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PL 4.604-2025: Uma posição equivocada e prejudicial à família socioafetiva
Jones Figueirêdo Alves
A comunidade jurídica recebeu com surpresa proposta legislativa que impõe manifesto retrocesso jurídico na compreensão da família brasileira. Pelo PL n. 4.602/2025 da Câmara dos Deputados (19.09.25), a família não será formada por laços de socioafetividade (01).
A proposta altera o Código Civil para estabelecer que vínculos meramente socioafetivos não configuram parentesco e não geram obrigação de pagar ou receber pensão alimentícia. Descredencia a jurisprudência dos tribunais brasileiros que consagra a socioafetividade e a doutrina de eméritos juristas que a tornou consolidada como instituto jurídico.
Nesse passo, uma vez diante das relações de padrastio ou madrastio impede o PL possam ser pais socioafetivos, afrontando a Lei n. 11.924/2009 que autoriza pela socioafetividade parental a averbação em registro civil do nome de família daqueles, sem que seja necessário que o pai ou mãe biológicos concordem com o acréscimo.
Pior: em desrespeitando os vínculos socioafetivos existentes, padece o projeto de flagrante inconstitucionalidade quando o art. 226 da Constituição Federal dispõe que a família, tem especial proteção do Estado. Assim, não pode ser amesquinhada tal proteção, quando o PL a limita ao seu sentido biológico.
Em tal desiderato, o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 898.060, em Repercussão Geral, onde relator o Ministro Luiz Fux, estabeleceu o princípio da afetividade nas relações familiares, "consolidando o vínculo socioafetivo como suficiente vínculo parental", com a seguinte tese:
"A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios." (02)
O projeto também se apresenta inconstitucional, por atentar o princípio da proibição de retrocesso social, como bem apontou Maria Berenice Dias. Esse princípio foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no ARE 639.337 (relator Min. Celso de Mello), onde se assentou que “o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas também se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados”.
O PL 4.602/2025 assume uma posição prejudicial a um direito consolidado em sede material legislativa - art. 1.593 do Código Civil - que reconhece e protege a família socioafetiva como fonte de origem de um parentesco civil; implicando em grave retrocesso social. Infringe, ainda, os princípios da confiança, da segurança jurídica, da máxima efetividade das normas constitucionais, e o Estado Social, entre outros fundamentos axiológicos.
A sociedade brasileira não merece ser vulnerada em um bem jurídico que lhe serve de maior patrimônio, o da família consagrada pela socioafetividade parental.
Quando o artigo 1.593 do Código Civil anuncia que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem, temos por essa última cláusula, o pai civil. Aquele que resulta da socioafetividade adquirida ou da adoção constituída, importando que a paternidade socioafetiva pode preferir à biológica.
No texto proposto, adiciona-se parágrafo único declarando o seguinte:
Art. 1.593...............................................................................................
Parágrafo único. Não se consideram parentes as pessoas que têm vínculo meramente socioafetivo.
Depois, a proposta incursiona à questão dos alimentos, para acrescentar o parágrafo 3º ao artigo 1.604, expressando:
Art. 1.604...............................................................................................
§3º. O vínculo meramente socioafetivo não basta para que haja obrigação de pagar ou receber alimentos”.
Em sua justificação, acentuou o parlamentar proponente que “a proteção do afeto no âmbito familiar não deve se confundir com a criação indiscriminada de obrigações jurídicas. O Estado deve resguardar os laços legítimos de parentesco e assegurar o cumprimento de deveres decorrentes de vínculos claros, juridicamente reconhecidos, sem abrir margem para interpretações que fragilizem a segurança das relações privadas”.
A justificativa incide em uma contradição material quando admitindo a proteção do afeto, afasta a incidência obrigacional consequente, corolário lógico de tais relações afetivas. Aqui não se trata de interpretações de livre pensar, quando a regra atual é clara e objetiva. Na topografia jurídica com destacado repertório conceitual da socioafetividade, não subsistem zonas cinzentas.
Afirmar que a proposta pretende “evitar distorções na concepção de parentesco, esclarecendo que o vínculo meramente socioafetivo não gera efeitos jurídicos automáticos”, resulta obviedade, porquanto desde que reconhecido formalmente, por via administrativa e judicial.
Daí, a colidência entre os fundamentos do PL e o conteúdo da própria alteração ao art. 1593 do Código Civil ao referir que “não se consideram parentes as pessoas que têm vínculo meramente socioafetivo”. O parentesco socioafetivo preexiste e não será o reconhecimento que o constitui, apenas o declara em sua existência para os devidos efeitos legais.
De igual sorte, a previsão proposta de o vínculo meramente socioafetivo não ser suficiente que para que haja obrigação de pagar ou receber alimentos” (§ 3º ao artigo 1.694, CC). O Enunciado 341 do CJF/STJ, da IV Jornada de Direito Civil, estabeleceu, objetivamente, que “para os fins do art. 1.696 do CC, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar. Consectário da Jornada anterior, quando pelo Enunciado 256, de 2004, resultou assentado que “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.
O vínculo socioafetivo é suficiente, assim, para gerar a obrigação de pagar ou receber alimentos, uma vez reconhecido formalmente. A filiação deve ser entendida como elemento fundamental da identidade do ser humano, da própria dignidade humana. O nosso ordenamento jurídico acolheu a filiação socioafetiva como verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade humana. (Info 699 - STJ).
Impende dizer da importância da manutenção dos vínculos socioafetivos, retratada, desde há muito, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva” (REsp 1059214/RS, Quarta Turma, DJe 12/03/2012; REsp1383408/RS, Terceira Turma, DJe 30/05/2014).
Em ser assim, permanece o STJ sufragando o instituto ao referir, dias atrás, que “a paternidade socioafetiva é reconhecida como forma legítima de filiação, com respaldo no princípio da dignidade da pessoa humana e no art. 1.593 do Código Civil, não se exigindo, para sua configuração, vínculo biológico ou registro formal, mas apenas a relação de afeto” (REsp 2224984/GO, 3ª Turma, Rel. Ministra Daniela, julgado em 16.09.25).
A valoração da socioafetividade parental é tamanha que o STJ por sua 3ª Turma, estendeu o seu reconhecimento aos avós, instituindo a paternidade socioafetiva avoenga, a exemplo do REsp 2107638/SP, da relatoria da Min. Nancy Andrigui, julgado em 12.11.2024, destacando-se:
(...) 4. É juridicamente possível o pedido de reconhecimento de filiação socioafetiva entre avós e neto, diante da possibilidade de reconhecimento de parentescos de outra origem, previstos no art. 1.593 do CC/2002, bem como tendo em vista não haver qualquer vedação legal expressa no ordenamento jurídico a esse respeito.
5. Na espécie, é indevida a aplicação da vedação contida no §1º do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, considerando que não se trata de hipótese de adoção, mas de reconhecimento de filiação socioafetiva em multiparentalidade.
Da família socioafetiva. No direito de família, doutrinadores colocam a seu serviço, espaços reflexivos de densidade que formulam novos institutos com a juridicidade dos fatos da vida. Afinal, nas ideias que dimensionam a formação dos conceitos, estão os significados de sua natureza peculiar, identitária e interpessoal.
A propósito, Vinicius Cunha sustenta que "ao utilizar determinada palavra na lei, o legislador automaticamente está incorporando o significado adotado no momento anterior da edição da referida lei. O legislador não cria palavras, tampouco constrói significados a seu bel-prazer. E o papel dos juristas é justamente respeitar a utilização dessas palavras, nem mais, nem menos". (03)
Em conferência notável, ministrada por João Batista Villela, na Faculdade de Direito da UFMG, surgiu o conceito da “desbiologização da paternidade” (1979). O direito de família avançou qualitativamente e nunca mais foi o mesmo; emancipou-se de uma visão clássica e ortodoxa (04). Adiante, segue-se o conceito da “socioafetividade” (1992), ditado pelo jurista Luiz Edson Fachin, em sua obra “Estabelecimento da Filiação e Paternidade Presumida”, ampliando os conceitos de família em sua pós-modernidade.
Consolida-se o princípio da afetividade que “especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família”. (Paulo Lobo, 2012).
A relação da paternidade socioafetiva, em reconhecimento espontâneo extrajudicial, teve seu provimento pioneiro pela Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco, durante nosso exercício ali interinal. Pelo Provimento nº 09/2013, de 02 de dezembro, resultou autorizado o reconhecimento espontâneo da paternidade socioafetiva de pessoas que já se acharem registradas sem paternidade estabelecida, perante os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais no âmbito do Estado de Pernambuco. (05) Somente quatro anos depois pelo Provimento n 63, de14.11.2017, o Conselho Nacional de Justiça veio dispor sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” do Registro Civil (06)
Na obra “Direito de Família: Desafios Contemporâneos e Temas Interdisciplinares”, sob coordenação de Brenda Vieira Belo (07), o artigo “Aspectos Legais do direito sucessório na paternidade socioafetiva”, de Geórgia Rodrigues Filizzola e Jaime Cezário Filizzola Neto ao tratar da evolução do reconhecimento do instituto, acentua a contribuição significante do Provimento 09/2013 – CGJ/PE, para consolidar o vínculo de filiação socioafetiva. (08)
O estudo realçou a equiparação constitucional de direitos entre todos os filhos (§ 6º do art. 226, C.F.), independente da origem, vindo o Código Civil afirmar no seu art. 1.596 que todos os filhos possuem os mesmos direitos. Os autores assinalam a significação jurídica do parentesco, “de maneira que, conforme o Enunciado 6 do IBDFAM, da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres parentais”.
Conclusão. 1. De todo o exposto, forçoso reconhecer que o malsinado projeto de lei não serve à proteção das famílias do país, ao tempo que mitiga a sua compreensão a uma base simplesmente biológica. Uma sociedade mais equânime deve abrigar todas as famílias em suas diversas configurações.
2. Merece destaque a percuciente ponderação de Marcia Fidelis, em análise do reportado PL n. 4.604/25, quando assim se manifestou:
“É um absurdo em muitos níveis. Está deslegitimando as relações fáticas por ainda não ter havido reconhecimento jurídico. O que caracteriza o parentesco é a posse do estado de filho, que é situação fática que não depende do registro para existir; O registro vai dar formalidade, exatamente como ocorre com a união estável.”
3. Na fúria legisferante em prol de retrocessos jurídicos, anota-se outro Projeto de Lei, o de nº 503/2025, que por sua vez altera o art. 1.696 do Código Civil para dispor sobre a prestação de alimentos nos casos de parentalidade socioafetiva (09). Em bom rigor, o PL nada dispõe, porque não coloca à disposição perante esse modelo de parentalidade, alimentos algum. O parágrafo único introduzido pelo projeto ao art. 1.696 do Código Civil é no sentido de que “a regra prevista no caput não se aplica aos casos de parentalidade socioafetiva” (!).
4. Pasmem: Essa inovação legislativa busca justificar-se na absurdez do entendimento de “em razão do subjetivismo em torno da parentalidade socioafetiva (...) em que o reconhecimento jurídico ocorre a partir da análise de um sentimento de afeição, pouco objetivo e altamente relativo diante das vontades pessoais”. Estranhamento, finaliza a Justificação do projeto na assertiva de a proposição ser feita com “a finalidade de aperfeiçoar (?) as disposições sobre prestação de alimentos envolvendo os casos de parentalidade socioafetiva no Código Civil”.
5. Como bem entendido os dois Projetos de Lei nada aperfeiçoam, muito ao revés são eles prejudiciais e corrosivos, destruindo irreversivelmente inúmeras famílias brasileiras, aquelas formadas pela socioafetividade. Os filhos de tais famílias desconstituídas ficariam órfãos pelo ditado da lei.
Referências:
- PL n. 4.604/2025. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=3001028&filename=PL%204604/2025
- STF. REx. n. 898.060. Web: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/re898060.pdf
- CUNHA, Vinicius. A segurança jurídica e sua natureza de sobreprincípio. Web: https://www.aurum.com.br/blog/seguranca-juridica/.
(04) O texto da conferência é o conteúdo do artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte (MG), n. 21, Ano XXVII, maio/1979; pp. 400/418.
(06) Web: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2525
(07): VIEIRA BELO, Brenda (Coord). Direito de Família: Desafios Contemporâneos e Temas Interdisciplinares. Recife (PE): Editora Império, 2025, 227 p.
(08) FILIZOLLA, Geórgia Rodrigues Filizzola e FILIZZOLA NETO, Jaime Cezário. “Aspectos Legais do direito sucessório na paternidade socioafetiva”; obra citada, pp. 185-195.
(09) Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2856631&filename=PL%20503/2025
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e parecerista.
Fonte: Consultor Jurídico – Conjur
Veiculado em 05.10.2025
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