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Além do Antropocentrismo: Por que o Código Civil precisa evoluir para proteger animais sencientes sem reduzir a família à mera afetividade
Por Eduardo Cambi[1] e Stéfane Prigol Cimi[2]
A família multiespécie é uma realidade social e jurídica que desafia o modelo tradicional de família, exigindo do Direito brasileiro uma resposta compatível com os valores contemporâneos de afeto, dignidade e proteção dos vulneráveis. O crescimento exponencial do número de animais de estimação nos lares brasileiros, aliado à intensificação dos vínculos afetivos entre humanos e animais, revela que o antigo paradigma, centrado exclusivamente em laços biológicos ou contratuais entre pessoas, já não é suficiente para dar conta da complexidade das relações familiares atuais.
No entanto, o Código Civil brasileiro ainda trata os animais como bens móveis, ignorando sua condição de seres sencientes, capazes de sentir dor, prazer, medo e afeto. Essa abordagem reducionista não apenas contrasta com a evolução da sensibilidade social, mas também com avanços legislativos e jurisprudenciais que reconhecem a necessidade de proteção jurídica diferenciada para os animais de companhia. A Constituição Federal, em seu artigo 225, impõe o dever de proteger o meio ambiente e, por consequência, os animais; a Lei nº 14.064/2020 endureceu as penas para maus-tratos; e projetos de lei recentes propõem o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos despersonificados.
A reforma do Código Civil é urgente para superar a visão patrimonialista e antropocêntrica que ainda predomina. O reconhecimento da senciência animal deve ser incorporado ao texto legal, criando um estatuto jurídico próprio para os animais de estimação, capaz de garantir sua dignidade e bem-estar, especialmente em situações de dissolução familiar, guarda, visitação e ajuda de custo.
Nesse contexto, destaca-se o recente julgado da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná (AI nº 0009126-82.2025.8.16.0000), que enfrentou diretamente a questão da família multiespécie e da proteção jurídica dos animais sencientes. O acórdão assevera que “o reconhecimento da família multiespécie – isto é, formada pelo vínculo afetivo constituído entre seres humanos e animais de estimação – é um avanço significativo na compreensão plural das relações familiares, as quais não estão centradas tão somente em aspectos biológicos e podem ir além dos laços exclusivamente humanos. Com isso, mitiga-se o paradigma antropocêntrico”. O TJPR afirma que os animais de estimação “não podem ser percebidos como objetos ou coisas inanimadas, mas como integrantes das famílias com status diferenciado, porque desempenham papéis emocionais e sociais importantes, uma vez que são estabelecidos vínculos de convivência, cuidado e responsabilidade entre humanos e seus pets”. O tribunal também destaca que “os animais de estimação são considerados seres sencientes, porque têm capacidade de sentir dor e experimentar sofrimentos, físicos e/ou psíquicos, mas também de compartilhar emoções e sentimentos humanos (como amor, amizade, dor, solidão e raiva). Com efeito, não podem ser tratados apenas pelo direito de propriedade, mas como sujeitos de direitos despersonificados, devendo-se levar em consideração os cuidados necessários para a promoção da sua dignidade e bem-estar (físico e psicológico)”. O precedente estabelece critérios para decisões judiciais envolvendo guarda, convivência e ajuda de custo para animais de estimação no contexto da família multiespécie: comprovação da relação afetiva e de convivência entre tutores e animais, demonstração de aquisição ou adoção conjunta, garantia do bem-estar físico e emocional dos pets, análise da capacidade financeira das partes e consideração de histórico de maus-tratos ou negligência.
Porém, é fundamental combater a ideia equivocada de que a afetividade seria um critério isolado para a definição de família. O afeto é, sim, um elemento estruturante das entidades familiares, conforme consolidado pela Constituição de 1988 e pela doutrina e jurisprudência, mas não é o único. A família multiespécie se caracteriza por uma pluralidade de fatores: convivência íntima, responsabilidade compartilhada, inclusão dos animais em rituais familiares, consideração moral e apego afetivo. Reduzir o conceito de família apenas ao afeto é ignorar a complexidade das relações sociais e jurídicas que envolvem cuidado, solidariedade e proteção recíproca.
A propósito, o julgado do TJPR também enfatiza que o afeto, embora central, não é critério isolado para a definição de família multiespécie. O vínculo afetivo deve ser analisado em conjunto com outros elementos, como convivência, responsabilidade compartilhada e bem-estar dos animais. O tribunal reforça que “reduzir o conceito de família apenas ao afeto é ignorar a complexidade das relações sociais e jurídicas que envolvem cuidado, solidariedade e proteção recíproca”.
Outro equívoco recorrente é o argumento de que ao humanizar os animais de estimação estaríamos desumanizando as famílias. Tal crítica ignora que o reconhecimento jurídico dos vínculos interespécies não implica equiparar animais a pessoas, mas sim reconhecer sua condição de seres vulneráveis, merecedores de tutela adequada. O objetivo não é transformar animais em sujeitos de direitos civis plenos, mas garantir que suas necessidades e interesses sejam considerados nas decisões judiciais e legislativas, especialmente quando envolvem disputas familiares. Humanizar, nesse contexto, significa reconhecer o valor do cuidado, da empatia e da responsabilidade, sem perder de vista as diferenças ontológicas entre humanos e animais.
Nesse debate, o precedente do TJPR afirma que “não se pretende aqui humanizar o animal, tratando-o como pessoa ou sujeito de direito. Também não é o caso de efetivar-se alguma equiparação da posse de animais com a guarda de filhos. Os animais, mesmo com todo afeto merecido, continuarão sendo não humanos e, por conseguinte, portadores de demandas diferentes das nossas”.
Tal advertência é importante para refutar a ideia de que o reconhecimento da família multiespécie abriria caminho para o casamento entre humanos e animais, ou para equiparar animais a filhos para fins de alimentos ou guarda. Essa preocupação é infundada e decorre de uma leitura superficial do debate jurídico. O reconhecimento dos animais como membros afetivos da família não implica a extensão automática de todos os direitos e deveres previstos para pessoas humanas. Não se trata de equiparar a guarda de animais à guarda de filhos, mas de criar soluções jurídicas adequadas à realidade dos vínculos afetivos entre humanos e animais, respeitando suas especificidades e necessidades.
A reforma do Código Civil deve, portanto, ser orientada por uma visão crítica e sensível, capaz de harmonizar a proteção dos animais com os valores fundamentais do Direito das Famílias. É preciso superar preconceitos, simplificações e temores infundados, reconhecendo que a dignidade, o bem-estar e o afeto são valores universais, aplicáveis a todos os seres sencientes que compartilham conosco a vida, os lares e os afetos. O desafio é construir um Direito das Famílias plural, inclusivo e comprometido com a justiça, capaz de proteger os vínculos que dão sentido à existência, sejam eles humanos ou não.
[1] Pós-Doutor pela Univesità degli Studi Di Pavia. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Associado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Faculdade Assis Guargaz (FAG). Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Vencedor do 2º Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos – categoria Direitos da Pessoa Idosa – do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E-mail:eduardo.cambi@tjpr.jus.br
[2] Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – FESMP/MT. Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá – UNIC. Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Paraná. E-mail: stefane.cimi@tjpr.jus.br
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