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Reflexões sobre a violência doméstica sob uma nova perspectiva
REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SOB UMA NOVA PERSPECTIVA
Fernanda Las Casas[1]
Desde 2005, com a criação da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo Instituto DataSenado, os índices de violência doméstica têm sido coletados de modo sistemático. Aplicada bienalmente, a pesquisa foi fundamental para subsidiar a elaboração da Lei Maria da Penha, sancionada em 2006. A partir dos dados obtidos, é possível tornar visível a realidade dos lares brasileiros e pensar em políticas públicas.
Os últimos dados coletados demonstram o seguinte panorama para as mulheres brasileiras[2]:
- Denúncias de violência: de janeiro a julho de 2023 foram registrados 86.000 casos, uma média de 17 denúncias por hora.
- Vítimas ao longo da vida: mais de 25,4 milhões de brasileiras já sofreram violência doméstica.
- Casos recentes (últimos 12 meses): cerca de 22% das mulheres que sofreram violência disseram que um episódio ocorreu nesse período.
- Local mais comum: a residência da vítima é o cenário mais frequente de violência, tanto para denúncias quanto para notificações de violência geral.
- Autores: na maioria dos casos, o agressor é o atual ou ex-companheiro, namorado ou marido.
- Feminicídios: 1492 casos consumados em 2024, equivalente a quatro mulheres mortas por dia e em 2025 no primeiro semestre tivemos 718.
Mesmo diante de tantos avanços sociais e legislativos, ano após ano não se observa a regressão da violência; ao contrário, percebe-se um aumento crescente. E, diante de questões tão sensíveis, que afetam diretamente o dia-a-dia e o bem estar de nossas famílias, muitas perguntas surgem sobre a vulnerabilidade da mulher em seu próprio lar, e sobre a agressividade do homem nos relacionamentos.
Como está comprovado, apenas compilar dados, elaborar projetos de lei, e criar casas de apoio a vítimas de violência doméstica não tem sido estratégias suficientes para eliminarmos essa guerra entre os sexos. É necessário buscar soluções através de novas perspectivas.
Observando o passado, pode-se facilmente perceber que as mulheres são retratadas como vulneráveis, frágeis e sem ação. Por essa razão, elas têm sido sistematicamente silenciadas, através de uma organização social e estatal que controlava (e ainda controla, em parte) seus comportamentos e seus corpos. A história nos relembra que foi apenas no ano de 1827 que as mulheres foram autorizadas a frequentar escolas com acesso às mesmas matérias ensinadas aos meninos, e que somente em 1879 elas tiveram autorização estatal para cursar o ensino superior. No entanto, ainda que tivessem acesso a ter um diploma, a elas era proibido trabalhar sem a anuência do marido. Notavelmente, foi somente após o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/1962) que se eliminou a incapacidade civil da mulher (uma ficção criada pelo Estado). A partir de então elas puderam passar a trabalhar e até mesmo receber herança sem autorização do marido.
Contudo, a figura do marido ainda foi mantida como a de chefe da sociedade conjugal, cabendo exclusivamente a ele decisões importantes, como escolha da residência do casal e a religião dos filhos, por exemplo, o que perpetuava a submissão da esposa.
Foi há apenas 37 anos, com a Constituição de 1988, que a mulher obteve igualdade de direitos e de condições em relação ao homem na questão social e trabalhista, bem como no âmbito familiar. Isso, contudo, não as tirou da condição de vítimas, pois continuaram a sofrer nas mãos de homens com quem mantinham vínculos afetivos, fossem maridos, companheiros, namorados e até pais e irmãos, sob a justificativa de “defesa da honra”.
No ano de 2023, a tese de “legítima defesa da honra” em um caso de feminicídio foi considerada inconstitucional, através do julgamento da ADPF 779, com o argumento de que tal pressuposto legal viola os princípios da dignidade da pessoa humana da mulher, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Ainda que tardiamente, esse caso retirou, finalmente, o manto protetivo dos agressores de mulheres.
Mas é fundamental questionar, a este ponto: o homem é, de fato, violento por natureza? Quando observamos meninos na primeira infância, vivendo em um ambiente saudável e harmonioso, percebemos que são empáticos, gentis e amorosos. Então, é certo que os perdemos para a violência em algum momento entre a infância e a fase adulta, quando passam a protagonizar o papel de algozes das suas mulheres.
E as mulheres são, de fato, frágeis e vulneráveis? Pode-se observar, pelas estatísticas, que meninas são abusadas na infância, que não são incentivadas a prosseguir nos estudos, que cuidam de seus irmãos menores, e que, já adultas, ao se relacionarem com homens, enfrentam a sobrecarga de trabalho, tanto fora como dentro de casa, com a família e filhos. Elas vivenciam situações de violência de todas as formas e em todas as fases da vida. Para sobreviver a essas condições, precisam de muita força interna para não sucumbir. Assim, não se trata de fragilidade natural ou vulnerabilidade “natural”, mas de uma vulnerabilidade incidental, imposta pela forma de organização cultural em que vivemos.
Essas estruturas, que criam estereótipos de gênero, acabam por aumentar essa “guerra entre sexos” que vemos todos os dias nos noticiários, com o aumento de casos de feminicídio e de violência doméstica. Por essa razão, soluções no âmbito legal, como a tipificação do crime de violência contra a mulher e o aumento da pena para os agressores, não resolvem o problema. É preciso ampliar a prevenção da violência desde a base, ou seja, quando os meninos e as meninas ainda estão em formação, antes que entrem no ciclo da violência de gênero.
Questões culturais arraigadas, sustentadas por mitos consolidados no imaginário social, contribuem para esse quadro. O mito da virilidade masculina pressupõe que os homens são naturalmente fortes, corajosos e inclinados à violência, e serão socialmente mais valorizados quando apresentam essas características. Do mesmo modo, o mito da maternidade impõe às mulheres uma obrigação de que se mostrem frágeis, dóceis, abnegadas e indefesas. Tais estereótipos acabam por formar padrões sociais rígidos, que produzem consequências graves, como o aumento nos números de encarceramentos masculinos e índices cada vez mais elevados de feminicídios e violência contra a mulher.
Para que não seja mais necessário determinar uma data, como a do dia 25 de novembro, dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, para que o assunto seja relembrado, trago algumas soluções possíveis para a proteção da mulher e prevenção da violência, a médio e longo prazo:
- Criminalizar o abandono à gestante. Caso não tenhamos um sistema que assegure à mulher que o pai será responsabilizado pela paternagem, as famílias monoparentais continuarão sendo predominantemente lideradas por mulheres, em especial as mulheres pretas e empobrecidas. Essas mães continuarão sofrendo com o descaso moral e social que as deixa vulneráveis a todo o tipo de violência.
- Proibir comerciais, filmes, novelas, séries e conteúdo em mídias sociais com conotação misógina e sexista (apenado com multa). A mudança social só pode começar através do controle de um comportamento social. Para haver respeito à dignidade da mulher é necessário que o Estado atue para controlar situações e ações misóginas e sexistas que possam desencadear comportamentos violentos.
- Substituir as atuais licença maternidade e paternidade pela “Licença Parental”. Tal licença deve ter duração mínima de seis meses, podendo chegar a um ano, período em que existirá a possibilidade da paternagem e da maternagem, simultaneamente e/ou alternadamente. Assim, homens e mulheres poderão utilizar a licença dentro do período, para que a carreira da mulher não seja a única diretamente afetada com o nascimento dos filhos. Essa mudança de conduta possibilita à mulher uma nova forma de exercer a maternidade, e assegura maior estabilidade no vínculo laboral, favorecendo tanto trabalhadores quanto empregadores. Essa divisão traz ainda como benefício menor sobrecarga à mulher pela divisão da atividade de cuidado com a criança.
- Aumentar no número de creches em todo o território nacional. Isso contribui para que mulheres saiam de situações de violência, já que terão uma forma de deixar seus filhos em segurança e poderão retornar ao mercado de trabalho.
- Penalizar os empregadores que demitirem mulheres com filhos com idade até 5 anos. A medida deve ser tomada a curto prazo para mudar as estatísticas de desemprego de mulheres. Dados demonstram que 49% das mulheres são demitidas no 1º ano após o nascimento do primeiro filho.
- Estabelecer indenização ao cônjuge que se dedicar à atividade de cuidado (mesmo que não seja de forma isolada) por ano de dedicação. O valor deve ser depositado em conta remunerada, desde o início da atividade de cuidado, independentemente de ruptura conjugal. Tal mudança irá gerar uma ruptura de paradigma, para que o cônjuge que se dedica ao lar seja valorizado.
- Tornar obrigatórias, nas escolas, aulas que visem a autonomia do indivíduo, como cuidados domésticos e puericultura, além de aulas de economia (básica à avançada), por todo o período escolar. Uma mudança comportamental que irá gerar adultos funcionais e levar a uma natural cultura de paternagem, rompendo de vez com os mitos do passado.[3]
Para que se alcancem resultados concretos, com a mitigação e eventual desaparecimento da violência doméstica, é imprescindível implementar algumas das mudanças sugeridas de modo imediato. Para que se colham resultados duradouros, é necessário reestruturar a cultura, iniciando pela educação básica e pela revisão de legislações de cunho misógino. Além disso, é preciso refazer os padrões estabelecidos em virtude de gêneros, para que as novas gerações compreendam que todos devem participar e são integralmente responsáveis pelo cuidado das formações familiares. Se a família é a base da sociedade, essa base não pode continuar recaindo exclusivamente sobre a mulher, sem a divisão de tarefas de cuidado. Tem-se que levar em conta, também que a riqueza também seja distribuída de forma justa e solidária, e compartilhada de maneira equitativa.
É essencial enfrentar a violência contra a mulher atacando as causas primárias. Trata-se de um desafio que não pode ser enfrentado com soluções simplistas; contudo é fundamental que esse enfrentamento seja iniciado imediatamente, para que a “guerra entre sexos” seja finalmente eliminada, e para que a harmonia e a prosperidade sejam garantidas para as próximas gerações.
[1] Advogada e Pesquisadora. Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo - USP, Mestra em função social do Direito pela Faculdade Autônima de Direito de São Paulo – FADISP, Especialista em Direito de Família e Sucessões na Escola Superior de Advocacia de São Paulo. Presidente da Comissão Nacional de Pesquisa do IBDFAM, autora e coautora de livros e artigos jurídicos, organizadora e coordenadora de diversas obras, entre ela é autora do livro “Família: Mitos Ancestrais e Crise da Maternidade”. Contato: Escritório (11)3124-2888 – whatsapp (11) 91644-8877 – email: contato@fernandalascasas.com.br – Redes Sociais @fernandalascasas
[2] Agência Senado. DataSenado. Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher - DataSenado 2023. Site: https://www.senado.leg.br/institucional/datasenado/paineis_dados/#/dados-abertos
[3] Sugestões trazidas no livro Família: Mitos Ancestrais e Crise da Maternidade. Indaiatuba: FOCO, 2025.p.156/157 de minha autoria.
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