Artigos
Parentificação, adultização e ECA Digital: importância da nomeação da violência contra crianças
Rodrigo da Cunha Pereira
Advogado, doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), autor de vários livros e trabalhos em Direito de Família e Psicanálise e parecerista.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, dizia que muitas coisas que estão no mundo ainda não têm nome. Eis uma reflexão sobre a vastidão, a complexidade da existência humana e a linguagem que nem sempre alcança todas as vivências e sentimentos. Assim acontece também com os fenômenos jurídicos. E, à medida que vamos nomeando as situações fáticas, vamos dando um lugar jurídico a elas e, consequentemente, atribuindo direitos e proteção.
Por exemplo, alienação parental é um nome novo para uma maldade antiga, que sempre existiu. Na mitologia grega, Medeia, que tornou-se o símbolo e a representação maior da alienação parental, matou os próprios filhos para se vingar da Jason, que a trocou pela Princesa de Corinto. Com essa nomeação, ficou mais fácil proteger crianças e adolescentes contra a perversidade da alienação parental. A partir dessa nomeação, foi aprovada a Lei 12.318/2016, um dos mais importantes textos normativos das últimas décadas para proteção à criança e ao adolescente, a qual algumas pessoas, delirantes, irresponsável ou equivocadamente querem ver extirpada do ordenamento jurídico, em nome de interesses pessoais.
Um outro fenômeno, que também sempre existiu, mas que ainda não tinha sido nomeado, é a antecipação da vida adulta, ou seja, a adultização de crianças e adolescentes. Tem nome e endereço. Com as redes sociais, isso se tornou mais evidente e ampliado. Essa forma de violência ficou explicitada, recentemente, com o vídeo do influencer Felca, amplamente divulgado nas redes sociais. Mas esse é um fenômeno antigo, e vai muito além do “roubo” da infância em redes sociais.
Em 1967, o médico e terapeuta argentino Salvador Minuchin descreveu essa antecipação da vida adulta usando a expressão “criança parental”. Em 1973, o psiquiatra e terapeuta de família húngaro Ivan Boszormenyi-Nagy, a partir dos estudos do terapeuta argentino, nomeou a antecipação da vida adulta como “parentificação” ou “parentalização”. Inicialmente ele a descreveu como uma inversão de papéis, geralmente entre pais e filhos. Ou seja, o endereço é o da própria família. Isso ocorre quando filhos e filhas assumem a função dos pais, sejam elas físicas, emocionais ou mentais, numa inversão subjetiva da relação parental. É a delegação da responsabilidade adulta à criança parental, que ocorre de maneira implícita ou explícita. É comum ouvir de um pai ou mãe: “agora você é o homenzinho da casa”. Na parentificação, o pai/mãe coloca o filho(a) no lugar de um adulto, como se fosse um ideal do ponto de vista geracional (cf. Meu Dicionário de Direito das Famílias e Sucessões – Ilustrado. Ed. Foco, pag.515).
A parentificação pode ser emocional ou física. A primeira, é quando a criança se torna uma fonte constante de apoio emocional e cuidado aos pais e/ou irmãos, tornando-se confidentes deles, ouvindo suas preocupações, problemas e que não tem maturidade psíquica para dar esse suporte psicológico. A parentificação física é quando a criança/adolescente assume tarefas de trabalho doméstico, ou mesmo fora de casa. Isto pode ocorrer quando o casal vive junto, mas na maioria das vezes é quando a mãe ou pai mora sozinho com o(a) filho(a).
A parentificação, a qual podemos chamar também de adultização, ganhou proporções inimagináveis e criminosas, com a exploração do corpo infanto-juvenil nas redes sociais. Portanto, a parentificação vai além da inversão de papéis geracionais. Ela se caracteriza pela antecipação da vida adulta, também, pelo erotismo e sexualização precoce. Pais e mães, ou outros adultos, em nome de ganhar dinheiro, têm exposto os corpos infantis com “dancinhas” e exposições inadequadas para aquela faixa etária. Expõem aqueles corpos infantis ao mundo dos adultos, inclusive, facilitando e propiciando uma verdadeira pedofilia, impulsionados pela rede algorítmica.
Consequências
A parentificação, ou adultização, é uma violência que deixa marcas e sintomas para a vida adulta. Além de ter sua infância roubada, a criança adulta, ou seja, parentificada ou adultizada, se torna vulnerável a uma série de sintomas e problemas, como ansiedade, depressão, perturbações alimentares etc. Certamente elas terão dificuldades em estabelecer vínculos amorosos e relações conjugas saudáveis quando atingirem a vida adulta.
A nomeação desse fenômeno perverso e criminoso é o primeiro passo para elaboração de necessários textos normativos específicos de proteção à infância e juventude. Mas, independentemente da existência de textos normativos, considerando que as fontes e contornos do Direito não são só a lei, já se pode aplicar sanções aos responsáveis legais por essa adultização. No Direito das Famílias, por exemplo, isso pode implicar, em razão do principio constitucional do melhor interesse da criança/adolescente, e por interpretação analógica aos artigos 1.634 do CCB/2002 e seguintes, além dos artigos 22 e seguintes da Lei 8.069/1990 do ECA, na perda de convivência, guarda e, dependendo da forma e gravidade da adultização/parentificação, até mesmo a destituição do poder familiar. Há outros textos normativos que estabelecem prevenções e sanções. Lei 14.826, artigo (parentalidade positiva); Lei 15.069/2024, que institui a política nacional de cuidados.
ECA Digital
Com a aprovação do PL 2.628/2022, em 27/8/2025 (aguardando sanção presidencial), batizado de “ECA Digital”, por se conectar ao Estatuto da Criança e Adolescente-ECA, foram criadas regras para proteção dessas pessoas vulneráveis no ambiente digital. Assim ficou mais fácil aplicar sanções além daquelas já previstas no CCB e ECA. Além disso, ele poderá também cortar o ciclo vicioso: pais que exploram seus filhos expondo seus corpos infantis, inclusive sexualizando-os prematuramente, e consequentemente monetizando seus corpos.
Do outro lado da linha, um prato cheio para aqueles cuja fantasia sexual é com esses corpos infantis, aparentemente ingênuos. Ou seja, ficou mais fácil romper esse incentivo a um dos maiores horrores criminosos, ou seja, a pedofilia. Claro que o combate a essa violência contra criança e adolescentes, em sua dimensão social maior, passa pela regulação das redes sociais, mas deve ir muito além de sua regulação e punição. É preciso educar. Entender que isso seria uma volta à censura, significa não entender os necessários limites a essa perversidade.
A nomeação do fenômeno jurídico já foi feita. Os argentinos chamaram de parentificação, e os húngaros, de parentalização. Nós, brasileiros, o nomeamos de adultização. Gosto mais da nomeação brasileira. O importante é que a partir dessa nomeação ficou mais fácil prevenir, proteger e punir os (i)responsáveis. Tal nomeação ajudou, inclusive a impulsionar a aprovação do referido PL 2.628/2022., que prevê a adoção de ferramentas de controle parental e verificação da idade de usuários e remoção imediata de conteúdos relacionados ao abuso e exploração infantil com notificação às autoridades. Eis aí uma das mais importantes funções do Direito: colocar limites externos, via lei, a quem não os tem internamente.
Publicação oficial: https://www.conjur.com.br/2025-set-03/parentificacao-adultizacao-e-eca-digital-importancia-da-nomeacao-da-violencia-contra-criancas/
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM