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Filhos iguais, tratamentos desiguais: a seletividade contributiva e a violação à ética da parentalidade responsável
Por Eduardo Cambi[1] e Stéfane Prigol Cimi[2]
A ideia de que todos os filhos devem ser tratados com igualdade parece óbvia do ponto de vista moral e jurídico. É, inclusive, prevista expressamente no artigo 227, § 6º, da Constituição Federal, que dispõe que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Contudo, situações concretas revelam que essa igualdade nem sempre se concretiza quando o tema é a obrigação de sustento dos filhos. A seletividade contributiva ou capacidade contributiva seletiva – denominação que damos à prática de destinar, de forma deliberada e desproporcional, recursos a apenas um ou alguns filhos em detrimento dos demais - tem se tornado objeto de crescente atenção no Direito das Famílias.
A seletividade contributiva constitui distorção axiológica e prática reprovável no cumprimento do dever jurídico de sustento. Manifesta-se quando o alimentante, sob o pretexto de limitações financeiras, direciona seletivamente seus recursos a apenas um ou alguns de seus filhos, em detrimento do outro ou dos demais. Tal conduta contraria os princípios da isonomia entre os filhos (artigo 227, § 6º, da Constituição Federal), da solidariedade familiar (artigo 3º, inc. I, da Constituição Federal) e da parentalidade responsável (artigo 226, § 7º, da Constituição Federal), porquanto o dever alimentar é uno e independe da origem da filiação, da relação afetiva ou da convivência doméstica.
Referido comportamento evidencia um desvio ético e jurídico do princípio da proporcionalidade e da isonomia entre os filhos, pois revela uma escolha voluntária de quem possui meios para custear padrões mais elevados a um filho, enquanto busca, simultaneamente, reduzir ao mínimo o amparo material devido ao outro.
Essa conduta discriminatória projeta-se como violadora do princípio da dignidade da pessoa humana, ao tratar de forma desigual filhos que, perante o Direito Civil Constitucional, são titulares de idêntico valor existencial e de iguais direitos fundamentais.
Sob a ótica dos direitos humanos, a seletividade contributiva consiste em uma forma de violência econômica e simbólica contra o filho preterido, que se vê privado de recursos básicos por decisões unilaterais do(a) genitor(a). Ao desconsiderar o caráter solidário e equitativo da parentalidade, o alimentante instrumentaliza o sustento como expressão de poder e não de dever jurídico. Essa distorção, na medida que causa impactos desproporcionais entre os alimentandos, deve ser rechaçada pelo Estado-Juiz, sob pena de legitimar a desigualdade material intrafamiliar e naturalizar práticas discriminatórias no exercício da parentalidade.
Em ações de alimentos, é comum que genitores aleguem dificuldades financeiras e/ou a existência de outros filhos para justificar pedidos de redução da pensão alimentícia. Até aí, não há novidade: a revisão da verba alimentar é um instrumento legítimo previsto no Código Civil[3]. Ocorre que, em muitos casos, o discurso de escassez não corresponde à realidade. Trata-se, antes, de um argumento processual abusivo, fundado na escolha seletiva sobre quem merece ser sustentado e em que medida isso deve acontecer.
Situações como a de um genitor que pleiteia a redução drástica da pensão alimentícia destinada a um dos filhos, enquanto mantém (por escolha própria) gastos significativamente superiores com outro, ilustram bem o fenômeno da seletividade contributiva. A alegação de penúria, nesse contexto, perde força diante da evidente reordenação pessoal de prioridades, revelando que a dificuldade não está na insuficiência de recursos, mas na decisão de distribuí-los de forma desigual entre os filhos.
É importante destacar, contudo, que reconhecer juridicamente a seletividade contributiva não significa negar a possibilidade de alimentos em valores distintos entre filhos. Conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça[4] e do Tribunal de Justiça do Paraná[5], a igualdade entre os filhos não possui natureza absoluta, sendo admissível a fixação de alimentos em quantias diferenciadas quando houver justificativas objetivas, como diferentes necessidades dos alimentandos ou variação concreta da capacidade contributiva entre os genitores.
O que se pretende coibir com a conceituação e a conscientização social acerca da seletividade contributiva é algo diverso: são as situações em que, podendo contribuir de forma proporcional e suficiente com todos os filhos, o genitor opta por privilegiar um deles com expressiva parcela de seus recursos, relegando os demais a um padrão de sobrevivência mínimo - ou até mesmo inferior ao mínimo existencial. Essa conduta, longe de expressar razoabilidade, representa desvio da função protetiva da obrigação alimentar, ofendendo os princípios da isonomia, da solidariedade familiar e da parentalidade responsável.
Celso Antônio Bandeira de Mello[6] leciona que a análise da legitimidade de um tratamento desigual exige três indagações fundamentais: (i) qual é o fator de desigualação eleito; (ii) qual a correlação lógica entre esse fator e a norma que impõe o tratamento diferenciado; e (iii) se essa correlação é compatível com os valores consagrados pelo ordenamento constitucional.
Na mesma linha, Humberto Ávila[7] adverte que a aplicação do princípio da igualdade exige a conjugação entre um critério diferenciador e um fim constitucionalmente legítimo. Fins diversos autorizam diferenciações distintas, desde que orientadas por valores objetivos e proporcionais.
A tensão entre igualdade e diferença é um dos principais desafios da concretização dos direitos fundamentais nas relações familiares. Como aponta Joan Scott[8], igualdade e diferença não são conceitos opostos, mas interdependentes, que exigem constante negociação dentro de contextos históricos e políticos específicos.
No contexto da seletividade contributiva, observa-se que, em grande parte das situações, inexiste fator jurídico legítimo que justifique o tratamento desigual entre filhos. Trata-se, pois, de uma diferenciação arbitrária, destituída de finalidade constitucionalmente válida, que rompe com os parâmetros da justiça distributiva familiar. Ao transformar o dever de sustento em instrumento de preferência afetiva, conveniência pessoal ou expressão de poder, o genitor que pratica a seletividade contributiva viola não apenas o princípio da isonomia, mas também a ética da responsabilidade parental.
Essa conduta desvirtua a tensão legítima entre igualdade e diferença, convertendo desigualdade material injustificada em prática recorrente, com graves impactos sobre os filhos preteridos, sujeitos de direitos fundamentais, que – no contexto do modelo da família eudemonista consagrado na Constituição Federal de 1988 - demandam proteção jurídica equivalente e compatível com sua condição de pessoas em desenvolvimento.
Com efeito, a seletividade contributiva viola frontalmente os princípios constitucionais da isonomia entre os filhos, da solidariedade familiar e da parentalidade responsável. Afinal, o dever de sustento decorre da relação de filiação, não da conveniência afetiva, do vínculo conjugal com a mãe ou da logística da convivência. Nesse cenário, ao privilegiar um filho em detrimento do outro, o genitor transforma o sustento em instrumento de poder, não de cuidado. Tal prática representa, ainda, uma forma de violência simbólica e econômica contra o filho preterido (situação agravada sobretudo quando o alimentando é criança, adolescente ou pessoa com deficiência), que se vê privado de recursos básicos por uma decisão unilateral de quem deveria zelar por sua dignidade.
A seletividade contributiva desafia o Poder Judiciário a olhar para além das aparências formais dos argumentos processuais. O direito à pensão alimentícia não é um favor, mas um direito humano fundamental à vida digna. Tal direito não pode ser relativizado por escolhas parentais que violam o princípio da equidade intrafamiliar.
É possível - e necessária - a atuação do Estado-Juiz no sentido de combater desigualdades silenciosas que se escondem sob o verniz das dificuldades financeiras. Portanto, o enfrentamento do fenômeno da seletividade contributiva exige sensibilidade judicial e aplicação concreta de valores jurídicos, como a ética do cuidado, a justiça social e a proteção integral de crianças e adolescentes.
Aliás, promover justiça entre irmãos é também garantir que todos os filhos, independentemente das circunstâncias em que nasceram ou de suas origens (biológicas ou socioafetivas), tenham acesso às mesmas condições materiais para desfrutarem do direito de viverem com dignidade.
Referências
ÁVILA, Humberto. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 2ª ed. São Paulo: RT, 1984.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª ed. São Paulo: Malheiros. 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Código Civil (2002). Código Civil. Brasília, DF: Senado Federal, 2002.
SCOTT, Joan. O enigma da diferença. Estudos feministas, n. 13, jan./abril 2005.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no AREsp 1.814.860/DF. Relator: Ministro Raul Araújo. 4ª Turma. Julgado em 11 out. 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 16 out. 2025.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. Apelação Cível n. 0060882-38.2022.8.16.0000. Relator: Desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi. 12ª Câmara Cível. Julgado em 6 fev. 2023. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br. Acesso em: 16 out. 2025.
[1] Pós-Doutor pela Univesità degli Studi Di Pavia. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Associado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Faculdade Assis Guargaz (FAG). Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Vencedor do 2º Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos – categoria Direitos da Pessoa Idosa – do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E-mail:eduardo.cambi@tjpr.jus.br
[2] Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso – FESMP/MT. Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá – UNIC. Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Paraná. E-mail: stefane.cimi@tjpr.jus.br
[3] Art. 1.699. Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.
[4] “A igualdade entre os filhos [prevista no artigo 227, §6º da Constituição Federal] não tem natureza absoluta e inflexível, devendo, de acordo com a concepção aristotélica de isonomia e justiça, tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, de modo que é admissível a fixação de alimentos em valor ou percentual distinto entre os filhos se demonstrada a existência de necessidades diferenciadas entre eles ou, ainda, de capacidades contributivas diferenciadas dos genitores”. STJ. REsp n. 1.624.050/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/6/2018, DJe de 22/6/2018.
[5] “É possível a fixação de alimentos em valor ou percentual desigual entre os filhos, desde que demonstradas necessidades diferentes entre eles ou, ainda, capacidades contributivas diferenciadas entre os pais” (TJPR - 12ª C.Cível - 0060882-38.2022.8.16.0000 – Fazenda Rio Grande - Rel.: Desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi - J. 06.02.2023).
[6] O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 2ª ed. São Paulo: RT, 1984. p. 27.
[7] Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª ed. São Paulo: Malheiros. 2010. p. 162-163.
[8] O enigma da diferença. Estudos feministas, n. 13, jan./abril 2005, p. 12, 14 e 16.
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