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Família pós-patriarcal
Eduardo Cambi[1]
A família, historicamente concebida como núcleo de reprodução das desigualdades de gênero, foi estruturada sob o modelo patriarcal, no qual o homem ocupava o papel de chefe, provedor e detentor da autoridade, enquanto à mulher cabia a subordinação, o cuidado doméstico e a invisibilidade social. Esse arranjo, legitimado por narrativas religiosas, filosóficas e jurídicas, consolidou-se como microestrutura de poder autoritário, refletindo e perpetuando a hierarquia de gênero vigente na sociedade.
No entanto, as últimas décadas testemunharam profundas transformações: o avanço do feminismo, a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, o surgimento de novas configurações familiares e a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos vêm desestabilizando o monopólio masculino sobre a autoridade familiar. Essas mudanças revelam que o modelo patriarcal não é natural nem eterno, mas sim histórico e, portanto, passível de crítica e superação.
Repensar a família exige reconhecer que ela não é apenas espaço de afeto, mas também dispositivo social capaz de perpetuar ou transformar desigualdades. O Direito das Famílias, por sua vez, deve abandonar a lógica da autoridade masculina e da submissão feminina, promovendo uma cultura de respeito mútuo, diálogo e corresponsabilidade afetiva e econômica. Isso implica desconstruir padrões patriarcais, reconhecer o valor e a autonomia das mulheres, e acolher os homens em processos de vulnerabilidade, sensibilidade e participação ativa no cuidado e nas tarefas domésticas.
A equidade de gênero, nesse contexto, não é apenas um ideal abstrato, mas uma necessidade concreta para a efetivação de uma família eudemonista, voltada ao bem-estar de todos os seus membros. A corresponsabilização nas tarefas domésticas e no cuidado com os filhos traz benefícios para homens, mulheres e crianças: fortalece vínculos afetivos, reduz taxas de violência e divórcio, melhora a saúde mental e reconstrói a autoestima masculina, não mais baseada no domínio, mas na capacidade de amar, cuidar e ser cuidado.
A centralidade do cuidado emerge como valor jurídico e ético fundamental na família pós-patriarcal. O cuidado, historicamente atribuído às mulheres, deve ser reconhecido como direito e dever humano, compartilhado por todos os membros da família. Isso significa romper com a ideia de que cuidar é “coisa de mulher”, permitindo que homens se envolvam plenamente no cuidado dos filhos, da casa e de si mesmos. A parentalidade positiva, consagrada na Lei 14.826/2024, reforça essa corresponsabilidade, promovendo relações mais cooperativas e menos assimétricas.
A crise da masculinidade hegemônica, marcada pela repressão emocional, pela dureza afetiva e pela negação do feminino, não representa uma perda de poder, mas uma oportunidade de transformação. Muitos homens, socializados para evitar vulnerabilidade e expressar força e autocontrole, enfrentam dificuldades para estabelecer vínculos afetivos profundos e cuidar de si e dos outros. Essa repressão emocional alimenta violência, isolamento e sofrimento psíquico.
A reconstrução das masculinidades, orientada por valores de equidade, cuidado, diálogo e afeto, não ameaça os homens — ela os emancipa. Liberta do imperativo de controlar, da obrigação de esconder as próprias dores, da violência como linguagem e da masculinidade como prisão. Construir a família pós-patriarcal é tarefa de justiça, saúde coletiva e reinvenção ética.
A superação do patriarcado não é apenas benéfica para as mulheres, mas também para os próprios homens. Ao romper com padrões tóxicos, os homens podem reconstruir formas de masculinidade mais livres, humanas e saudáveis, nas quais amar, cuidar e sentir não sejam vistos como ameaças, mas como parte essencial da existência. O movimento feminista, nesse sentido, surge como aliado estratégico e ético, oferecendo possibilidades para que homens se reconectem consigo mesmos, com seus sentimentos e com os outros, de forma mais autêntica e humana.
A família pós-patriarcal é aquela que se constrói sobre os pilares da equidade de gênero, do cuidado compartilhado e da corresponsabilidade afetiva e econômica. É um espaço de transformação, onde homens e mulheres podem coexistir como sujeitos autônomos, parceiros na construção coletiva de uma vida digna e igualitária.
O Direito das Famílias deve ser instrumento dessa mudança, promovendo relações mais justas, humanas e inclusivas, capazes de superar a crise da masculinidade hegemônica e beneficiar a vida de todos em sociedade
[1] Pós-Doutor pela Univesità degli Studi Di Pavia. Doutror e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Associado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Faculdade Assis Guargaz (FAG). Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. E-mail:eduardo.cambi@tjpr.jus.br
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