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Romanização da Maternidade: o limite entre o “amor incondicional” e a exaustão
Amanda de Paula Chaves.[1]
Acordar, dar banho, fazer o café da manhã, garantir que se alimentou bem, levar na escola, lavar e passar as roupas, fazer o almoço, buscar na escola, lavar a louça, limpar a casa, levar ao médico, passar na farmácia, levar e buscar nas aulas de inglês, teatro, natação, ginástica, música, futebol, judô, fazer as compras de mercado, ensinar as tarefas de casa, brincar, fazer o jantar, dar banho, contar uma história, zelar pelo seu sono, e começar tudo de novo. Isso sem contar as idas ao cinema, ao parque e aos aniversários dos amiguinhos aos finais de semana.
Você já parou para pensar quanto tempo uma pessoa gasta para educar e cuidar de uma criança? Pois é, a dedicação de tempo, cuidado e atenção investidos na criação de um filho representa uma espécie de capital invisível que, geralmente, é imputado às mães em decorrência do "amor incondicional” materno. Como se o amor maternal fosse, por definição, árduo.
A romanização do sacrifício feminino transforma o cuidado em dever e o dever em identidade. A partir disso, a mulher, antes, autossuficiente, torna-se uma mãe multitarefas que deixa de existir na sua própria individualidade, passando a ser apenas uma mulher esgotada em razão da não divisão de tarefas com aquele que, em tese, deveria ser corresponsável por esses cuidados.
Normalizar essa avalanche de atribuições como intrínsecas aos deveres maternos é o mesmo que legitimar o caráter compulsório das apresentações sociais do gênero, submetendo essas mulheres ao caráter absoluto das regras sociais. Ocorre que uma dinâmica que exige um esforço unilateral jamais será justa.
O cerne da discussão não é o desgaste decorrente do afeto, mas, sim, os cuidados diários que uma criança necessita para seu pleno desenvolvimento, os quais são, em sua grande maioria, atribuídos às mães. É incontestável que as mães se desdobram e se reinventam em diversas funções - cozinheira, lavadeira, faxineira, passadeira, motorista, professora particular, babá - para preencherem as lacunas deixadas pelos pais.
Essa dedicação exigida e não remunerada, que recai quase que exclusivamente sobre a mulher, impõe à ela um custo invisível e devastador em sua própria vida, uma vez que sua saúde, hobbies, bem-estar emocional e trajetória profissional são marginalizados em prol de um bem maior: o amor.
Mas, por que as mulheres acham honrável abrir mão de si mesmas? Que espécie de amor é esse que você precisa se anular para provar que realmente ama? Manter uma vida de renúncias é o mesmo que ensinar aos filhos que, quando o amor começa, a vida termina.
Além de um determinismo cultural e histórico, os dados disponibilizados no Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) apontam que dentro do período de um ano (entre agosto/2024 a agosto/2025) nasceram 2.607.113 crianças dentre as quais 125.444 foram registradas somente com o nome da mãe. Ou seja, as mães sequer têm outra escolha além de se dedicar diuturnamente aos seus filhos.
Dentro dessa realidade, soa, no mínimo, utópico esperar que homens assumam deveres e reconheçam que o mero pagamento de pensão e uma convivência aos finais de semana não são proporcionais com a dedicação integral de uma mãe aos cuidados diários para o desenvolvimento de uma criança. Estabilidade, cuidado, presença e segurança são os verdadeiros alicerces do afeto.
A solução? Difícil dizer. Não existe mapa. Alguns sugerem que o tempo de dedicação exclusiva das mães deveria ser utilizado como um dos parâmetros para calcular o valor dos alimentos. Mas como cobrar pensão de alguém que sequer teve a hombridade de registrar seu filho? Ainda que o capital invisível fosse considerado para fins de valoração da pensão, seria suficiente para sanar todo o cansaço de uma mãe? Talvez seja uma medida paliativa ou, quem sabe, coercitiva, mas não uma solução.
Infelizmente as mulheres enfrentam uma batalha atrelada ao determinismo cultural e social que enxerga o estereótipo de cuidadora como sendo algo exclusivo da figura feminina. No entanto, padrões culturais e sociais imputados para cada gênero não se adequam mais ao contexto em que as mulheres estão atuando no mercado de trabalho e precisam que os homens assumam, mais do que nunca, as suas responsabilidades enquanto pais.
Posto isso, entende-se que a autodeterminação consciente e responsável dos pais, no sentido de exercer a parentalidade em igualdade de condições, é mínimo impreterível para que as mães possam se emancipar de todos os estigmas enclausurados na ideia do “amor incondicional” e, com isso, usufruir de um amor maternal leve.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KEUNECKE, Ana Lucia Dias da Silva. O capital invisível investido na maternidade. Carta Capital. Disponível em:
Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Disponível em: <https://transparencia.registrocivil.org.br/painel-registral/pais-ausentes>. Acesso em: 28 ago. 2025.
[1]Advogada. Pós-graduada em Direito da Família e das Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. Pós-graduanda em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela Faculdade Brasileira de TributaçãoLinkedIn: linkedin.com/in/amandapchaves/; E-mail: amandachavesadv@outlook.com.
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