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Histórias de contar (II): a maternidade
Jones Figueirêdo Alves
Questão jurídica relevante diz respeito à maternidade como bem jurídico. Inexiste um estatuto jurídico da maternidade, um microuniverso normativo, que a celebre ou a discipline em sua multifacetada realidade de relação parental.
Aliás, a maternidade foi (re)inventada em 1762. A sua formulação, na concepção atual, foi feita pelo filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, na obra “Emílio”, ou “Da Educação”, publicada naquele ano. Ele repudiou a instituição dominante das amas-de-leite, encorajando as mulheres a assumirem, em definitivo, a maternidade. Foi a "revolução do sentimento", no alvorecer do Iluminismo, escola filosófica articuladora do amor romântico. Desse movimento, o amor tornou-se "a razão principal para o casamento e para o filho ser considerado o fruto ou um dom desse amor", introduzindo a ideia do amor materno.
Antes, a infância era um relato de maus-tratos e de abandono afetivo, e nesse contexto de época, indiferentes as mães ao seu vínculo, a maternidade nada significava senão a mera capacidade de procriação, não dispondo de deveres ou direitos. Com as ideias de Rosseau e do Iluminismo, construiu-se a "família nuclear", formada pelos pais e os filhos, onde a mãe tornou-se responsável pela criação da prole, realizando-se, como mulher, nas tarefas da maternidade e da esfera doméstica. Surge o ideal materno vitoriano: "a boa mulher em casa com seus filhos, seu piano e seus princípios".
Em "Mãe de Todos os Mitos", a jurista Aminata Forna, explica que o estilo de maternidade, que herdamos com raízes na família nuclear, tem origem na reação ao abandono da infância - quando as crianças eram colocadas nas rodas dos orfanatos (daí a expressão "exposto") - em um novo papel social da mulher, até então considerada inferior para a assunção de responsabilidades.
Em L'Historie des méres (1980), Kniebiehler e Fouquet apontam que a exaltação do amor materno é fato recente na civilização ocidental. Ela começou no final do século XVIII, vindo a celebração da maternidade influir na proteção da mulher e da criança, assegurando-lhe os seus valores sociais. Importa lembrar que o "matrimônio" canônico, em seu caráter sacramental, significa a proteção da mãe e da prole.
Em tempos modernos, a remoção de óvulos, a fertilização assistida, os embriões congelados podendo ser gestados a qualquer tempo por outra mulher, a sub- rogação de útero e os vínculos socioafetivos desvinculados de origens genética ou biológica, informam outros significados de maternidade. Novas maternidades são celebradas, para além do modelo tradicional.
O modelo da esposa infértil, que admite o sêmen do marido artificialmente inseminado na mãe substituta, doadora do óvulo, avoca o Gênesis (30,3) “onde Sara, mulher de Abraão, pede a este que tenha um filho com Hagar, sua criada, para que através dela também se tornasse mãe”.
As técnicas de reprodução assistida indicam uma nova tridimensionalidade procriativa, conforme a doutrina de Stela Barbas (Lisboa, 2002) exatamente nas dimensões orgânica (pai/mãe genética, os que são dadores de esperma/óvulo), física (mãe gestante/pai, mãe portadora e seu companheiro) e simbólica (pai/mãe adotivos).
Enquanto isso, Guilherme Oliveira (Coimbra, 1992) afirmava: “Mãe só há duas”. Ou seja: (i) a mulher que gerou o embrião formado a partir de ovócito dela mesma (maternidade gestacional e genética); (ii) a mulher que gera em seu útero embrião que tem origem em ovócito de outra mulher.
Mas se dirá que mãe só há tres, sendo a terceira a do projeto parental, que recepciona, socioafetiva, o filho encomendado com o semen do marido. Ou também se dirá que mãe só há quatro, sendo esta última, a mãe adotiva, em circunstancia de quando a mãe genética, altruisticamente faz a doação do óvulo para a terceira (a que destinou a gestação de encomenda pela segunda) e esta, então separada do marido, não aceita mais o filho, colocando-o, então, para adoção. Multiplas, portanto, as novas maternidades.
Vejamos, ainda: A maternidade substitutiva avoenga, que teve sua ocorrência pioneira, em 1987, na África do Sul, e no Brasil (Nova Lima, MG), em 2008, tem sugerido que essa relação constitua uma maternidade dúplice. Inegável que a avó se torna na prática, pelo vínculo nutriente/gestacional, uma eficiente genitora socioafetiva do neto gestado. Situação às avessas, surgiu com o célebre caso Bouvin, quando Melanie Boivin (35 anos) teve seus óvulos congelados para sua filha Flavie (7 anos) poder usá-los no futuro. Ela sofre da condição genética chamada “Síndrome de Turner” e na hipótese, terá um filho que virá a ser filho genético da própria avó.
A filósofa francesa Elisabeth Badinter na sua obra “Um Amor conquistado: o mito do amor materno” (1985), concluiu que o amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher, ele não é um determinismo, mas algo que se adquire”. Adiante, em “O Conflito: a mulher e a mãe”, Badinter refletiu sobre as causas e os efeitos da queda acentuada nas taxas de natalidade, o aumento de mulheres que não querem ter filhos e, sobretudo, o renascimento do discurso naturalista para a reconquista da mulher ao seu papel de mãe, quando tem sido postergada bastante a maternidade.
Por sua vez, em “Mães arrependidas: Uma outra visão da maternidade” (2017), a socióloga israelense Orna Donath, afirma que a pressão social sobre a maternidade tem sido enorme, como se as mulheres não fossem livres para decidir se querem ou não ter filhos.
Em outro viés, discute-se o não-maternar. O tema da não-maternidade por opção, quando a maternidade é negada por mulheres que postergam o projeto parental ou que engravidando, optam por não criarem os seus filhos.
Há de se pensar, afinal, nas mulheres que, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) são as principais provedoras de família, nos mais de 41 milhões de domicílios do país, onde em cada 100 lares, 52 são por ela chefiados. Mais uma dimensão heroica da maternidade que politicas públicas deve proteger.
Jones Figueirêdo Alves é Desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista
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