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A exclusão prévia do direito concorrencial sucessório e o precedente do TJMS: da construção doutrinária ao primeiro reconhecimento jurisprudencial
Laís Mello Haffers[1]
Em decisão de grande relevância, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul confirmou a validade de cláusula de pacto antenupcial que afastava o direito concorrencial sucessório entre cônjuges (TJMS – AI nº 1410947-50.2025.8.12.0000, Campo Grande, Rel. Desª. Elisabeth Rosa Baisch, Data de Publicação: 30/09/2025, 4ª Câmara Cível). Embora reconhecido como o primeiro precedente a aplicar o entendimento em contexto estritamente matrimonial, este julgado não constitui o único marco sobre o tema.
Anteriormente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já havia admitido a validade e eficácia da renúncia concorrencial inserida em contrato de união estável, reconhecendo que a cláusula expressa de afastamento do direito sucessório é compatível com a autonomia da vontade das partes (TJSC, AI nº 5049868-47.2022.8.24.0000, Quarta Câmara de Direito Civil, Rel. José Agenor de Aragão, j. 05.12.2024).
O acórdão sul-mato-grossense, portanto, aprofundou a linha interpretativa já aberta pelo TJSC, estendendo-a ao âmbito do pacto antenupcial e consolidando, na prática, a possibilidade de exclusão prévia da concorrência sucessória — tema que vinha sendo debatido na doutrina e que constitui o núcleo central do meu livro Direitos Sucessórios dos Cônjuges e Conviventes – possibilidade de mútua exclusão da concorrência sucessória e análise da condição de herdeiro necessário (Editora Foco, 2024).
Antes dessas duas decisões, contudo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já havia admitido a inserção da cláusula em pacto antenupcial, reconhecendo a sua legitimidade e abrindo o debate sobre sua pretensa eficácia (TJSP, Conselho Superior da Magistratura, Apelação Cível n.º 1030485-35.2024.8.26.0236, Relator Corregedor Geral da Justiça Francisco Loureiro, j. 10.10.2024). Ainda que o Tribunal, à época, tenha se limitado a reconhecer a possibilidade de estipulação sem atribuir-lhe eficácia, o julgado foi importante por deslocar o tema do campo da impossibilidade absoluta para o da discussão jurídica legítima, pavimentando o caminho para o avanço que se consolidaria no TJSC e TJMS.
1. A gênese do debate
A questão da renúncia antecipada de direitos sucessórios sempre foi envolta em controvérsias, sobretudo pela leitura literal do art. 426 do Código Civil, que proíbe o contrato de herança de pessoa viva. A interpretação restritiva dessa regra conduziu, por décadas, à ideia de que qualquer manifestação prévia sobre a herança seria nula de pleno direito.
No entanto, como defendo em Direitos Sucessórios dos Cônjuges e Conviventes – possibilidade de mútua exclusão da concorrência sucessória e análise da condição de herdeiro necessário (Editora Foco, 2024), essa vedação não alcança a hipótese de exclusão prévia do direito concorrencial, instituto de natureza distinta da renúncia à herança. A primeira refere-se à modulação da posição sucessória do cônjuge, dependente da configuração fática existente no momento da morte; já a segunda implicaria a alienação de direito ainda inexistente, o que é juridicamente vedado.
Na obra Direitos Sucessórios dos Cônjuges e Conviventes, desenvolvi a tese de que a exclusão prévia do direito concorrencial é compatível com o ordenamento vigente — lege lata — quando interpretada sob a lente da ponderação constitucional e das técnicas hermenêuticas (semântica, histórica, sistemática e teleológica) aplicáveis ao artigo 426 e ao conjunto do Livro das Sucessões. Essa compreensão não decorre, portanto, apenas da distinção técnica entre herança e direito concorrencial, mas também de outros fundamentos, conforme detalhadamente demonstrei no livro, não sendo o caso de aqui nos debruçarmos sobre eles.
2. O caso julgado pelo TJMS
O caso concreto envolveu casal que, ao adotar o regime da separação de bens, firmou pacto antenupcial com cláusula de renúncia recíproca ao direito de concorrer na herança com descendentes e ascendentes. Após o falecimento do marido, a viúva pleiteou sua inclusão no inventário, sustentando a nulidade da cláusula com base na proibição contida no art. 426 do Código Civil.
O Tribunal, no entanto, confirmou a validade da disposição. Reconheceu que a cláusula não configurava renúncia à herança de pessoa viva, mas simples afastamento do direito concorrencial do cônjuge. O voto condutor destacou que a manifestação recíproca de vontade, formalizada em escritura pública e amparada por assistência jurídica, não afronta a ordem pública nem a boa-fé objetiva.
3. Convergência entre decisão e construção teórica
A ratio decidendi do TJMS coincide integralmente com a tese defendida em Direitos Sucessórios dos Cônjuges e Conviventes. Sustentei que o art. 426 do Código Civil deve ser interpretado de modo teleológico e sistemático, distinguindo entre (i) a renúncia abstrata à herança, juridicamente impossível, e (ii) a limitação do direito concorrencial, juridicamente possível e compatível com o ordenamento.
Trata-se, em verdade, de exercício legítimo de autonomia privada patrimonial, cuja finalidade é prevenir litígios e garantir segurança jurídica no momento da sucessão. A exclusão recíproca, longe de afrontar a igualdade ou a solidariedade conjugal, reforça a liberdade de ambos os consortes em planejar seus efeitos sucessórios dentro dos limites constitucionais.
Também defendi que, sob a perspectiva civil-constitucional, a autonomia privada deve ser compreendida em harmonia com a dignidade da pessoa humana, a afetividade e a proteção da família. Esses valores justificam o reconhecimento da liberdade das partes em ajustar, no pacto antenupcial, a exclusão recíproca do direito concorrencial.
Ao validar a cláusula, o Tribunal aproximou-se da tendência de outros ordenamentos de matriz romano-germânica, como Alemanha, França e Espanha, que admitem pactos sucessórios restritivos ou de renúncia parcial mediante instrumento público. A convergência demonstra que o Direito brasileiro, ao admitir a exclusão prévia do direito concorrencial, não inova arbitrariamente, mas se insere em um movimento de racionalização do Direito das Sucessões.
4. A autonomia privada e seus limites
A autonomia privada não é ilimitada: encontra barreiras na proteção dos herdeiros necessários e na ordem pública sucessória. Contudo, a exclusão do direito concorrencial entre cônjuges não suprime a legítima nem viola o princípio da reserva hereditária. O cônjuge sobrevivente permanece herdeiro legítimo nas hipóteses de ausência de descendentes e ascendentes, de modo que o pacto apenas disciplina a ordem de chamamento à herança, e não o direito em si.
A decisão do TJMS, ao reconhecer essa distinção, demonstra maturidade interpretativa. Ela consagra a ideia de que o Direito das Sucessões deve servir à função de continuidade e estabilidade das relações familiares, e não como obstáculo à livre disposição de bens. A autonomia privada, quando exercida dentro de parâmetros éticos e formais, é instrumento de pacificação e não de conflito.
5. Impactos práticos e perspectivas
Do ponto de vista prático, o precedente fortalece o planejamento sucessório e confere maior previsibilidade às relações patrimoniais conjugais. A jurisprudência passa a admitir que os cônjuges, com base na boa-fé e transparência, possam ajustar previamente os efeitos sucessórios, evitando disputas e incertezas após a morte de um deles. A médio prazo, essa decisão pode influenciar a interpretação de outros tribunais e até mesmo inspirar alterações legislativas, consolidando a cláusula de mútua exclusão concorrencial como instrumento legítimo de autorregulação familiar.
Contudo, é preciso ter cautela: a validade de cláusulas dessa natureza pode depender do quadro fático concreto, da redação da cláusula, da presença de vícios de consentimento ou constrangimento, e de eventual confronto com outras normas de ordem pública. Por isso, cada pacto deve ser redigido com extremo cuidado técnico.
6. Considerações finais
As recentes decisões dos TJSP e TJSC já haviam sinalizado a abertura de um debate jurisprudencial acerca da validade da exclusão concorrencial, reconhecendo a legitimidade de sua estipulação e a pertinência da discussão à luz da autonomia privada. Nesse contexto, a decisão do TJMS não surge isoladamente, mas representa o amadurecimento dessa construção, ao confirmar, de forma concreta, a compatibilidade lege lata da exclusão prévia do direito concorrencial.
Esse reconhecimento não traduz uma consolidação, mas antes uma afirmação progressiva de uma tendência que se delineia e se aperfeiçoará com o tempo, à medida que novos julgados enfrentem o tema sob diferentes perspectivas relacionais e patrimoniais. Mais do que um precedente relevante, o acórdão do TJMS confirma a evolução hermenêutica do Direito das Sucessões e ilumina, na prática, argumentos centrais desenvolvidos em meu estudo Direitos Sucessórios dos Cônjuges e Conviventes (Editora Foco, 2024).
[1] Advogada de Direito de Família e Sucessões. Professora na Pós-Graduação de Direito de Família e Sucessões da PUC-Campinas. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Especialista em Direito de Família e Sucessões pela PUC-SP. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB Campinas. Autora do livro: Direitos Sucessórios dos Cônjuges e Conviventes – possibilidade de mútua exclusão da concorrência sucessória e análise da condição de herdeiro necessário. 1ª. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024.
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