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Contrato e pacto antenupcial pela perspectiva de gênero
O Direito das Famílias e Sucessões está cada vez mais contratualizado. Isto é resultado da evolução e valorização da autonomia privada, que por sua vez, vem em consequência do reconhecimento do sujeito de Direito como sujeito de desejos. E a consideração do desejo de cada um está diretamente conectado ao respeito, à autonomia da vontade, à humanidade de cada um, e ao macroprincípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Com o aumento das conjugalidades sucessivas, isto é, segundo, terceiro… casamento/união estável, as pessoas começaram a sair do “contrato automático”, ou seja, do contrato de comunhão parcial de bens, e passaram a fazer contratos particularizados. É muito saudável que as pessoas tenham a liberdade de instituírem regras próprias para sua convivência. E isto já era previsto no CCB-1916, repetido no CCB-2002, “É licito aos sujeitos, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver (artigo 1.639-CCB 202). E continua na proposta de reforma do CCB (PL 04/2025).
Apesar da clareza da regra, a maioria das pessoas ainda tem constrangimento de discutir as questões patrimoniais que regerão suas vidas dali para frente. Muitos relacionamentos não dão certo porque não falaram sobre isso antes de se casarem. Esse “não dito” vai causando um incômodo com a situação de injustiça que pode decorrer dali, e esse incômodo, esse mal estar destrói a conjugalidade. Falar sobre as regras patrimoniais que regerão a conjugalidade, é cuidar do amor, é aumentar a possibilidade da união ser mais duradoura. Não é fácil, mas necessário. O amor dá trabalho e, pressupõe, também, responsabilidade.
Um contrato justo é aquele que considera as particularidades de cada casal, inclusive, dimensionando e equalizando a força de trabalho de cada um. E, é justamente na divisão sexual do trabalho que reside a solução da equação para se chegar em regras mais justas e adequadas.
Foi com esse propósito que o CNJ estabeleceu a Resolução 492/2023, implementando Protocolo de Julgamento pela Perspectiva de Gênero. Esse regramento traz uma importante, e significativa, diretriz para encontrar a mais justa adequação na elaboração dos contratos de conjugalidade. Ele pontua que as relações domésticas são marcadas pela naturalização dos deveres de cuidados não remunerados para as mulheres. Então, a elaboração de contratos conjugais, sejam eles pré, pós ou paraconjugais, deve ser levado em conta o trabalho doméstico invisibilizado. Trazê-lo à luz é reequacionar a divisão sexual do trabalho, que tem sido fruto e reprodutor de desigualdades sociais, e principalmente de gênero. A perspectiva de gênero não é um adorno ideológico ao Direito das Famílias. É uma lente que permite ver o que o sistema patriarcal oculta. Um contrato ou pacto antenupcial, elaborado sem esse olhar crítico, pode ajudar a perpetuar o silenciamento da mulher e legitimar a exploração de seu trabalho invisível.
Assim como existe o segundo sexo (Simone de Beauvoir), existe uma segunda economia. O trabalho tradicionalmente executado por homens é o que sempre foi considerado pela economia de um país. É ele que define a visão do mundo econômico. O trabalho da mulher é “o outro”. É tudo o que ele não faz, mas que depende dele para poder fazer o que faz, para poder fazer as coisas importantes [1]. A grande virada na compreensão de um Direito das Famílias mais justo é exatamente levar em consideração essa outra economia, esse trabalho invisível, tão essencial para qualquer economia. Passou da hora de esse trabalho doméstico invisível ser considerado no PIB de um país. E, no cotidiano e prática do Direito das Famílias, podemos traduzir essa economia do cuidado em textos jurídicos, atendendo assim o que dispõe a Resolução CNJ 492/2025. Em outras palavras, a mulher entrou no mercado de trabalho remunerado, mas o homem ainda não entrou totalmente no mercado de trabalho doméstico, isto é, ainda não se ocupa das mesmas tarefas domésticas que a mulher.
Os contratos em Direito das Famílias e Sucessões são um bom caminho de acesso à prática da igualização de direitos. Isso porque todas as relações, mesmo as afetivas e conjugais, são uma relação de poder. Assim como o dinheiro é um poder masculino, os filhos são instrumentos de poder feminino, com o qual se controla, se condiciona, se exerce pressão, satisfazem vinganças etc [2].
Perspectiva do homem e o déficit profissional da mulher
A elaboração de um pacto antenupcial/contrato de convivência significa adequar a realidade do mundo masculino ao mundo feminino. Em geral, o homem, que tem o poder do dinheiro, quer o regime da separação de bens. Entretanto isso pode se tornar muito injusto para mulher, que, mesmo tendo sua autonomia financeira, terá um déficit profissional em razão da maternidade, algo que nós homens não temos em razão da paternidade.
Por exemplo, uma profissional autônoma poderá ficar afastada de suas funções profissionais em razão da gestação, amamentação e cuidados com os filhos, ainda que tenha empregados à sua disposição. Se ela deixar o trabalho para acompanhar o marido/companheiro, para outra cidade ou país, seja em razão do trabalho dele, ou férias regulares, quem suprirá a falta de ganhos dela durante essa ausência? Por outro lado, durante a ausência do empresário naquele período, em nada diminuirá seus ganhos ou a acumulação de sua riqueza. Enquanto isso, a mulher não apenas deixará de ganhar dinheiro, assim como deixará de acumular riquezas.
Na perspectiva masculina, a mulher deveria agradecer por ter um marido que paga suas viagens e as despesas do lar conjugal, enquanto ela não precisa se preocupar ganhar dinheiro para ajudar a sustentar as despesas do cotidiano de casa. Em uma perspectiva de gênero, o marido/companheiro empresário deveria não apenas sustentar a casa durante a ausência do trabalho, em razão dos cuidados com os filhos e eventuais viagens prolongadas de férias, bem como repor a perda do dinheiro que ela deixou de ganhar em razão da ausência de seu trabalho para se dedicar às tarefas domésticas e ao marido/companheiro.
Em uma visão machista, poderia se pensar que o homem estaria pagando a mulher para ter filhos e acompanhá-lo em viagens. Em caso de dissolução da sociedade conjugal, se o regime for o da separação de bens, a situação da mulher se torna extremamente desvantajosa: enquanto o marido aumentou seu patrimônio, a mulher ficou impedida de acumular, ou pelo menos não pôde acumular ou aumentar seu patrimônio. Esse déficit profissional pode ser compensado em um pacto/contrato de convivência estabelecendo cláusulas que tenham essa perspectiva, isto é, que considere as diferenças dos gêneros e a divisão sexual do trabalho.
Numa perspectiva de gênero, se escolherem o regime da separação de bens, inclusive para que o homem tenha a liberdade de praticar atos empresariais sem a assinatura da mulher, pode-se abrir exceções a esse regime para dizer, por exemplo, que depois de determinado tempo de casamento alguns bens pertencerão também à mulher. E, na medida que a relação se prolongue no tempo, e se o casal tiver filhos, o percentual poderá ir aumentando.
É conveniente também, a depender das peculiaridades de cada casal, que se estabeleça uma pensão compensatória, em caso de dissolução da sociedade conjugal em vida. Se dissolvida pela morte, possível estabelecer a renúncia ao direito de concorrência sucessória. Importante que se deixe claro no pacto que os cônjuges/companheiros reconhecem como economicamente relevantes as atividades de cuidado com filhos, trabalho doméstico, suporte à carreira do outro cônjuge/companheiro e demais formas de contribuição indireta.
Embora possa parecer óbvio, é importante dizer que as partes se comprometem a respeitar mutuamente a liberdade profissional, acadêmica e econômica de cada um, abstendo-se de impor ou exigir restrições ao desenvolvimento individual em função de papéis de gênero, exigências familiares ou tradições culturais; que se comprometam a compartilhar igualmente as responsabilidades parentais, tanto no que se refere ao cuidado direto, quanto às obrigações financeiras, independentemente da situação conjugal futura; que estabelecem o compromisso de uma convivência baseada no respeito mútuo e na equidade de gênero e não violência. Pode-se estabelecer também que as partes se comprometem, antes de recorrer ao Judiciário a buscar mediação ou arbitragem, como forma de resolver as divergências com dialogo e responsabilidade.
Enfim, o pacto antenupcial e o contrato de união estável deixaram de ser apenas instrumentos técnicos de escolha de regime de bens. Tornaram-se expressões de autonomia e de consciência dos sujeitos desejantes e responsáveis que decidem formar uma família. Representam um gesto jurídico e ético de afeto em que razão e emoção se encontram para construir relações mais justas e equilibradas.
[1] MARÇAL KATRINE- O lado invisível da Economia – uma visão feminista do capitalismo – Trad. Laura Folgueira- 2ª e. São Paulo: Alaide Editorial, 2022, pag.26.
[2] CORA, CLARA. O sexo oculto do Dinheiro – Formas de dependência feminina. Trad. Graciola Rodrigues. Rio de Janeiro: Record Rosa dos Tempos,1996, p.106.
Disponível: https://www.conjur.com.br/2025-dez-14/contrato-e-pacto-antenupcial-pela-perspectiva-de-genero/
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