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“Até que a Morte nos Separe”: A Exclusão do Cônjuge como Herdeiro Necessário no PL 04.2025
Beatriz Almeida de Oliveira[1]
Ruana Rúbia Aires Valério[2]
RESUMO. O presente estudo analisa a exclusão do cônjuge como herdeiro necessário no Projeto de Lei n. 04/2025, que propõe a reforma do Código Civil. A proposta suprime a garantia sucessória do cônjuge, alterando profundamente o sistema de herança no país. O objetivo central é analisar o impacto da reforma e atualização do Código Civil, que exclui o cônjuge sobrevivente da condição de herdeiro necessário, avaliando suas implicações para o sistema sucessório e para os direitos patrimoniais das famílias no Brasil. A pesquisa adota uma abordagem hipotético-dedutiva, com revisão bibliográfica de doutrinadores renomados e análise da legislação vigente, bem como o método comparativo. O estudo identifica as principais justificativas para a exclusão do cônjuge da sucessão legítima, incluindo a maior fluidez dos relacionamentos modernos e a necessidade de isonomia entre cônjuges e companheiros. No entanto, também levanta críticas sobre os riscos de vulnerabilidade patrimonial, especialmente para mulheres em relações de dependência econômica. Diante das controvérsias, a pesquisa aponta que a reforma pode gerar insegurança jurídica, impactando a proteção dos cônjuges sobreviventes e alterando a hierarquia sucessória tradicional. A retirada do cônjuge como herdeiro necessário pode comprometer a estabilidade financeira e afetiva de famílias, exigindo maior planejamento sucessório individual. Conclui-se que a proposta de reforma demanda um amplo debate sobre seus reflexos sociais e jurídicos, ponderando a necessidade de atualização do Código Civil sem comprometer a segurança patrimonial dos cônjuges sobreviventes.
Palavras-chave: Sucessão legítima; Herdeiro necessário; Reforma do Código Civil; Concorrência sucessória;
ABSTRACT. This study analyzes the exclusion of the spouse as a necessary heir in Bill No. 04/2025, which proposes reform of the Civil Code. The proposal eliminates the spouse's right to succession, profoundly altering the country's inheritance system. The main objective is to analyze the impact of the reform and update of the Civil Code, which excludes the surviving spouse from the status of necessary heir, assessing its implications for the inheritance system and the property rights of families in Brazil. The research adopts a hypothetical-deductive approach, including a literature review of renowned scholars and an analysis of current legislation, as well as a comparative method. The study identifies the main justifications for the exclusion of the spouse from the legitimate succession, including the greater fluidity of modern relationships and the need for equality between spouses and partners. However, it also raises criticisms about the risks of asset vulnerability, especially for women in economically dependent relationships. Given the controversies, the research indicates that the reform may generate legal uncertainty, impacting the protection of surviving spouses and altering the traditional inheritance hierarchy. Removing a spouse as a necessary heir can compromise the financial and emotional stability of families, requiring greater individual succession planning. The conclusion is that the proposed reform demands a broad debate on its social and legal implications, considering the need to update the Civil Code without compromising the financial security of surviving spouses.
Keywords: Legitimate succession; Necessary heir; Reform of the Civil Code; Succession competition;
Introdução
“Aqueles que nos amam nunca nos deixam de verdade.” (Rowling, 2000). A célebre frase, atribuída ao personagem Sirius Black, da obra literária e cinematográfica Harry Potter, convida a refletir sobre a morte não apenas como um ponto final, mas como o início de uma nova fase para aqueles que permanecem. A memória dos que partem segue viva naqueles que os amaram, perpetuando sua presença de forma simbólica. A morte, embora inevitável, acarreta, para além da dimensão afetiva, relevantes implicações jurídicas no que diz respeito à transmissão do patrimônio do falecido.
A morte, então, deixa de ser apenas um acontecimento íntimo, tornando-se um fato jurídico que repercute nas relações sociais e econômicas. É nesse contexto que surge o Direito das Sucessões, ramo do Direito Civil responsável pela regular transmissão de bens, direitos e obrigações.
O doutrinador e advogado Flávio Tartuce (2024, p. 02), define o direito das sucessões como ramo do Direito Civil que trata das transmissões de direitos e deveres de uma pessoa a outra.
Previsto no Livro V do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), o direito das sucessões é baseado no Princípio de Saisine, pelo qual, de acordo com Gagliano e Filho (2024, p. 28) ocorre a transmissão imediata e automática dos bens no instante da abertura da sucessão, ou seja, no momento da morte do de cujus.
A propósito, Venosa (2024, p. 446) afirma que com a morte e abertura da sucessão, ocorre a transmissão do patrimônio aos herdeiros legítimos e testamentários, aplicando o sistema da saisine.
A par disso, demonstra-se pertinente analisar o Direito das Sucessões sob a ótica do Direito de Família e o Direito de Propriedade, haja vista que há um “fator de proteção, coesão e de perpetuidade da família” (Hironaka, 2007, p. 5 apud Tartuce, 2024, p. 3).
Essa área dentro da legislação civil brasileira sempre foi alvo de discussão e diversas alterações ao longo do tempo, como o conceito de família, proibição constitucional de distinção entre os filhos (adotivos/biológicos), entre outros. Entretanto, mesmo havendo uma conexão entre áreas, o direito sucessório parecia estar imune às tais alterações.
A sucessão encontra-se intimamente ligada ao direito do cônjuge ou companheiro sobrevivente. Historicamente, o casamento era relacionado a uma estabilidade financeira e social, associada ao “até que a morte nos separe”, o que há muito tempo deixou de existir.
O Código Civil vigente, promulgado em 2002 e em vigor a partir de 2003, recebeu muitas críticas no ato de sua aprovação e publicação. É considerado por muitos doutrinadores da área um código que “nasceu velho”, pois começou a ser discutido em 1969, ainda no período ditatorial que o Brasil passava, ou seja, retratando a realidade da sociedade daquela época, “ignorando” a existência de diversos setores igualmente importantes a serem regulados.
Conservando diversas disposições oriundas do código anterior (1916), o Código Civil de 2002 introduziu modificações substanciais no âmbito do Direito das Sucessões. Entre tais inovações, destaca-se a reconfiguração da posição jurídica do cônjuge sobrevivente, que passou a integrar expressamente a ordem de vocação hereditária. Assim, a depender da existência de outros herdeiros, o cônjuge pode figurar como herdeiro concorrente, nos termos do art. 1829, com descendentes (inc. I) ou com ascendentes (inc. II), bem como ser chamado à sucessão na qualidade de herdeiro de terceira classe (inc. III). Ademais, o legislador o reconheceu como herdeiro necessário, prevendo-o no art. 1.845 (BRASIL, 2002).
Em contrapartida, o Projeto de Lei nº 04/2025, originado a partir do Anteprojeto de Reforma do Código Civil e entregue ao Senado Federal em abril/2024, propõe uma retomada das disposições do Código Civil de 1916, acerca da ordem de vocação hereditária, bem como modificando o rol taxativo de herdeiro necessário, objeto de estudo deste artigo.
A comissão de juristas foi instituída pelo Senado Federal, sendo presidida pelos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze, enquanto os professores Flávio Tartuce e Rosa Maria Nery atuaram como relatores gerais, bem como contava com 38 doutrinadores da área, divididos em subcomissões responsáveis por cada parte do código. A subcomissão da parte de direito das sucessões ficou a cargo do professor e advogado Mário Luiz Delgado, contando com a participação do Ministro César Asfor Rocha e dos professores Giselda Hironaka e Gustavo Tepedino (Senado, 2023).
O objetivo geral deste trabalho é analisar o impacto da reforma e atualização do Código Civil, que exclui o cônjuge sobrevivente da condição de herdeiro necessário, avaliando suas implicações para o sistema sucessório e para os direitos patrimoniais das famílias no Brasil, sobretudo em relação à população feminina, que compreende a maior parcela de pessoas idosas e viúvas no país (Miranda, 2021)
Nesse sentido, a metodologia utilizada será a aplicação do método hipotético dedutivo, utilizando as ferramentas de pesquisa no Google Acadêmico, Scielo, artigos científicos escritos por doutrinadores da área, as aulas magnas disponíveis em plataformas digitais, como Youtube, bem como utilizando o direito comparado a fim de auxiliar nesse estudo.
Verifica-se a importância do tema de se compreender como a exclusão do cônjuge como herdeiro necessário pode impactar as estruturas familiares e o sistema sucessório brasileiro. A propósito, esta nova realidade pode afetar não apenas a proteção patrimonial, mas também a dinâmica e a segurança das relações familiares.
Ante o exposto, este estudo justifica-se pela urgência de avaliar os efeitos reais da reforma sobre os direitos dos cônjuges, a equidade no sistema sucessório e as possíveis repercussões para as famílias brasileiras, realizando-se o necessário recorte de gênero para promoção de igualdade em relação às mulheres viúvas, as quais, em grande parte dependem do patrimônio e renda do companheiro amealhada em vida.
1. Proposta da Reforma do Código Civil
A priori, embora o projeto de lei seja de 2025, as discussões acerca da construção do anteprojeto estendem-se desde 2023, oportunidade em que foi instituída a comissão de juristas, sendo nomeados como relatores gerais os professores Flávio Tartuce e Rosa Maria Nery, sob a presidência do Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão (Senado, 2023).
Em uma de suas diversas aulas magnas disponibilizadas na plataforma digital Youtube, o professor e relator geral Flávio Tartuce fala sobre as alterações propostas, em linhas gerais:
[...] e em direito de família e das sucessões a gente acabou consolidando aquilo que hoje é majoritário na posição dos tribunais e na jurisdição, também do Superior Tribunal de Justiça. Acho e, todos nós pensamos, que dentro de um trabalho democrático e plural da comissão, a reforma traz mais segurança jurídica, mais estabilidade, amplia as possibilidades de exercício de liberdade também nas relações familiares e nas relações sucessoras. (Tartuce, 2024)
Cumpre destacar que os artigos 1.829 e 1.845, sempre foram objeto de críticas e discussões sobre sua constitucionalidade, sendo que a versão final é resultado dos Recursos Extraordinários nº 646.721 e 878.694.
Nesse sentido, visando dirimir a controvérsia persistente, foi constituída, dentro da comissão de juristas, a Subcomissão de direito das sucessões, responsável pela revisão e atualização do Livro V do atual código, sendo coordenada pelo advogado e professor Mário Luiz Delgado, e como integrantes os professores Giselda Maria F. Novaes Hironaka, Gustavo Tepedino e Cesar Asfor Rocha. Ademais, foram realizadas 04 (quatro) reuniões abertas, com a participação presencial e virtual de representantes das áreas jurídicas e da sociedade civil (Senado, 2024).
Não obstante, a comissão de juristas foi instituída sob a perspectiva de se fazer uma revisão e atualização da norma civil, adequando-a à realidade atual, com os desenvolvimentos da sociedade, principalmente no que concerne à evolução tecnológica.
A propósito, essa é a justificativa utilizada pela subcomissão para a mudança nos dispositivos referidos anteriormente, destacando-se, entre outros pontos, a forte rejeição social à concorrência sucessória entre cônjuges ou companheiros e descendentes ou ascendentes — especialmente nos casos em que vigente o regime de separação convencional de bens —, bem como a necessidade de reavaliar a posição do cônjuge sobrevivente na sucessão legítima diante da crescente igualdade de gênero, da entrada massiva da mulher no mercado de trabalho e da multiplicação das famílias recompostas.
Nesse contexto, foram acolhidas sugestões da sociedade civil no sentido de excluir o cônjuge do rol de herdeiros necessários e de afastar seu direito de concorrência sucessória, mantendo-o apenas como herdeiro legítimo da terceira classe (Senado, 2024).
Ainda, Flávio Tartuce afirmou em sua Aula Magna da ESA OABSP que:
[...] Eu já digo para vocês, com a reforma do Código Civil, caso aprovado, a esposa vai deixar de ser herdeira? A resposta: não vai deixar de ser herdeira. Ela vai deixar de ser herdeira necessária, e a gente tira a concorrência sucessória, porque a concorrência sucessória, na visão da doutrina, não funcionou nos 20 anos do Código Civil.
Eu sempre atuei em inventário, desde 1996, eu sempre tive pelo menos um inventário ativo em minha vida, inclusive de pessoas da família que morreram. Hoje eu tenho três inventários ativos, aqui. Eu tenho, sempre tive, e o que vejo hoje, que é inventário litigioso, quando há disputa de cônjuge com descendente, não termina. Não termina. E o patrimônio vai se deteriorar e não terminar. [...] (Tartuce, 2024)
Semelhantemente, verifica-se grande congestionamento do judiciário com causas de inventário e partilha, em que há a concorrência sucessória, causando excessivo tempo pendente de julgamento. A título de exemplo, consoante dados encontrados no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT) demora cerca de 1.450 (um mil, quatrocentos e cinquenta) dias para finalizar um processo judicial desta classe, representando aproximadamente 04 (quatro) anos (CNJ, 2024).
No mesmo sentido, durante as consultas públicas, restou comprovada a importância de que a subcomissão de sucessões discute-se o impasse sobre manter ou extinguir a concorrência sucessória do cônjuge/companheiro supérstite.
Insta salientar que, a doutrina majoritária sempre se posicionou contra tal disposição legal. Nos termos do Enunciado nº 270, da III Jornada de Direito Civil, in verbis:
O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes. (CJF, 2015)
À vista disso, o professor Flávio Tartuce discorre sobre os impactos que a redação mal redigida do r. artigo, no qual gera instabilidade jurídica por diferenças no entendimento dos dispositivos:
[...] O confuso texto do Código Civil e essa última forma de julgar causam enorme perplexidade na sociedade brasileira, diante do argumento de que aquilo que foi convencionado pelas partes em vida deveria também gerar efeitos após a morte, preservando-se a autonomia privada e a vontade individual dos consortes, de nada se comunicar, seja na vida ou na morte. Em verdade, a solução que está na atual codificação privada não faz o menor sentido para a grande maioria da população brasileira, sendo difícil a sua explicação mesmo para os profissionais do âmbito jurídico. [...] (Tartuce, 2024)
Nessa seara, fora proposto um retorno parcial ao sistema estabelecido anteriormente no Código Civil de 1916, realizando as alterações suficientes, adequando-a à (suposta) realidade atual, onde ocorre a retirada da concorrência sucessória, consequentemente retira-se o cônjuge e o convivente do rol dos herdeiros necessários (art. 1.845 do Código Civil (Brasil, 2002). Porquanto, não faria sentido retirar a concorrência sucessória, mantendo o cônjuge e o convivente do rol dos herdeiros necessários, haja vista haver uma relação entre os dois artigos.
Outrossim, o relator geral ainda afirma que:
Nesse contexto, acreditamos e entendemos de forma conjunta que a retirada da concorrência sucessória foi compensada pela ampliação da meação e da participação patrimonial nos dois regimes citados em que ela hoje é reconhecida, como antes pontuado: o da comunhão parcial de bens – opção da grande maioria da população brasileira, repise-se – e o da separação convencional de bens. Acrescente-se que no regime da comunhão universal não há a citada concorrência sucessória, diante do amplo reconhecimento da meação. E, no que diz respeito à separação obrigatória de bens, sugere-se no Anteprojeto a sua retirada do sistema jurídico brasileiro. (Tartuce, 2024, p. 6).
Diante do exposto, nota-se que a reforma do código civil é um tema relevante, principalmente relacionado a área do direito sucessório, que sempre foi objeto de discussões e impasses doutrinários e jurisprudenciais.
2. Herdeiro Necessário no Código Civil (Lei Nº 10.406/2002)
O Direito Civil brasileiro possui raízes profundas nos direitos dos povos romanos e dos germânicos, tendo por objetivo garantir o sustento dos familiares mais próximos ao de cujus, conhecidos como herdeiros necessários.
Em face disso, este instituto jurídico foi inspirado no previsto no Código Civil italiano de 1942 e no Código Civil português de 1966, sendo que “as duas normas gerais citadas são consideradas as mais importantes daquele continente na segunda metade do século XX, tendo influenciado o Código Civil Brasileiro em vários de seus livros”. (Tartuce, 2025, p. 175).
O Código Civil Italiano, no artigo 581, trata da partilha da herança quando o cônjuge sobrevivente concorre com os filhos do falecido. Nesse caso, se houver apenas um filho, o cônjuge tem direito à metade do patrimônio. Já se existirem dois ou mais filhos, a participação do cônjuge é de um terço da herança (Itália, 1942).
Já o Código Civil Português, por meio do artigo 2.133, define uma ordem de sucessão entre os possíveis herdeiros. Em primeiro lugar, aparecem o cônjuge sobrevivente e os descendentes; depois, o cônjuge junto aos ascendentes. Na sequência, vêm os irmãos e seus descendentes, seguidos pelos outros parentes colaterais até o quarto grau. Caso nenhum desses herdeiros exista, o Estado é quem recebe os bens deixados (Portugal, 1966).
A partir da análise de outros sistemas jurídicos, como o italiano e o português, é possível perceber diferentes formas de tratar a posição do cônjuge na sucessão. No Brasil, essa questão também foi sendo moldada com o tempo, refletindo mudanças sociais, culturais e familiares. A maneira como o cônjuge passou a ser visto dentro da estrutura familiar e o reconhecimento gradual da sua importância na sucessão revelam uma evolução no entendimento jurídico, acompanhando as transformações da própria sociedade brasileira.
Dentro do contexto histórico do ordenamento civil brasileiro, sempre houve a preocupação com os herdeiros e a reserva da legítima. As previsões quanto à reserva da legítima remontam às épocas coloniais, como por exemplo no Ordenamento das Filipinas de 1603, que estabelecia que o testador somente poderia dispor de um terço do seu patrimônio total (Zandominique; Rocha; 2024).
A reserva da legítima garante que parte do patrimônio do falecido pertence diretamente a um grupo seleto de pessoas, intimamente dependente do mesmo, o qual está presente “no direito brasileiro desde o período colonial, visa proteger a segurança econômica dos familiares mais próximos, baseando-se na solidariedade familiar” (Zandominique; Rocha; 2024).
Por conseguinte, tem-se que a reserva da legítima fixa uma segurança patrimonial aos que são considerados herdeiros legítimos. No Brasil, os herdeiros legítimos, ou herdeiros necessários, como se encontra previsto na legislação, têm, por direito, 50% (cinquenta por cento) do patrimônio do falecido, sendo que, o restante, pode ser objeto de testamento, conforme a legislação civil atual (Código Civil de 2002). Não sendo, restará dividido entre aqueles considerados herdeiros necessários, com respeito a ordem de concorrência sucessória.
O artigo 1.845 apresenta o rol taxativo dos herdeiros necessários, dispondo que: “são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”, ou seja, atualmente, inclui-se a figura do cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário (Brasil, 2002).
Impende destacar que, os descendentes são considerados herdeiros necessários por excelência. Ressalta-se que, “a sucessão dos descendentes é uma prática natural, seja na passagem de tronos, profissões ou patrimônios” (Zandominique; Rocha; 2024). A grande discussão sempre foi em torno da legitimidade quanto à figura do cônjuge supérstite.
Nessa seara, o herdeiro necessário é um instituto jurídico previsto no Código Civil de 2002, no qual são considerados como tal os descendentes, os ascendentes e, reconhecidamente uma novidade legislativa em comparação com o Código Anterior, o cônjuge sobrevivente. Conceitua-se, portanto, o herdeiro necessário como “aquela classe de sucessores que têm, por força de lei, direito à parte legítima da herança (50%)” (Filho; Gagliano; 2025, p. 136).
No mesmo sentido, Tartuce (2025, p. 28), discorre que
[…]De início, surgem os herdeiros necessários, forçados ou reservatários, aqueles que têm, a seu favor, a proteção da legítima, composta por metade do patrimônio do autor da herança, nos termos do art. 1.846 do atual Código Civil, que enuncia: “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima. [...]
Ocorre que, como já dito, o cônjuge supérstite somente concorrerá com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipótese em que a herança se restringe a esses bens (CJF, 2015). Nas demais hipóteses, o patrimônio somente será transmitido ao consorte sobrevivente através de meação (se o regime marital assim permitir).
À vista disso, deve-se entender, a diferença entre herança e meação. A meação decorre do regime de bens escolhidos no casamento, sendo que, de acordo com Venosa (2025, p. 168) a meação do cônjuge:
[...] como já acenado, não é herança. Quando da morte de um dos consortes, desfaz-se a sociedade conjugal. Como em qualquer outra sociedade, os bens comuns, isto é, pertencentes às duas pessoas que foram casadas, devem ser divididos. A existência de meação, bem como do seu montante, dependerá do regime de bens do casamento. A meação é avaliada de acordo com o regime de bens que regulava o casamento.
Já a herança, “pode ser conceituada como o conjunto de bens, positivos e negativos, formado com o falecimento do de cujus.” (Tartuce, 2025, p. 35), bem como “patrimônio deixado pelo falecido” (Gagliano; Filho; 2025, p. 10). Ainda, possui natureza jurídica imobiliária, pouco importando a natureza do bem, se móvel ou imóvel.
Insta salientar que, o cônjuge sobrevivente que é meeiro, não herda. O entendimento a contrario sensu também vale, ou seja, o cônjuge sobrevivente que herda, não pode ser meeiro.
A par disso, importa trazer à baila o expresso no artigo 1.790 que dispõe sobre a concorrência sucessória “do cônjuge com os descendentes do falecido, o que depende do regime de bens adotado entre ambos, no seu inciso I.” (Tartuce, 2024), excluindo os regimes de comunhão universal, separação legal ou obrigatória e comunhão parcial de bens, este último, na ausência de bens particulares.
Em suma, atualmente, o cônjuge ou companheiro sobrevivente é um herdeiro necessário, estando em concorrência com o descendente comum, tendo direito a uma quota equivalente à deste. Nesse sentido, deve ser observado o regime sucessório, ou seja, o regime de bens escolhido, discutido nos textos abaixo.
Contudo, passados mais de 20 anos de vigência do código e desta disposição, o que tem sido visto dentro do Judiciário são inventários litigiosos, haja vista haver a concorrência sucessória emplacando o andamento do curso processual, em que o patrimônio vai se deteriorando e perdendo seu valor de mercado.
Nessa seara, há tempos a doutrina e jurisprudência vêm pacificando o entendimento quanto à retirada da concorrência sucessória, que, por conseguinte, implica diretamente na disposição do artigo 1.845, o qual insere o cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário.
Importante destacar que os regimes em que o cônjuge (ou companheiro) concorre com os descendentes são: regime da participação final nos aquestos; Regime da separação convencional de bens (decorrente de pacto antenupcial); Regime da comunhão parcial de bens, havendo bens particulares - este último aplicado, em regra, às uniões estáveis.
Diante desse assunto, estamos diante de diversas polêmicas. A primeira delas é quanto ao regime da comunhão parcial, onde, havendo bens particulares, questiona-se sobre quais bens recai a concorrência sucessória.
O entendimento firmado, majoritariamente aceito pelos doutrinadores, seria tão somente aos bens particulares, nos termos do Enunciado nº 270, da III Jornada de Direito Civil. Posicionamento este é defendido pelos doutrinadores Zeno Veloso, Giselda Hironaka, José Fernando Simão, Mário Delgado e Rolf Madaleno e, posteriormente, adotado pelo STJ, vejamos:
CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. (...). Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. 3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus” (STJ - REsp: 1.368.123/SP, 2012/0103103-3, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Relator(a) p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 22/04/2015, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 08/06/2015).
Insta destacar que, atualmente, esse é o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Agravo em Recurso Especial - AREsp nº 1454324 SP 2019/0049201-7, vejamos a fundamentação do Ministro Relator Raul Araújo, no dia 25/03/2020:
[...] Cinge-se a controvérsia em determinar se o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime de comunhão parcial, concorre com o filho exclusivo do cônjuge falecido no que diz respeito aos bens particulares, mormente diante da existência de pacto antenupcial que afasta a partilha dos bens particulares adquiridos antes do casamento.
O Tribunal a quo reconheceu o direito à herança do cônjuge sobrevivente quanto aos bens particulares da falecida, nos seguintes termos:
[...]
A orientação está em consonância com o entendimento da Segunda Seção desta Corte de que "o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares" (REsp 1368123/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/04/2015, DJe 08/06/2015). [...]
Já a segunda grande polêmica, está relacionada à concorrência no regime da separação convencional de bens. Preliminarmente, o STJ procedeu com o entendimento de não há a concorrência neste tipo de regime, pois “o que foi escolhido em vida se projeta após a morte” (Tartuce, 2024), vejamos a jurisprudência:
Direito civil. Família e Sucessões. Recurso especial. Inventário e partilha. Cônjuge sobrevivente casado pelo regime de separação convencional de bens, celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. Interpretação do art. 1.829, I, do CC/02 . Direito de concorrência hereditária com descendentes do falecido. Não ocorrência. [...] - Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário. [...] - A ampla liberdade advinda da possibilidade de pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, prevista pelo Direito Patrimonial de Família, não pode ser toldada pela imposição fleumática do Direito das Sucessões, porque o fenômeno sucessório traduz a continuação da personalidade do morto pela projeção jurídica dos arranjos patrimoniais feitos em vida. - Trata-se, pois, de um ato de liberdade conjuntamente exercido, ao qual o fenômeno sucessório não pode estabelecer limitações.. - Se o casal firmou pacto no sentido de não ter patrimônio comum e, se não requereu a alteração do regime estipulado, não houve doação de um cônjuge ao outro durante o casamento, tampouco foi deixado testamento ou legado para o cônjuge sobrevivente, quando seria livre e lícita qualquer dessas providências, não deve o intérprete da lei alçar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao regime de bens pactuado. [...] - Por fim, cumpre invocar a boa fé objetiva, como exigência de lealdade e honestidade na conduta das partes, no sentido de que o cônjuge sobrevivente, após manifestar de forma livre e lícita a sua vontade, não pode dela se esquivar e, por conseguinte, arvorar-se em direito do qual solenemente declinou, ao estipular, no processo de habilitação para o casamento, conjuntamente com o autor da herança, o regime de separação convencional de bens, em pacto antenupcial por escritura pública. - O princípio da exclusividade, que rege a vida do casal e veda a interferência de terceiros ou do próprio Estado nas opções feitas licitamente quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar, robustece a única interpretação viável do art . 1.829, inc. I, do CC/02, em consonância com o art. 1 .687 do mesmo código, que assegura os efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido, bem como preserva a autonomia privada guindada pela eticidade. Recurso especial provido. Pedido cautelar incidental julgado prejudicado. (STJ - REsp: 992749 MS 2007/0229597-9, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 01/12/2009, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/02/2010 RSTJ vol . 217 p. 820).
Entretanto, superou-se esse entendimento, sendo que, a posteriori, decidiu-se que há a concorrência sucessória nesse regime, a título de exemplo cita-se o REsp: 1.382.170 SP 2013/0131197-7, vejamos:
CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE. HERDEIRO NECESSÁRIO. ART. 1.845 DO CC. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTE. POSSIBILIDADE. ART. 1.829, I, DO CC. 1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art. 1.845 do Código Civil). 2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil. Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil. (STJ - REsp: 1.382.170 SP 2013/0131197-7, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 22/04/2015, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 26/05/2015).
Em suma, no tocante ao regime de separação convencional de bens, é pacífico, atualmente, que há a existência da concorrência sucessória com os descendentes, vejamos o julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial: AgInt no REsp 1887930 PR 2020/0195830-5:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. INVENTÁRIO. HERANÇA. VIÚVA QUE FOI CASADA SOB O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS . RECONHECIMENTO DA QUALIDADE DE HERDEIRA NECESSÁRIA. APLICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Consoante a jurisprudência desta Corte Superior, "no regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil . Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil" ( REsp 1.382 .170/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 22/4/2015, DJe 26/5/2015). 2 . Agravo interno desprovido. (STJ - AgInt no REsp: 1887930 PR 2020/0195830-5, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 18/05/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/05/2021).
Entrementes, os descendentes são reconhecidos como os principais herdeiros necessários, inexistindo controvérsia relevante sobre tal entendimento. O ponto controverso seria no sentido da participação ou não do cônjuge e companheiro sobrevivente dentro do rol dos herdeiros necessários, implicando diretamente na concorrência sucessória.
No atual Código, pela regra geral, o cônjuge e o companheiro são tratados como herdeiros necessários, juntamente com os descendentes e ascendentes, com exceção dos casos acima destacados. Lado outro, caso o projeto de lei seja aprovado, o cônjuge deixaria de ser herdeiro necessário, voltando a ser apenas herdeiro legítimo - tal como no Código de 1916 - eliminando-se concorrência sucessória, e tendo direito à herança apenas na ausência dos descendentes e ascendentes.
2.1. Divergências doutrinárias e legislativas
Conforme se verifica, a sucessão do cônjuge sobrevivente tem sido objeto de amplos debates doutrinários e controvérsias interpretativas no âmbito do direito civil brasileiro evidenciando-se as dificuldades em se compatibilizar o papel do cônjuge com os princípios que regem a sucessão legítima. A complexidade do tema reflete as múltiplas interpretações dadas à norma sucessória, especialmente quando se trata da partilha dos bens adquiridos sob diferentes regimes de casamento, com ênfase na comunhão parcial de bens, aplicável também às uniões estáveis, salvo se outra opção for escolhida entre os conviventes.
Nesse contexto, destaca-se a divergência doutrinária relacionada à concorrência sucessória sobre os bens particulares do falecido. Três correntes principais surgem na doutrina:
A primeira, adotada por autores como Zeno Veloso, Giselda Hironaka, José Fernando Simão, Mário Delgado e Rolf Madaleno, defende que, no regime de comunhão parcial de bens, a concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente incide apenas sobre os bens particulares do falecido (Stolze, 2025). Essa posição, considerada majoritária, encontra respaldo no Enunciado nº 270 da III Jornada de Direito Civil.
A segunda corrente, representada por Maria Helena Diniz e Guilherme Calmon Nogueira da Gama, adota uma interpretação mais abrangente. Para esses autores, a concorrência sucessória abrangeria tanto os bens particulares quanto os bens comuns, com base na alegada obscuridade da norma que disciplina a matéria (Stolze, 2025).
Por fim, Maria Berenice Dias defende uma terceira posição, segundo a qual a concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente deveria se restringir apenas aos bens comuns do casal (Stolze, 2025).
Essa divergência doutrinária impacta diretamente no posicionamento do Judiciário. Isso porque, em um primeiro momento o Superior Tribunal de Justiça (STJ) adotou a terceira corrente, defendida pela jurista Maria Berenice Dias, vejamos:
Direito das sucessões. Recurso especial. Inventário. De cujus que, após o falecimento de sua esposa, com quem tivera uma filha, vivia, em união estável, há mais de trinta anos, com sua companheira, sem contrair matrimônio. Incidência, quanto à vocação hereditária, da regra do art. 1.790 do CC/02. Alegação, pela filha, de que a regra é mais favorável para a convivente que a norma do art. 1829, I, do CC/02, que incidiria caso o falecido e sua companheira tivessem se casado pelo regime da comunhão parcial. Afirmação de que a Lei não pode privilegiar a união estável, em detrimento do casamento. - O art. 1.790 do CC/02, que regula a sucessão do 'de cujus' que vivia em comunhão parcial com sua companheira, estabelece que esta concorre com os filhos daquele na herança, calculada sobre todo o patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência. [...]. - Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes. Recurso especial improvido. (STJ, REsp. 1.117.563/SP, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 17/12/2009, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/04/2010).
Contudo, em 2015, pacificou-se o entendimento diverso quanto à concorrência sucessória aos bens particulares, conforme abaixo transcrito:
“CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. [...]. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. 3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus” (STJ - REsp: 1.368.123/SP, 2012/0103103-3, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Relator(a) p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 22/04/2015, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 08/06/2015).
Diante dessas premissas, analisando a divergência doutrinária persistente, Flávio Tartuce conclui que a concorrência sucessória:
- É confusa e anacrônica.
- Não é compreendida pela sociedade.
- É insegura.
- É injusta, pelo fundamento do Direito das Sucessões, que é continuidade.
- Cria uma situação de instabilidade.
- Acirra o debate.
- Gera perdas patrimoniais.
- Afasta-se das soluções consensuais e extrajudiciais.
(Tartuce, 2024)
A solução encontrada e decidida pela Comissão de Juristas é de acabar com a concorrência do cônjuge sobrevivente com descendentes e ascendentes, retirando-o do rol dos herdeiros necessários.
Soluções da Comissão de Juristas.
- Acabar com a concorrência do cônjuge e do convivente com descendentes e ascendentes.
- Retirar o cônjuge do rol dos herdeiros necessários (art. 1.845 do CC).
- Aumentar a meação na comunhão universal (art. 1.660).
- Divisão de bens e compensação financeira na separação convencional (art. 1.688).
- Simplificar a sucessão legítima, voltando ao sistema do CC/1916 (art. 1.829).
- Manter o direito real de habitação (art. 1.831), mas criar exceções.
- Regrar o usufruto sem limites, para quem necessitar (art. 1.850).
- Consagrar uma antecipação de bens da herança (art. 1.832).
(Tartuce, 2024)
Diante do exposto, observa-se que a concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente sobretudo no regime de comunhão parcial de bens foi, ao longo do tempo, alvo de intensos debates doutrinários e jurisprudenciais. A divergência entre as correntes refletiu-se diretamente na interpretação do artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002, gerando insegurança jurídica até a pacificação do entendimento pelo Superior Tribunal de Justiça em 2015. Com isso, consolidou-se a posição majoritária de que o cônjuge sobrevivente concorre apenas sobre os bens particulares do falecido, proporcionando maior previsibilidade na aplicação do direito sucessório.
Não obstante, parece que tal posição não foi hegemonicamente adotada pelos juristas, sobretudo os componentes da comissão do Projeto de Lei 04/2025, os quais, pleiteiam a completa eliminação da concorrência sucessória, retirando-se o cônjuge do rol de herdeiros necessários, sob o pretexto de simplificação da sucessão (Tartuce, 2024).
2.2. Críticas acerca da atual disposição
A previsão legal que mantém o cônjuge como herdeiro necessário sempre foi motivo de intensos debates doutrinários e críticas no meio jurídico. A atual disposição do Código Civil, ao equiparar o cônjuge sobrevivente aos descendentes e ascendentes na sucessão legítima, não acompanha, em muitos aspectos, as transformações sociais e familiares contemporâneas (Tartuce, 2024). A discussão gira em torno da (in)compatibilidade entre a regra vigente e os princípios da autonomia privada, da igualdade entre os herdeiros e da proteção das múltiplas formas de família reconhecidas no ordenamento jurídico atual (Tartuce, 2024). Este tópico se propõe a analisar as principais objeções à manutenção do cônjuge como herdeiro necessário, evidenciando os argumentos contrários à atual sistemática e suas possíveis implicações práticas.
Em face disso, importante destacar que a sucessão hereditária envolve uma variedade de interesses, para além do valor sentimental e consideração pelo de cujus, demandando um planejamento sucessório adequado.
As críticas ao sistema atualmente vigente sempre existiram, à exemplo do doutrinador Silvio Venosa (2018) o qual afirma:
Em matéria de direito hereditário do cônjuge e também do companheiro, o Código Civil brasileiro de 2002 representa verdadeira tragédia, um desprestígio e um desrespeito para nosso meio jurídico e para a sociedade, tamanhas são as impropriedades que desembocam em perplexidades interpretativas. [...]
(Venosa, 2018, p. 168)
Na mesma linha de raciocínio, Flávio Tartuce (2024) discorre, repetidamente, inúmeras críticas ao texto normativo, o qual, segundo o ilustre doutrinador, gera enormes problemas e divergências jurisprudenciais, tornando a sucessão hereditária confusa e morosa.
[...] Em uma realidade de novos vínculos familiares que são formados, as disputas entre cônjuges e conviventes sobreviventes com os filhos dos falecidos se arrastam no tempo, gerando perdas patrimoniais consideráveis e prejuízos para terceiros e para toda a sociedade brasileira. Muitos recursos acabam se perdendo no meio do caminho, por anos de discussões judiciais.
(Tartuce, 2024, p. 4)
Desse modo, a doutrina civilista majoritária tem se posicionado de forma crítica e contundente em relação ao atual regime sucessório, especialmente no que tange à manutenção do cônjuge sobrevivente no rol dos herdeiros necessários. Muitos autores defendem a necessidade de revisão desse modelo, sugerindo, inclusive, a sua supressão, sob o argumento de que não mais se coaduna com os princípios contemporâneos do Direito de Família e Sucessões, em especial a autonomia da vontade e a pluralidade das entidades familiares (Zandominique; Rocha; 2024).
Paralelamente, observa-se que os órgãos jurisdicionais, ao se debruçarem sobre demandas de natureza sucessória, enfrentam reiteradas dificuldades na interpretação e aplicação das normas vigentes, dada a coexistência de disposições legais que, por vezes, geram insegurança jurídica. Nesse cenário, torna-se questionável a manutenção da concorrência sucessória sem a correspondente exclusão do cônjuge do rol taxativo dos herdeiros necessários, em razão da estreita relação de dependência normativa existente entre ambos os institutos.
Diante do exposto, constata-se que a permanência do cônjuge sobrevivente no rol dos herdeiros necessários, nos moldes previstos pelo Código Civil vigente, revela-se cada vez mais incompatível com os princípios constitucionais e com a dinâmica das relações familiares contemporâneas. As críticas doutrinárias e as dificuldades enfrentadas pela jurisprudência, segundo esses autores, evidenciam a necessidade de uma reformulação legislativa que promova maior coerência sistemática, segurança jurídica e respeito à autonomia da vontade.
A exclusão do cônjuge dessa categoria sucessória, conforme sustentado por essa corrente doutrinária, além de atender aos anseios doutrinários, representaria um avanço na concretização dos valores fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, adequando o direito sucessório à realidade plural e afetiva da sociedade atual.
Por pressuposto, sobre esse manto de aparente renovação e pacificação doutrinária e jurisprudencial, nasce o Projeto de Lei nº 4/2025, tendo como enfoque da Subcomissão de Direito das Sucessões a mudança de tratamento dos cônjuges e companheiros como herdeiros necessários, sobretudo nos regimes de comunhão parcial e separação obrigatória de bens.
3. Projeto de Lei Nº 4/2025
O Projeto de Lei nº 4/2025, corresponde ao Anteprojeto da Reforma do Código Civil entregue ao Senado Federal em abril de 2024 pela Comissão de Juristas, o qual propõe significativas mudanças, principalmente no ramo do Direito das Sucessões (Senado, 2024). Uma das inovações mais debatidas refere-se à exclusão do cônjuge sobrevivente do rol de herdeiros necessários, conforme redação atual do artigo 1.845 do Código Civil/2002, que compreende descendentes, ascendentes e o cônjuge.
A nova redação proposta retira de forma expressa o cônjuge da lista de herdeiros necessários, possibilitando ao testador, por exemplo, plena liberdade para dispor do seu patrimônio, por meio do testamento, sem se preocupar com a concorrência sucessória. Fundamenta-se tal alteração no objetivo de buscar valorizar a autonomia da vontade, alinhando-se à concepção moderna, em consonância com as transformações sociais e familiares contemporâneas (Senado, 2024, p. 265).
Todavia, a exclusão do cônjuge supérstite não significa sua total exclusão dentro do procedimento sucessório. Neste caso, permanece como herdeiro legítimo nas hipóteses de sucessão sem testamento, observado o regime convencionado. Ainda assim, essa alteração representa uma mudança substancial na forma como se reconhece a proteção jurídica do cônjuge sobrevivente no ordenamento jurídico brasileiro.
3.1. Posição da doutrina atual
No âmbito doutrinário, a proposta da exclusão do cônjuge como herdeiro necessário tem gerado debates intensos. Parte da doutrina, a exemplo dos professores Flávio Tartuce e Pablo Stolze, posicionou-se a favor da mudança (Tartuce, 2024; Stolze, 2024). Este primeiro destaca que a medida está em consonância com o princípio da autonomia privada, ao permitir que o autor da herança possa dispor livremente de seus bens. Ademais, salienta reiteradas vezes que o cônjuge sobrevivente já goza de outras formas de proteção jurídica mais eficazes, como o direito à meação e o direito real de habitação, não sendo imprescindível sua manutenção como herdeiro necessário.
O segundo, o doutrinador Pablo Stolze (2024), entende que a proposta é coerente com a atual complexidade das relações familiares, nas quais a convivência conjugal nem sempre é pautada pelo afeto ou pela dependência econômica, especialmente em uniões recentes ou conflituosas. Deste modo, portanto, a medida refletiria uma visão mais realista do papel do cônjuge no processo sucessório.
Em sentido contrário, uma das maiores críticas ao sistema proposto, a autora Maria Berenice Dias (2024), sustenta, em suma, que a medida representa um retrocesso na proteção do cônjuge sobrevivente, especialmente das mulheres, conforme se verá em tópico a seguir.
3.2. Críticas ao sistema proposto
As críticas dirigidas à proposta legislativa contida no Projeto de Lei n.º 4/2025 concentram-se, em grande parte, na fragilização da proteção jurídica conferida ao cônjuge supérstite (Dias, 2024). Dentre os principais pontos de objeção, destaca-se a preocupação com a possibilidade de desamparo patrimonial daquele que, em razão da vulnerabilidade econômica, especialmente em uniões prolongadas, contribuiu de forma indireta ou não patrimonial para a formação e preservação do acervo comum.
Tal cenário atinge, em sua maioria, mulheres que, embora não tenham exercido atividade laborativa remunerada, desempenharam funções essenciais à estabilidade e ao desenvolvimento da entidade familiar, ficando, assim, potencialmente expostas à marginalização sucessória (Costa, 2024; Dias, 2024; Higídio, 2024).
A Subcomissão de Direito das Sucessões elaborou um anteprojeto com a finalidade de promover a atualização das normas sucessórias, de modo a adequá-las às transformações sociais e familiares contemporâneas. Para tanto, contou com a participação de juristas de notório saber, bem como realizou consultas públicas junto à sociedade civil e à comunidade jurídica especializada, com vistas à construção de um modelo sucessório mais equânime e condizente com os princípios constitucionais, especialmente a dignidade da pessoa humana, a igualdade material e a proteção das múltiplas formas de família.
Não obstante a isso, do ponto de vista de gênero, as críticas encontram-se baseadas na vulnerabilidade da mulher no âmbito familiar. As mulheres continuam enfrentando desafios consideráveis, seja buscando liberdade, igualdade e/ou integridade, independentemente do ambiente escolhido.
No entanto, essa vulnerabilidade é uma realidade brasileira. A título de exemplo: a Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal foi composta por 38 renomados profissionais do Direito Civil, sendo deste 11 juristas do sexo feminimo. Ou seja, cerca menos de 30% da comissão era do sexo feminino, ao passo que a comissão de direito sucessório, no qual decidiu importante matéria sobre a concorrência sucessória e retirada do cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário, possuí apenas uma mulher, a professora Giselda Hironaka (Senado, 2024).
Nota-se que, não se considerou o fato de que, atualmente, conforme dados do último IBGE (2025), 51,5% da população brasileira é do sexo feminino.
Diante desses dados percentuais, persiste um grande questionamento: sobre quem realmente recai essa proteção sucessória alegada pela comissão?
Comentando a exclusão das esposas e companheiras do rol de herdeiros necessários e as possíveis consequências da adoção das mudanças promovidas pelo Anteprojeto, destacam Moniza Zandominique e Jackeline Rocha (2024):
[...] Infelizmente, essas vulnerabilidades continuam a ser uma realidade, refletindo-se no aumento significativo dos casos de feminicídios e divórcios nos últimos anos. [...] Devido a sua natureza multidisciplinar, o direito das sucessões frequentemente gera debates intensos, especialmente sobre quem realmente é protegido pela sucessão hereditária. [...] (Zandominique; Rocha; 2024, p. 13)
Portanto, a análise crítica sobre a proposta legislativa revela um cenário em que a proteção sucessória, embora fundamental, carece de uma abordagem mais inclusiva e equânime, especialmente no que tange à igualdade de gênero. A sub-representação feminina nas comissões responsáveis pela elaboração e discussão de questões sucessórias, como evidenciado pelo reduzido número de juristas mulheres na Comissão de Juristas do Senado Federal, levanta um importante questionamento sobre a efetiva consideração das especificidades e necessidades das mulheres, especialmente no contexto de sua vulnerabilidade econômica e social.
Dessa forma, é imprescindível que a legislação sucessória evolua para garantir que a proteção do cônjuge supérstite, independentemente de seu sexo, seja efetiva e compatível com as mudanças sociais e a realidade demográfica, assegurando a dignidade e a igualdade de direitos para todos os indivíduos, em consonância com os princípios constitucionais.
3.3. Efeitos da exclusão
A exclusão do cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário vem gerando repercussões significativas tanto no plano jurídico quanto no social. Tal medida, ao alterar a ordem da sucessão legítima, impacta diretamente na redistribuição da herança entre os demais herdeiros, além de incidir sobre os direitos patrimoniais e a dignidade do cônjuge excluído. Os efeitos dessa exclusão são abrangentes, afetando desde as condições de sobrevivência e amparo do cônjuge supérstite até as relações familiares, até, muitas vezes, ampliando desigualdades preexistentes.
É pertinente analisar as justificativas apresentadas pela Subcomissão de Direito das Sucessões — composta pelos professores Mário Luiz Delgado, Gustavo Tepedino, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e pelo Ministro Asfor Rocha — em relação ao texto do anteprojeto:
Uma das preocupações, na condução dos trabalhos, foi a de atender a determinadas demandas da sociedade civil, a exemplo da extinção do direito de concorrência sucessória de cônjuges e companheiros com descendentes e ascendentes, especialmente quando submetidos ao regime de separação convencional de bens, alvo de grande rejeição da sociedade em geral. O mesmo se diga em relação à ampliação do rol de herdeiros necessários, promovida pelo CCB/2002, a incluir o cônjuge sobrevivente no rol taxativo do art. 1.845. Diante da progressiva igualdade entre homens e mulheres na família e do ingresso da mulher no mercado de trabalho, bem como do fenômeno cada vez mais crescente das famílias recompostas, foi preciso repensar a posição do cônjuge e do companheiro na sucessão legítima, chegando-se à conclusão de que eles não deveriam mais figurar como herdeiros necessários, nem muito menos concorrer com os descendentes e ascendentes do autor da herança. Importante destacar que grande parte das sugestões recebidas nos canais disponibilizados pelo Senado Federal e por outras instituições tiveram por objeto afastar do cônjuge a condição de herdeiro necessário e de herdeiro concorrente. Dessa forma, estão sendo propostas alterações na ordem da vocação hereditária (art. 1.829), para que cônjuges e companheiros permaneçam como herdeiros legítimos da terceira classe, mas sem direito à concorrência sucessória; bem como no rol de herdeiros necessários (art. 1.845), restrito, de lege ferenda, a descendentes e ascendentes. A proposta volta sua atenção para as pessoas em situação de vulnerabilidade, preocupação que se concretizou com a ampliação do direito real de habitação, de modo a extrapolar a titularidade de cônjuges e companheiros, dando maior concretude ao seu caráter protetivo, passando a alcançar, também, outros herdeiros ou sucessores vulneráveis cujas moradias dependiam daquela do autor da herança por ocasião da abertura da sucessão, podendo o referido benefício ser exercido coletivamente, enquanto os titulares não adquirirem renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou não casarem nem constituírem união estável. (Senado, 2024, p. 308)
A par do exposto, a subcomissão entende que, retirando a concorrência sucessória e, por consequência, o cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário, não haverá “diminuição do direito da herdeira/herdeiro”, haja vista que houve outras mudanças significativas nos direitos do cônjuge sobrevivente, bem como existe, ao ver da comissão, uma paridade crescente entre homens e mulheres na realidade atual do país. Nesse sentido:
[...] a retirada da concorrência sucessória foi compensada pela ampliação da meação e da participação patrimonial nos dois regimes citados em que ela hoje é reconhecida, como antes pontuado: o da comunhão parcial de bens - opção da grande maioria da população brasileira, repise-se - e o da separação convencional de bens. (Tartuce, 2024).
O anteprojeto apresentou outras mudanças que impactam dentro do direito do cônjuge supérstite, como a instituição do usufruto legal e judicial sucessório em favor do cônjuge/convivente sobrevivente em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência, sobretudo econômica, devendo ser devidamente comprovado.
Ademais, nesta esteira, ocorreu a ampliação da meação no regime de bens de comunhão parcial de bens, bem como prevendo a possibilidade de antecipação dos bens da herança.
Ante o exposto, verifica-se que o Projeto de Lei nº 04/2025 tem como finalidade a formulação de normas mais efetivas e condizentes com a realidade social contemporânea, buscando, ao mesmo tempo, resguardar os direitos dos indivíduos em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência. No entanto, embora se proponha a promover uma divisão mais equânime no âmbito do Direito Sucessório, constata-se que determinadas alterações sugeridas podem implicar uma diminuição da proteção conferida aos herdeiros atualmente reconhecidos como necessários, com especial destaque para as mulheres, conforme anteriormente demonstrado.
Isto porque, a participação feminina nesse grupo assume especial importância, tendo em vista que as mulheres ainda enfrentam diversos obstáculos relacionados à liberdade, à igualdade e à integridade em diferentes esferas da vida, como no âmbito familiar e no mercado de trabalho. Essas vulnerabilidades persistem e podem ser observadas no crescimento expressivo dos casos de feminicídio e divórcios nos últimos anos. A retirada brusca poderá deixar o cônjuge sobrevivente desamparado. (Zandominique; Rocha; 2024, p. 13/14)
Outrossim, na justificativa apresentada, é citado a “progressiva igualdade entre homens e mulheres na família” (Senado, 2024). Entretanto, deve ser relativizado tais afirmações, haja vista atingir de forma mais intensa apenas grupos socioeconômicos privilegiados dentro da sociedade brasileira. (Ferreira, 2024)
Nesse sentido, mulheres ainda são, em sua maioria, as responsáveis pelo cuidado familiar, abrindo mão ou diminuindo o ritmo de trabalho em prol do bem estar familiar. Não deve ser ignorada a realidade majoritária brasileira, “enquanto se apoia em uma igualdade que é muito mais formal do que material”. (Ferreira, 2024, p. 04)
Cabe, portanto, ao Parlamento Brasileiro proceder a uma análise crítica e ponderada da proposta legislativa, a fim de que se alcance uma decisão final que equilibre os avanços pretendidos com a preservação dos direitos fundamentais já consolidados.
Considerações Finais
O presente artigo científico buscou analisar e discutir, de forma crítica e fundamentada, a proposta legislativa contida no Projeto de Lei nº 04/2025, que trata sobre a Reforma e Atualização do Código Civil, no tocante a exclusão do cônjuge sobrevivente do rol de herdeiros necessários no direito sucessório brasileiro.
Ao longo do trabalho, foram exploradas as motivações jurídicas, históricas e doutrinárias que embasam essa alteração, bem como seus possíveis impactos práticos no sistema sucessório. Destaca-se, ainda, a pertinência do tema à luz das transformações sociais e familiares contemporâneas, que exigem constante atualização normativa, sem que se negligencie o princípio da dignidade da pessoa humana.
A justificativa central do presente artigo está baseada na necessidade de avaliar a compatibilidade da reforma com os princípios constitucionais e com a realidade social brasileira. Ao suprimir o cônjuge supérstite do rol de herdeiros necessários, o projeto propõe uma reconfiguração profunda da ordem de vocação hereditária, alegando como fundamento a ampliação da liberdade individual e a simplificação do processo sucessório. Não obstante, questiona-se se essa alteração é efetivamente inclusiva e equânime, especialmente quando se observam as desigualdades estruturais que ainda permeiam as relações familiares, notadamente sob a ótica de gênero.
Como objetivo geral buscou-se investigar os reflexos jurídicos e sociais da exclusão do cônjuge como herdeiro necessário. Entre os objetivos específicos, destacam-se: (i) identificar as principais críticas doutrinárias à concorrência sucessória; (ii) examinar a jurisprudência atual sobre o tema; (iii) avaliar os efeitos práticos da nova redação legislativa; e (iv) discutir o impacto da proposta para cônjuges em situação de vulnerabilidade econômica, especialmente mulheres.
Dentre as informações extraídas da análise, evidenciou-se que a manutenção do cônjuge como herdeiro necessário tem papel significativo na proteção da parte economicamente mais frágil da relação conjugal. A exclusão sugerida no PL 04/2025 não apenas compromete essa proteção, como também reflete uma construção normativa baseada em uma percepção abstrata de igualdade, que ignora desigualdades históricas e estruturais. A sub-representação feminina na comissão de juristas que elaborou a proposta reforça esse distanciamento da realidade sociocultural brasileira, revelando um viés que pode comprometer os direitos das mulheres em contextos de dependência econômica.
Em síntese, a exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários, ainda que tecnicamente amparada por fundamentos jurídicos modernos, carece de uma análise mais profunda quanto aos seus reflexos sociais, principalmente diante da realidade brasileira, marcada por desigualdades de gênero e vulnerabilidades econômicas. O artigo, portanto, aponta para a necessidade um debate mais amplo e plural, que considere as diversas vozes da sociedade civil e respeite os princípios constitucionais de igualdade e proteção aos mais vulneráveis.
Embora seja inegável a necessidade de se promover uma atualização no regime sucessório, especialmente diante dos intensos debates que há mais de duas décadas se travam quanto à permanência do cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário, a proposta apresentada pela Comissão de Juristas não resolve o impasse existente. Ao contrário, ao suprimir o cônjuge do rol de herdeiros necessários sem enfrentar adequadamente as complexidades sociais e jurídicas envolvidas, a medida pode aprofundar a insegurança jurídica e gerar novos conflitos sucessórios, especialmente em um contexto familiar heterogêneo e marcado por desigualdades materiais.
Diante de todo o exposto, conclui-se que a exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários, conforme proposta legislativa, desconsidera as particularidades estruturais da sociedade brasileira, notadamente no que tange às desigualdades de gênero. A alteração legislativa proposta, longe de promover justiça material, evidencia a persistência de uma cultura jurídica marcada por preconceitos de gênero. Tal desconexão entre a norma e a realidade social fragiliza a função protetiva do Direito, revelando-se incompatível com os princípios constitucionais de igualdade e dignidade da pessoa humana.
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[1] Bacharela em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT.
[2] Pós-Graduada em Advocacia Consumerista pela Escola Brasileira de Direito (2020 - 2022). Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT.
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