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O Inventariante Digital como Elemento da Modernização da Sucessão Patrimonial: desafios, fundamentos e perspectivas no direito brasileiro
Patricia Gorisch
Advogada. Pós-Doutora em Direitos Humanos (Universidad de Salamanca) e em Direito da Saúde (Università degli Studi di Messina). Doutora e Mestre em Direito Internacional. Professora do Mestrado em Direito da Saúde e do Doutorado em Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Santa Cecília (Unisanta). Presidente da Comissão Nacional dos Direitos dos Refugiados do IBDFAM.
Em outubro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 2.124.424, sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, inaugurou um novo marco no Direito das Sucessões brasileiro ao reconhecer a necessidade de um procedimento próprio para o tratamento dos bens digitais deixados por falecidos. A decisão, amplamente divulgada pelo STJ e pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), estabeleceu que, na ausência de legislação específica, cabe ao Judiciário criar mecanismos que garantam simultaneamente o direito de herança e o respeito à privacidade do falecido.
Nesse contexto, foi instituída a figura inédita do inventariante digital, profissional nomeado judicialmente, com formação técnica em tecnologia da informação e dever de confidencialidade, encarregado de acessar, identificar e classificar os bens digitais, distinguindo aqueles de natureza patrimonial — suscetíveis de partilha — dos bens existenciais, que permanecem protegidos pela intimidade e não se transmitem aos herdeiros.
A hipótese que orienta o presente artigo é a de que o inventariante digital se apresenta como solução legítima e necessária diante do vácuo normativo brasileiro sobre sucessão de bens digitais, sendo instrumento de equilíbrio entre a preservação da personalidade e a continuidade patrimonial. Essa construção jurisprudencial dialoga com a realidade social brasileira, marcada por altíssimo nível de conectividade e baixo índice de planejamento sucessório no ambiente virtual.
Dados do Digital 2025 Global Overview Report (DataReportal, 2025) apontam que o Brasil conta com aproximadamente 183 milhões de usuários de internet — 86,2 % da população — e 144 milhões de usuários ativos em redes sociais, equivalentes a 67,8 % dos brasileiros. Cada indivíduo mantém, em média, 6,83 perfis em diferentes plataformas, segundo o estudo State of Social 2025 da GWI. Apesar disso, a maioria das pessoas não possui qualquer tipo de planejamento sucessório digital: pesquisa do instituto britânico Which? (2024) revelou que 76 % dos usuários do Reino Unido não deixaram instruções sobre o destino de suas contas após a morte, e levantamento da Caring.com (2025) mostrou que apenas 24 % dos norte-americanos possuem testamento formal.
Esses dados permitem compreender a relevância do precedente brasileiro. No julgamento, o STJ reconheceu que a ausência de senhas e de designação prévia de administradores de contas impede a efetiva partilha de bens digitais e pode resultar na perda de ativos de valor econômico, como criptoativos, obras digitais, domínios e perfis monetizados. Ao mesmo tempo, a abertura irrestrita de dispositivos pode expor mensagens e dados sensíveis, violando a intimidade do falecido e de terceiros. Para solucionar esse impasse, o tribunal propôs a criação de um incidente processual apensado ao inventário, no qual o inventariante digital deve elaborar relatório sigiloso, sob supervisão judicial, delimitando os conteúdos que integram a herança e aqueles que permanecem resguardados. Trata-se de procedimento que materializa o princípio da proporcionalidade, equilibrando a proteção da privacidade e o direito sucessório.
Do ponto de vista dogmático, a decisão encontra fundamento no art. 5º, X, da Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, no art. 1.784 do Código Civil, que prevê a transmissão imediata do patrimônio aos herdeiros, e na Lei 13.709/2018 (LGPD), que, ainda que não trate expressamente de dados de falecidos, impõe princípios de finalidade e necessidade para o tratamento de informações pessoais.
A ministra Nancy Andrighi salientou, em seu voto, que o direito não pode ignorar a nova forma de patrimônio que emerge do universo digital e que a tutela da personalidade deve permanecer além da vida física. A decisão dialoga, ainda, com o movimento internacional de reconhecimento da herança digital: nos Estados Unidos, o Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (RUFADAA, 2015) instituiu o digital executor, responsável pelo gerenciamento de contas e bens virtuais de falecidos; na França, a Lei n.º 2016-1321 reconhece a possibilidade de testamento digital; e na Alemanha, o Tribunal Federal de Justiça (Bundesgerichtshof) decidiu, em 2018 (Az. III ZR 183/17), que os herdeiros têm direito de acesso às contas de redes sociais de falecidos, mediante garantias de sigilo e proporcionalidade.
A proposta de criação do inventariante digital baseia-se nos arts. 156 e 464 do Código de Processo Civil, que tratam da figura do inventariante e da perícia, adaptando-os à realidade tecnológica. Sob essa ótica, o inventariante digital atua como perito auxiliar, com dever de confidencialidade e responsabilidade civil e penal por eventuais violações. O STJ também autorizou que os autos tramitem em segredo de justiça quando forem identificados conteúdos de natureza estritamente íntima, assegurando a proteção da memória digital e dos direitos da personalidade (IBDFAM, 2025; Migalhas, 2025).
A criação do inventariante digital também expressa uma importante mudança na forma como o Judiciário brasileiro tem lidado com os desafios impostos pela tecnologia. O direito processual, historicamente voltado à materialidade das coisas, precisa agora lidar com ativos intangíveis, voláteis e globalizados. Essa realidade desafia os paradigmas clássicos de territorialidade, propriedade e prova. O STJ, ao reconhecer a função técnica do inventariante digital, atua dentro do princípio da efetividade da jurisdição, previsto no art. 4º do CPC, garantindo que o processo seja capaz de solucionar litígios complexos da era digital. Trata-se de exemplo de diálogo entre o Direito e a Tecnologia, demonstrando que a inovação normativa pode e deve ocorrer pela via interpretativa, quando o legislador ainda se mostra inerte.
As principais plataformas de armazenamento digital e redes sociais — como Google, Apple, Meta e X (antigo Twitter) — operam sob legislações estrangeiras, majoritariamente baseadas na legislação norte-americana e europeia. Sem acordos de cooperação, as ordens judiciais brasileiras frequentemente enfrentam resistência quanto ao fornecimento de dados pós-morte. O inventariante digital, nesse contexto, pode servir como figura de mediação técnica, promovendo interlocução segura entre o Poder Judiciário nacional e as plataformas internacionais. Essa função ganha ainda mais relevância com o avanço do Regulamento Europeu de Serviços Digitais (Digital Services Act – 2024), que prevê protocolos de interoperabilidade e de cooperação transfronteiriça para acesso a informações digitais.
A discussão também se conecta à bioética e à filosofia do direito, especialmente quando se reflete sobre a continuidade da identidade digital após a morte. Se, no passado, o patrimônio era composto por bens tangíveis, hoje ele inclui fragmentos da vida cotidiana: fotografias, e-mails, mensagens e produções intelectuais em ambiente virtual. O inventariante digital, ao selecionar o que deve ser preservado e o que deve permanecer protegido, atua quase como curador da memória e da honra do falecido. É um exercício ético de respeito à autonomia pessoal e à vontade presumida, que demanda sensibilidade e preparo multidisciplinar, unindo conhecimentos jurídicos, tecnológicos e humanísticos.
O mercado de criptoativos e tokens não fungíveis (NFTs) movimentou mais de 20 bilhões de dólares em 2024, segundo o relatório Chainalysis Web3 Economy Report (2025), o que demonstra a dimensão patrimonial dos bens digitais. A inexistência de mecanismos adequados para a transmissão desses ativos pode gerar prejuízos consideráveis às famílias e ao fisco. Ao reconhecer a necessidade de inventariar tais bens, o Judiciário também contribui para a arrecadação tributária e para a integridade do sistema econômico. A ausência de instrumentos jurídicos para regular a herança digital cria zonas cinzentas propícias à fraude e à evasão de valores, razão pela qual o inventariante digital é igualmente importante sob a ótica fiscal e de compliance.
Há também uma dimensão educacional envolvida. O precedente do STJ desperta a necessidade de formação profissional adequada. O ensino jurídico tradicional ainda não contempla a complexidade da sucessão digital. Advogados, peritos e magistrados precisarão compreender as implicações técnicas de algoritmos, blockchains e sistemas de armazenamento descentralizado. A formação de inventariantes digitais demandará regulamentação profissional e possivelmente certificações técnicas reconhecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o que abriria um novo campo de especialização no âmbito do Direito e da Tecnologia da Informação.
Sob a perspectiva dos direitos fundamentais, o inventariante digital fortalece a noção de dignidade pós-morte, conceito ainda incipiente no Brasil, mas amplamente debatido em ordenamentos europeus. O Tribunal Constitucional Alemão, por exemplo, já reconheceu o “direito à autodeterminação informacional post mortem”, assegurando que a proteção de dados pessoais se estende além da vida física. O mesmo raciocínio se aplica ao contexto brasileiro, onde a personalidade civil se extingue com a morte, mas a memória, a imagem e os dados do indivíduo continuam produzindo efeitos sociais e jurídicos. O inventariante digital materializa essa tutela ao garantir que o acervo virtual seja tratado com o mesmo respeito que se confere aos bens materiais e às lembranças familiares.
Cabe ressaltar que a institucionalização dessa figura não deve ocorrer de forma apressada, mas planejada. O ideal seria que o Conselho Nacional de Justiça, em articulação com o Congresso Nacional e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), elaborasse um anteprojeto de lei que sistematizasse o tema, com base em consultas públicas e audiências técnicas. Essa lei deveria dialogar com a LGPD, com o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e com tratados internacionais de proteção de dados, criando um sistema harmônico de governança digital sucessória. Somente com uma legislação abrangente e interdisciplinar o Brasil poderá assegurar a continuidade da proteção da personalidade e da propriedade na era informacional.
Em resposta às questões levantadas, verifica-se que o inventariante digital atua como filtro técnico-processual capaz de preservar a intimidade sem impedir a transmissão do patrimônio. Seu relatório permite ao juiz definir quais conteúdos são partilháveis, enquanto aqueles de natureza existencial permanecem sob sigilo. Trata-se de um instrumento que equilibra eficiência processual, ética e dignidade pós-morte. Quanto à segunda questão, o precedente do STJ fornece parâmetros para uma futura lei de sucessão digital: a definição legal de bens digitais, os critérios de transmissibilidade, os requisitos técnicos para nomeação do inventariante digital, o dever de confidencialidade e as regras de cooperação entre o Judiciário e as plataformas digitais.
A regulamentação dessa figura no Código de Processo Civil ou em lei autônoma fortaleceria a segurança jurídica, reduziria litígios familiares e promoveria a educação sucessória digital. Ao reconhecer a herança digital como extensão da personalidade, o direito brasileiro se alinhará aos padrões internacionais de proteção de dados e de governança da informação pós-morte. A hipótese inicial se confirma: o inventariante digital é um instrumento jurídico legítimo e inovador, capaz de harmonizar a tradição do direito sucessório com as exigências da sociedade digital. Seu reconhecimento formal em lei representará não apenas avanço jurídico, mas também afirmação ética da dignidade humana no século XXI.
Referências
Superior Tribunal de Justiça. Acesso à herança digital protegida por senha exige incidente processual próprio. Brasília, 1 out. 2025.
Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). STJ cria figura do “inventariante digital” para gerir dados de falecidos. Brasília, set. 2025.
Migalhas. Acesso à herança digital deve ser feito por inventariante digital. São Paulo, 9 set. 2025.
DataReportal. Digital 2025: Global Overview Report (Brazil). Londres, fev. 2025.
GWI. State of Social 2025. Londres, fev. 2025.
Crowe LLP. Digital Estate Planning: Managing Your Online Assets. Toronto, abr. 2024.
Which? Most people have no plan for “digital death”. Londres, set. 2024.
Caring.com. 2025 Wills and Estate Planning Study. Nova York, set. 2025.
Silva, D. The Destination of Digital Assets Post-Mortem. Revista de Direito da Universidade Tiradentes, Aracaju, 2025.
Ghilardi, D.; Rosa Filho, J. N. da. Succession of Digital Rights in Brazil: In Search of Appropriate Legal Treatment. Global Journal of Human Social Science, 2022.
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