada de Decisão Apoiada (TDA)
Jones Figueirêdo Alves[1]
A Tomada de Decisão Apoiada (TDA) é um modelo legal e ético que permite que pessoas com deficiência – especialmente intelectual ou psicossocial – exerçam plenamente sua capacidade civil, com apoio de duas ou mais pessoas de sua confiança, sejam elas familiares ou amigos. Modelo alternativo à curatela, no qual a pessoa com deficiência mantém o direito de decidir sobre sua vida, mas com apoio de pessoas de confiança para compreender, expressar e implementar essas decisões. Garante autonomia com suporte, ao invés de substituição da vontade. (01)
O instituto foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, com a vigência da Lei n.13.146, de 06 de julho de 2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) (02) e introduziu o artigo 1.783-A no Código Civil de 2002.
“Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” - preceitua o art. 2º do EPD.
Conhecida como Lei Brasileira de Inclusão, tem por objetivo assegurar e promover a inclusão social e a cidadania das pessoas com deficiência, garantindo o exercício de seus direitos e liberdades fundamentais.
Ela se baseia na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (03), de 2007, que teve nosso país, como um dos Estados signatários. Tratou-se do primeiro tratado internacional ratificado pelo Brasil que alcançou o status de norma constitucional, diante do procedimento previsto no artigo 5º da Constituição Federal do país, trazido pela Emenda Constitucional 45/2004.
Nesse passo, dispõe o Estatuto, conforme seu art. 82 § 2º, que será facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
Nos termos do art. 1.783-A, do Código Civil brasileiro:
“a tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”.
É indicada a Tomada de Decisão Apoiada nos casos em que a pessoa com deficiência possua capacidade de discernimento e manifestação de vontade, mas reconheça alguma dificuldade para conduzir sozinha determinados atos da vida civil.
Nesse contexto, o próprio interessado deve ingressar com pedido judicial indicando no mínimo duas pessoas de sua confiança para serem suas apoiadoras na tomada de decisões da vida civil. (REsp 2107075/SP) (04)
O termo de apoio é estabelecido por tempo certo e determinado, atuando os apoiadores na tomada de decisão sempre em favor do apoiado, sobre os atos da vida civil daquele, notadamente para decisões de natureza financeira, jurídica e médica.
Identifica-se o apoio no entendimento do apoiado a cláusulas contratuais em negócios jurídicos, seus custos e impactos financeiros; na opção de compra de unidades habitacionais e outras propriedades, bens de consumo e equipamentos de trabalho, facilitando-lhe a decisão. Apoiadores tem um papel significativo na escolha do apoiado entre dois tratamentos médicos, explicando-lhe os riscos e benefícios de cada opção.
Diferentemente da curatela que se revela restritiva e substitutiva, com base na tutela, a Tomada de Decisão Apoiada se apresenta inclusiva e colaborativa, eis que fundada na autodeterminação do apoiado. (05)
A preservação da autonomia constitui o fomento da promoção do direito das pessoas com deficiência, onde o papel dos apoiadores é explicar, orientar e ajudar a pessoa a entender suas opções e não decidir por ela. Ou seja, “independente, mas não só”, slogan que bem simboliza o instituto jurídico, em suas bases surgidas, nos anos 70, em movimento social ocorrido nos Estados Unidos.
Nessa perspectiva, instrumentos jurídicos de salvaguarda são previstos para prover o acesso de pessoas com necessidades especiais ao apoio indispensável à tomada de certas decisões, em superação de suas dificuldades concretas, conferindo-lhes plena igualdade de condições com as demais.
Descortina-se com a nova lei, importantes mudanças do direito civil, com grandes avanços na teoria das incapacidades, onde as premissas fundamentais da igualdade e da não discriminação colocam a incapacidade absoluta apenas se restringindo às pessoas com idade até dezesseis anos. Enquanto isso, as pessoas com deficiência presumem-se plenamente capazes ou consideradas relativamente incapazes apenas quanto aos atos de conteúdo patrimonial, quando o discernimento esteja efetivamente comprometido.
A tomada de decisão apoiada é classificada, no sistema processual brasileiro, entre os chamados ritos de jurisdição voluntária. No ponto, previsto para as situações em que não haverá réu ou pretensão resistida, sem partes contrapostas ou objeto litigioso, dependendo da exclusiva iniciativa daquele que apresentará o instrumento de apoio ao juiz para a sua devida homologação.
Nesse aspecto, há quem sustente, em interpretação extensiva da lei, a figura do terceiro interessado ao pedido, defendendo seja ele apresentado por familiar, Ministério Público ou curador nos casos de pessoa interditada, o que, a nosso sentir, diverge, na última hipótese, da ideia-força do instituto, destinado à pessoa com deficiência, porém não desprovida de sua capacidade civil.
Convém, porém, perquirir sobre a legitimidade ativa no ponto da própria pessoa favorecida pelo apoio, em leitura compreensiva do Estatuto da Pessoa com deficiência, certo de que muitas outras são padecentes de limitações como as pessoas cegas ou surdas.
Em sentido abrangente, devemos ter o alcance do instituto jurídico para as pessoas hospitalizadas ou presas, deficientes ou não, ou pessoas portadoras de doenças graves e degenerativas, as detentoras de sequelas neurológicas ou em estado semiterminal, destinando-se lhes a sua utilização pelo inegável proveito que a TDA. traduz.
Apresenta-se igualmente oportuna a sua extensão em se tratando de pessoas idosas. Mesmo que não deficientes, porquanto o elemento da idade avançada mais das vezes impõe limitações de desempenho diante de determinadas questões complexas ou negociais, implicando em capacidade decisional mitigada.
A Tomada de Decisão Apoiada tem inspiração no direito italiano, pela figura do “amnistratrore di sostegno” (“Administrador de Suporte”), ali prevista para além das deficiências, envolvendo situações diversas, nada obstando que nosso sistema jurídico o consagre pertinente.
Há destacar os seus requisitos essenciais, configurados pela inequívoca necessidade de proteção da vulnerabilidade da pessoa com deficiência, o vínculo de confiança entre apoiado e apoiadores, para os aspectos formais da medida quanto para sua efetividade na prática, a inexistência de conflito de interesses entre eles e a definição do tempo certo do ajuste.
Tudo convém referir acerca da esfera temática das questões que possam ser objeto do termo de apoio, aparentemente circunscritas à interferência de apoiadores tão somente aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, como sugere a lei, em analogia com a afetação da curatela (art. 85, Lei n. 13.146-2015 - EPD).
Cuidamos que nada obsta a incidência do apoio para as questões existenciais que aprofundem os propósitos da jornada de vida e definam valores e objetivos que guiem as escolhas, em serviço de proteger a dignidade do apoiado e de aperfeiçoar a sua qualidade de existir.
A atuação dos apoiadores recebe da lei uma disciplina hígida, pela qual assumem em seu caráter obrigacional posição de agir em proveito da pessoa apoiada, cumprindo-lhes perseverar pela melhor realização dos seus interesses. Depõe a lei que “se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz. (art. 1.783-A, § 7º, Código Civil).
Impõe-se uma crítica à TDA judicializada. A lei brasileira, ao tempo que estabelece e exalta a autonomia negocial dos envolvidos - apoiado e apoiadores - na formação e efeitos da Tomada de Decisão Apoiada, sob o pressuposto dos elementos volitivos no exercício da capacidade civil da pessoa com deficiência, incide em uma contradição substancial, quando exige a homologação do juízo de família, para sua existência, validade e eficácia.
Tal exigência de intervenção judicial para consolidar os termos do ajuste de acordo se apresenta incompatível à Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), que lhes reconhece autonomia e independência, ainda que sob o suporte de apoio de terceiros. Confronta-se com a tendência atual no país de empregar a desjudicialização de determinados institutos jurídicos, como o do divórcio, da usucapião e de inventários, neles admitindo-se os procedimentos administrativos.
Por certo que o termo de apoio possa ser lavrado por escritura pública, dispensada a homologação judicial, cuja função serviria ao exame de adequação e validade formal, da documentação e da conformidade da vontade diante da necessária capacidade civil, atribuindo-se ao notário esse controle de formalidades. Também ao Ofício do Registro Civil, mediante Termo de declarações da TDA., pelo apoiado e apoiadores, nos casos de natureza familiar e nos demais que couber.
No mais, a consagração da tomada de decisão apoiada, no campo extrajudicial, foi defendida pela Comissão de Juristas encarregada da atual reforma do Código Civil brasileiro, por “atender à necessidade da sociedade moderna de garantir maior liberalidade aos sujeitos de direito e de simplificar os atos e negócios jurídicos".
Somente “em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores”, seria a hipótese de provocação jurisdicional, para o juiz decidir sobre a questão, tal como previsto pelo art. 1.783-A- § 6º do Código Civil. Outras hipóteses judicializáveis contemplam-se para os motivos de exclusão do apoiador e da apuração de sua responsabilidade civil por danos ocorrentes.
A propósito da presumida autonomia de vontade e não tendo o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) previsto o uso da tomada de decisão apoiada, cuidamos que esse suporte de apoio também deva ser destinado à via administrativa, somente resguardando-se aos meios judiciais quando houver dúvidas levantadas pelos serviços registrais.
A deficiência é apenas mais uma variável da condição humana, como assinalam Ana Carolina Brochado Teixeira e Andrezza Cássia da Silva Conceiçao, exigindo-se da doutrina maiores esforços referenciais sobre suas realidades específicas.
Um procedimento de tomada de decisão apoiada haverá de bem situar-se no caso concreto, quando o contexto biopsicossocial que envolve a pessoa com deficiência e sua família em interação com a sua vida civil deve ser a base finalística do suporte de apoio à decisão.
De logo, reflita-se sobre a necessidade de políticas públicas, que propiciem o incremento desse instituto, consolidando uma efetiva fruição dos direitos das pessoas com deficiência, tendo a igualdade material como resultado útil. Mais que isso, estimulando o manejo da TDA por outras pessoas, mesmo não descapacitadas ou vulneráveis.
De ver que na experiencia do direito alemão, a Tomada de Decisão Apoiada se encontra municipalizada, havendo na maioria das cidades dos dezesseis estados da Alemanha, núcleos de atendimento para o estímulo público da prática, dispondo de apoiadores qualificados a esse incremento.
Ao fim e ao cabo de dez anos de vigência do novel instituto, em nosso país, tenha-se por providencial e urgente a instalação nas Varas de Família do Judiciário nacional, de Núcleos de TDAs. Em conformidade com o modelo alemão, servindo como sedes propulsoras de decisões que recepcionem jurisdicionalmente o apoiado, sujeito de direitos, em proteção dos seus mais diversos interesses.
A jurisprudência brasileira tem reconhecido a importância da TDA, como medida preferencial à interdição, bastando referir, por todos, o julgado seguinte:
É irrelevante o fato de ter havido a produção de prova pericial na ação de interdição que concluiu que a cônjuge possui doença de Alzheimer, uma vez que não se examinou a possibilidade de adoção do procedimento de tomada de decisão apoiada, preferível em relação à interdição e que depende da apuração do estágio e da evolução da doença e da capacidade de discernimento e de livre manifestação da vontade pelo cônjuge acerca do desejo de romper ou não o vínculo conjugal.” (STJ-3ª Turma, REsp 1645612/SP). (06)
A doutrina, a seu turno, tem contribuído com importantes obras. (07)
A Tomada de Decisão Apoiada tem atuado como regra predominante, assim revelando-se como um avanço humanitário nos ordenamentos jurídicos modernos.
Referências Bibliográficas:
1.O presente artigo resulta de texto conciso extraído da palestra proferida pelo autor, na Universidade de Keiô, em Tokio, Japão. 27.11.25.
2.Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD). Web: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
4.“A medida de tomada de decisão apoiada exige requerimento da pessoa com deficiência, que detém a legitimidade exclusiva para pleitear a implementação da medida, não sendo possível a sua instituição de ofício pelo juiz.” (REsp 2107075/SP, Rel. Min. Nancy Andrigui, julgado em 27;08.2024).
5.“A medida de tomada de decisão apoiada é preferível em relação à interdição, pois se trata de medida restritiva menos gravosa e potencialmente mais interessante e benéfica ao curatelado”. (Idem: REsp 2107075/SP).
6.Web:
7. RIOS, Juliana Prado Vieira. “Curatela x Tomada de Decisão Apoiada: Modificações Trazidas pela Lei nº 13.146/2015”, Ed. Criação, 2025;
8. CUNHA, Isis Laynne de Oliveira Machado. “A Tomada de Decisão Apoiada para Pessoas Idosas no Brasil”. Ed. Lumen Juris, 2023;
9.GUSMÃO, Henrique Brandão Acioly de. “O Instituto da Tomada de Decisão Apoiada...”, Lawinter Editions, 2022;
10.COUTO, Letícia Ferreira. A Tomada de Decisão Apoiada e seus Sujeitos. Ed. Dialética, 2021;
11.PEREIRA, Jacqueline Lopes. Tomada de decisão Apoiada, Juruá Editora, 2019.
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[1] Desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e parecerista.
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