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Abandono Afetivo x Decisões judiciais de convivência
Introdução
A convivência familiar é reconhecida pela Constituição Federal como direito fundamental da criança e do adolescente (art. 227), sendo ampliada pela jurisprudência e pela legislação infraconstitucional como elemento essencial ao desenvolvimento emocional, social e psicológico das crianças.
Tradicionalmente, os tribunais brasileiros vêm estabelecendo regimes de convivência mínimos, entre eles o modelo amplamente difundido de fins de semana alternados, com ou sem pernoite, como forma de assegurar contatos periódicos com o genitor que não detém a guarda ou domicílio principal, no caso de guarda compartilhada.
Com a recente alteração legislativa que passa a considerar ilícito civil o abandono afetivo, aí inclusa a ausência de convivência com filhos menores, surge um novo paradigma: não basta cumprir um calendário mínimo de visitas; há uma expectativa jurídica de participação ativa, contínua e próxima na vida da criança.
Penso que um dos alvos principais dessa nova lei seja aliviar a sobrecarga histórica suportada pelas mães que, em sua grande maioria, são as principais responsáveis pelo cuidado, criação e educação dos filhos.
Este artigo visa explorar esse contraste: de um lado, o modelo tradicional, padronizado e muitas vezes insuficiente; de outro, a positivação do dever de cuidado afetivo, que transforma a falta de convivência em violação de dever jurídico, com repercussões patrimoniais.
O modelo tradicional das decisões judiciais: fins de semana alternados como “padrão mínimo”
Há décadas, quando pais se separam, os tribunais — buscando previsibilidade e segurança — fixam a convivência do genitor não guardião, ou daquele que não detém o domicílio principal do menor, em fins de semana alternados, eventualmente acrescidos de uma visita semanal.
E todo militante desta área do Direito sabe quantas demandas geram tais decisões. No meu caso específico, este foi o maior desafio que encontrei nos 30 anos de advocacia exclusiva na área do Direito das Famílias, em especial quando represento o pai.
Esse modelo, embora pareça funcional em termos organizacionais, apresenta uma série de problemas:
a. Reduz a convivência a poucos dias por mês, sabidamente insuficiente para a construção de vínculos profundos e para o exercício adequado da função parental;
b. Transforma o genitor numa presença “eventual”, insignificante para transmitir valores de verdadeira educação, pois não há convivência suficiente;
c. Ignora particularidades do caso concreto, replicando um padrão quase automático;
d. Muitas vezes mantém a lógica ultrapassada da “visita”, e não da corresponsabilidade parental.
Infelizmente, decisões judiciais sobre a convivência com filhos, do tipo sob comento, no caso de separação e divórcio, são muito mais comuns do que se gostaria. É uma triste realidade.
Também é muito presente, nos casos de lares desfeitos, a utilização dos filhos como “armas de vingança”. Quando o amor acaba e o lar se desfaz, geralmente por iniciativa de uma parte e resistência da outra, essa briga é levada ao Judiciário, trazendo, como solução imediata, essa padronização de decisões. Nesses casos, o simples cumprimento desse mínimo seria suficiente para afastar alegações de abandono afetivo, sob o entendimento de que havia participação regular, ainda que limitada.
A nova lei do ilícito civil por abandono afetivo: mudança de paradigma
Com a nova legislação — que expressamente tipifica como ilícito civil o abandono afetivo, inclusive por ausência de convivência ou contribuição efetiva ao desenvolvimento do menor — ocorre uma ruptura significativa. Enfim!
Agora, a falta de afeto ou presença não é apenas um déficit moral ou ético, mas sim um descumprimento jurídico, passível de indenização.
Abaixo, citam-se tópicos que a lei reforça:
* A convivência é parte do dever de cuidado.
* O pai ou a mãe não pode se limitar a este mínimo geralmente fixado judicialmente, se isso não atender às necessidades emocionais da criança ou adolescente.
* A omissão afetiva e a ausência de participação na vida cotidiana configuram lesão ao direito da personalidade da criança.
Assim, chegamos a um confronto: cumpre-se a lei ou cumpre-se a decisão judicial?
O conflito entre os dois modelos
A tensão surge quando um genitor cumpre formalmente a convivência fixada (por exemplo, fins de semana alternados), mas não exerce presença afetiva real, não participa da rotina escolar, médica, emocional, nem mantém diálogo contínuo.
Aí vem a pergunta que não quer calar:
O cumprimento do cronograma mínimo impede a configuração do abandono afetivo?
Com a Nova lei, a resposta tende a ser: NÃO. E espero que seja…
Nesse sentido, tem-se que o calendário mínimo:
* É instrumento processual, não garantia de relação saudável;
* Não dispensa a participação ativa no desenvolvimento do menor;
* Não elimina o dever de cuidado afetivo.
Desta forma, abrem-se vários questionamentos.
O genitor, mesmo cumprindo a decisão das visitas, pode ser responsabilizado se demonstrada indiferença emocional?
Outro ponto: se houver comportamento de afastamento voluntário — ou provocado — nos intervalos entre as visitas, será responsabilizado?
E como decidirão os juízes quando o genitor cumpre a determinação judicial da convivência, mas descumpre os deveres implícitos à parentalidade?
A nova lei do abandono afetivo esclarece os deveres dos pais e mães para com seus filhos. Os genitores, além de prover as necessidades financeiras, agora têm a obrigação legal de garantir a assistência moral e afetiva para o desenvolvimento psicológico e social da prole, participar ativamente da vida do filho, o que inclui convivência, orientação e presença constante.
O objetivo da lei é reafirmar o princípio da paternidade/maternidade responsável, que entende o cuidado parental de forma integral, indo além da mera pensão alimentícia.
Consequências jurídicas práticas
A doutrina e a jurisprudência tendem a caminhar para o reconhecimento de que a convivência não pode ser apenas formal, mas substantiva.
Também se salienta que o cumprimento mínimo não impede o ilícito civil se houver omissão afetiva.
Neste caso, incumbirá ao juiz:
a) adaptar regimes de convivência mais amplos;
b) promover acordos individualizados;
c) fiscalizar o exercício efetivo da parentalidade.
Na aplicação da nova lei do abandono afetivo, poderá haver direito à indenização quando comprovado o afastamento voluntário, desinteresse reiterado e danos emocionais ao menor.
Caminhos para aprofundamento futuro
Temos grandes desafios pela frente, em especial para a advocacia especializada de Família, magistrados, promotores e todo o séquito de profissionais que lidam nesta preciosa área do Direito. Serão muitos seminários, congressos, debates, estudos e teses. Dados de pesquisa e estatísticas seriam muito bem-vindos para enriquecer a informação necessária para o bem dos infantes.
Saliento que este artigo pretende apenas ser um ponto de partida para reflexão e aprofundamento, que prescinde de muito estudo à nossa frente.
Para o aprofundamento do assunto, podemos utilizar a comparação jurisprudencial entre tribunais que ainda adotam o padrão tradicional e decisões inovadoras que reconhecem o abandono afetivo mesmo com convivência mínima. Também será importante a análise constitucional do dever de cuidado e o diálogo entre o novo ilícito civil e a guarda compartilhada.
Além destes, será um bom campo para estudos empíricos sobre impacto emocional da convivência limitada, associado ao olhar psicológico. E, principalmente, refletir sobre o papel do Judiciário na personalização dos planos de parentalidade. Aliás, já temos decisões que intimam os genitores a apresentarem Planos de Parentalidade nas ações litigiosas de divórcio, onde existem filhos menores.
Conclusão
A positivação do ilícito civil por abandono afetivo inaugura uma nova perspectiva sobre a convivência familiar: ela deixa de ser mera formalidade e passa a exigir participação ativa, presente e responsável. O histórico modelo dos fins de semana alternados, embora funcional, revela-se insuficiente para garantir à criança o direito fundamental à parentalidade plena.
O Direito das Famílias em nosso país se encaminha, assim, para superar a lógica da “visita de filhos” e consolidar a ideia de coparentalidade efetiva, onde o afeto, a presença e o cuidado são elementos juridicamente exigíveis. Enfim, a lei se aproxima da realidade que se percebe ao longo dos anos de militância nas Varas de Família, contribuindo, assim, para a construção de uma sociedade bem mais saudável.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
BRASIL. Lei nº 14.846/2024 (abandono afetivo).
CNJ. Recomendações sobre guarda compartilhada e convivência parental.
Autora:
Eliana Giusto
Advogada de Família
Licenciada em Filosofia
Especialista em Desenvolvimento Infantil
Extensão em:
Mediação de Conflitos
Comunicação Não Violenta
Círculos de Paz
Constelações Familiares
Direito Sistêmico
Psicotrauma
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