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O renascimento dos bens reservados?
Sob as luzes de uma interpretação conforme à Constituição, a aplicação do novo Código Civil pode abrigar a sinóptica separação de planos entre a dimensão patrimonial e o campo pessoal nos direitos subjetivos familiares.
Na seara pessoal, as relações jurídicas são governadas por normas guiadas por uma axiologia constitucional. É o estatuto jurídico do "ser", apreendido em sua projeção sociológica que se lança eticamente para o ordenamento jurídico.
Na quadra patrimonial, equilibram-se os ditames da funcionalização endógena dos respectivos institutos, categorias e figuras jurídicas (especialmente bens, posse e propriedade), e o norte da autonomia privada matizada por preceitos da ordem pública, nos termos do parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil vigente.
Esses dois espaços são interpretados por princípios (como a igualdade) e caracterizados por tendências contemporâneas (como a constitucionalização). A incidência do princípio da igualdade (tomada em sua perspectiva substancial), operando de modo direto e imediato como norma vinculante, não afasta (ao contrário, promove) o respeito à diferença.
Desse modo, diante da igualdade entre o homem e a mulher entre si casados sustentou-se, ainda na vigência do antigo Código Civil, a revogação tácita dos bens reservados da mulher em face do texto da Constituição de 1988. Havia, naquele Código de 1916 alterado em 1962, a situação jurídica dos bens reservados da mulher, reputados, com acerto, "bens particulares da mulher, excluídos da comunhão universal", como anotam José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz (à página 329 da obra "Curso de Direito de Família", ed. Juruá, 2ª. ed.).
Essa revogação tácita por inconstitucionalidade superveniente se deu porque a hipótese acarretava um desequilíbrio discriminatório insustentável, isto é, traduzia ofensa ao princípio constitucional da igualdade. A idéia da preservação de um "resíduo diferenciador", assentado na diferença de tratamento que "iguala os desiguais", não teria sido suficiente para manter a regra dos bens reservados da mulher (art. 246 do CCB de 1916) e estender a categoria dos bens reservados ao homem casado.
A partir de 11 de janeiro de 2003, a vigência da Lei nº 10.406, de 2002, instituidora do novo Código Civil, açulou debates que ainda não elucidaram de todo os dilemas decorrentes dos aspectos materiais da vida conjugal, especialmente dos regimes matrimoniais de bens das pessoas entre si casadas.
O CCB de 2002 prevê diversos regimes matrimoniais de bens e admite, nos termos da lei, a sua respectiva alterabilidade, balanceando liberdade, auto-regramento privado e regras (ora supletivas, ora cogentes).
Não prevê, expressamente, bens reservados. Poderia tê-lo feito? Ao não fazê-lo, admite-se, implicitamente, a configuração, por ato de vontade via instrumento público extrajudicial, de um patrimônio separado (do homem ou da mulher casada)?
Eis aí o sentido desta reflexão problematizadora: seria possível sustentar o renascimento da possibilidade jurídica dos bens reservados diante do novo Código Civil e à luz de uma interpretação conforme à Constituição?
Em caso afirmativo, esse "aggiornamento" pode representar faculdade atribuível a ambos os cônjuges, com amplos poderes de administração e disposição, cujo exercício teria dois limites: o interno (não frustrar a comunhão de vida que a união conjugal deve significar) e o externo (não servir de instrumento à fraude e à ofensa da boa-fé de terceiros). A base estaria em hermenêutica analógica e extensiva do art. 1.639, § 2º do Código Civil.
Registre-se, ademais, que com o novo CCB há um novo regime de bens, a participação final nos aqüestos (bens adquiridos durante o casamento), que se assemelha, mas não se confunde ao regime da comunhão parcial de bens. Tem sido salientado, com razão, que o novo regime dá autonomia a cada cônjuge, que poderá administrar seu patrimônio de acordo com seus interesses.
A propósito, prevê o novo Código Civil: " É admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros" (art. 1.639, § 2º., CCB).
Em caso negativo (não se admitindo essa renascença da situação jurídica originariamente prevista na Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962), interpretar-se-ia o governo jurídico da dimensão patrimonial dos direitos subjetivos de família submetido a regras imperativas numerus clausus. Em decorrência, na falta de permissão ex lege afastar-se-ia a hipótese ex voluntate.
A questão sumariamente exposta, em síntese que não esgota todos os seus aspectos, arrosta doutrinadores e juristas práticos.
Subscrevo a tendência que admite a hipótese, esperando de modo singelo e precário contribuir nesse debate em aberto, sem verdades apriorísticas.
Impende ter presente o sentido e o alcança daquela antiga regra (art. 246 do Código Civil de 1916), introduzida no bojo do Estatuto da Mulher Casada e da arena social, cultural e econômica do começo dos anos 60. Seus pressupostos históricos, numa perspectiva emancipatória da condição feminina, se mantêm? Assentindo na resposta, cumpriria, então, na atualidade, indagar a que e a quem abriria as portas essa renovada possibilidade de existir, no casamento, um patrimônio destacado do acervo comum.
Se igualdade e diferença principiam a travessia que decola do código da vida, fazem escala nas leis especiais e na legislação esparsa das décadas de 70 e 80 do século pretérito, e aterrissam na Constituição de 1988, quiçá outro olhar se repõe ao começo do século XXI diante de uma principiologia axiológica de índole constitucional que se projeta para o Código Civil de 2002.
Colho, como ponto de partida , a lição do Ministro Sálvio de Figueiredo lançada no Recurso Especial nº 7631 - Rio de Janeiro:
“Em se tratando de direitos fundamentais de proteção à família e à filiação, os preceitos constitucionais devem merecer exegese liberal e construtiva, que repudie discriminações incompatíveis com o desenvolvimento social e a evolução jurídica”.
O porto de chegada colherá a ancoragem fática que se fizer possibilidade jurídica.
Luiz Edson Fachin é diretor nacional do IBDFAM/Região Sul |
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