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Planejamento jurídico-afetivo e aluguel compensatório: reflexões sobre a ausência de cláusulas em pactos antenupciais
Tatiana Vasconselos Fortes[1]
RESUMO
Este artigo examina decisão proferida pelo Juízo da Comarca de Palmeira das Missões, processo em segredo de justiça, que fixou aluguel compensatório em regime de comunhão universal de bens, diante da ocupação exclusiva do imóvel comum por um dos ex-cônjuges.A análise parte da ausência de cláusula de incomunicabilidade no pacto antenupcial, que permitiu a comunicabilidade da nua-propriedade herdada, gerando litígio patrimonial. O texto propõe a inserção de cláusulas preventivas em pactos antenupciais como instrumento de alfabetização jurídico-afetiva e de redução da judicialização.
Palavras-chave: planejamento jurídico-afetivo; aluguel compresatório; análise de caso.
ABSTRACT
This article examines a decision handed down by the Palmeira das Missões District Court, a case under seal, which established compensatory rent under a universal community property regime, given the exclusive occupation of the joint property by one of the former spouses. The analysis begins with the absence of an incommunicability clause in the prenuptial agreement, which allowed the communicability of inherited bare ownership, generating property litigation. The text proposes the inclusion of preventive clauses in prenuptial agreements as a tool for legal literacy and reducing litigation.
Keywords: legal-affective planning; compressive rent; case analysis.
1.Introdução - O divórcio e os novos contornos patrimoniais
O divórcio é o instrumento jurídico que põe fim ao casamento, dissolvendo o vínculo conjugal. Foi instituído no Brasil com a Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Até então, o casamento era indissolúvel: o casal poderia se desquitar, extinguindo a sociedade conjugal, mas o vínculo matrimonial permanecia intocável.
Como explica Tânia Nigri (2017: p.13), a aprovação da Lei do Divórcio representou verdadeira revolução cultural e jurídica:
A aprovação da Lei do Divórcio alterou profundamente a vida das famílias brasileiras, criando novas possibilidades de reorganização conjugal e patrimonial. A partir desse marco, o casamento deixou de ser uma prisão até a morte e passou a comportar o fim por decisão da vontade das partes.
Segundo dados oficiais do IBGE, em 2023 os divórcios judiciais concedidos em primeira instância corresponderam a 81,8% do total de dissoluções conjugais no Brasil.
Nesse mesmo período, para cada 100 casamentos formalizados entre pessoas de sexos diferentes, registraram-se aproximadamente 47,4 divórcios. Já em 2025, observou-se um crescimento de quase 50% em relação ao ano anterior, o que evidencia uma tendência estrutural: os vínculos conjugais no país têm se dissolvido com maior frequência e em prazos cada vez mais curtos, demandando novas formas de planejamento jurídico-afetivo e de prevenção patrimonial.
Esse cenário confirma dois pontos essenciais: (i) o casamento, inevitavelmente, termina pelo divórcio ou pela morte; e (ii) a ausência de planejamento jurídico-afetivo na escolha do regime de bens potencializa litígios.
2. O caso concreto
No processo nº XX, em segredo de justiça, foi ajuizada ação de divórcio litigioso sob regime de comunhão universal de bens. Entre os pedidos, destacou-se a fixação de aluguel compensatório em razão do uso exclusivo do imóvel comum, avaliado em cerca de R$600.000,00 (Seiscentos mil reais).
O Juízo da Comarca de Palmeira das Missões, em sede liminar, fixou o pagamento de R$800,00 mensais a título de aluguel compensatório provisório, tomando por referência a avaliação locatícia de R$ 1.600,00 do imóvel juntada, a contar da separação de fato, fundamentando-se nos arts. 1.319 e 884 do Código Civil, a fim de evitar o enriquecimento sem causa do cônjuge que permaneceu na posse exclusiva do bem.
A controvérsia evidenciou um déficit recorrente: o pacto antenupcial não continha cláusula de incomunicabilidade referente à nua-propriedade herdada, o que permitiu sua comunicação e, consequentemente, ensejou o direito de pleitear aluguel compensatório.
3. Fundamentos jurídicos
O Código Civil prevê, no art. 1.667, que todos os bens se comunicam no regime da comunhão universal, salvo exceções do art. 1.668, I. No caso, a nua-propriedade herdada não possuía cláusula restritiva, tornando-a comunicável.
A jurisprudência respalda esse entendimento. O Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que:
O uso exclusivo de imóvel comum por um dos coproprietários, mesmo que compartilhado com os filhos do casal, autoriza a cobrança de aluguel proporcional pelo coproprietário não ocupante, a fim de evitar enriquecimento sem causa.” (TJSP, Apelação Cível nº 1008948-95.2022.8.26.0048, Rel. Des. Fátima Cristina Ruppert Mazzo, j. 26/09/2024).
Assim, a decisão encontra fundamento jurídico sólido, reforçando a possibilidade do aluguel compensatório como medida de justiça mínima.
4. Análise crítica: a ausência de planejamento patrimonial
Defendi na petição inicial que o aluguel compensatório não é apenas recomposição financeira, mas forma de responsabilidade patrimonial mínima diante da exclusão injusta da ex-esposa do lar conjugal.
Esse caso mostra que a advocacia de famílias não pode restringir-se à reparação pós-conflito. A ausência de cláusulas claras em pactos antenupciais, seja para proteger bens herdados, seja para disciplinar o uso de imóveis após separação, gera litígios desnecessários, que poderiam ser prevenidos.
Aqui entra a proposta da alfabetização jurídico-afetiva: ensinar casais que amar também é planejar, e que as escolhas feitas no pacto antenupcial refletem responsabilidade e cuidado, não desconfiança.
5. Proposta - cláusulas preventivas em pactos antenupciais
Sugere-se que pactos antenupciais contemplem:
- Nua-propriedade herdada: cláusula de incomunicabilidade expressa.
- Uso exclusivo de imóveis comuns: previsão de regras e valores de aluguel compensatório em caso de separação.
- Compensações automáticas: mecanismos pré-estabelecidos que evitem judicialização.
Essas cláusulas funcionariam como “blindagem patrimonial preventiva”, reduzindo litígios e fortalecendo a segurança jurídica das famílias.
6. Conclusão
O caso decidido revela mais do que a pertinência do aluguel compensatório: expõe a fragilidade estrutural de casamentos celebrados sem qualquer consciência jurídica de seus efeitos patrimoniais.
O reconhecimento do aluguel deve ser compreendido como medida de justiça mínima, diante do risco de enriquecimento sem causa. Importa destacar que, desta decisão, a parte não interpôs agravo, o que reforça sua solidez prática e a relevância do tema para o debate jurídico.
Contudo, é preciso enfatizar que, essa medida atua apenas sobre o sintoma. A raiz do problema está na ausência de planejamento jurídico-afetivo.
Por isso, sustento que a advocacia de famílias contemporânea precisa assumir caráter consultivo, preventivo e humanizado, oferecendo pactos antenupciais inteligentes e personalizados. É urgente consolidar a cultura de que separar-se também é proteger patrimônio, vínculos e dignidade.
Na advocacia de famílias, cabe a nós ressignificar o pacto antenupcial, deixando de ser visto como tabu, para ser compreendido como verdadeiro instrumento de cuidado. Se quisermos promover a desjudicialização e consolidar a responsabilidade afetiva, precisamos mostrar que amar também é planejar, e separar-se também é proteger.
Por fim, cabe registrar que o processo ainda se encontra em tramitação, sem que a parte requerida tenha interposto agravo contra a decisão que fixou o aluguel compensatório.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Processo nº X00XXXX-XX.2025.X.21.00X0 (segredo de justiça). Xª Vara Cível da Comarca de Palmeira das Missões/RS.
METRÓPOLES. Número de divórcios teve aumento de 49% no Brasil em 2023, diz IBGE. Brasília, 27 mar. 2024. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/ibge-numero-de-divorcios-teve-aumento-de-49-no-brasil-em-2023. Acesso em: 20 set. 2025.
NIGRI, Tânia. Divórcio. São Paulo: Blucher, 2017.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS (TJMG). Apelação Cível nº 0049508-26.2013.8.13.0452. Rel. Des. Alexandre Santiago, julgado em 02 ago. 2025.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (TJSP). Apelação Cível nº 1008948-95.2022.8.26.0048. Rel. Des. Fátima Cristina Ruppert Mazzo. 4ª Câmara de Direito Privado, julgado em 26 set. 2024.
[1] Advogada de Famílias e Estrategista Jurídica (OAB/RS 78.321). Pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões. Associada ao IBDFAM e Coordenadora de Marketing e Eventos do Núcleo de Caxias do Sul do IBDFAM/RS.
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