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Um olhar para a multiparentalidade: paternidade e maternidade socioafetiva
Eliana Giusto
Advogada de Família. Formada em Filosofia e Direito. Pós graduação em Educação Especial. (UCS) Extensão em Mediação, Comunicação Não-Violenta. ( ESA) Círculos Restaurativos, Direito Sistêmico. (UCS) Psicotrauma. (Escola Lia Bertuol).
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
2 A SOCIOAFETIVIDADE NAS RELAÇÕES PARENTAIS
3 NOVOS TEMPOS
4 PROCESSOS JUDICIAIS
5 A RECIPROCIDADE
6 O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA
7 CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
Vivemos em tempos em que o afeto se tornou um importante valor jurídico. Isso tem grande relevância nos avanços alcançados pelo Direito das Famílias, pois o pleito do afeto como valor jurídico se fortaleceu nos últimos anos, em especial no âmbito do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), do qual sou filiada.
Muitas lutas e algumas conquistas nesse âmbito resultaram em decisões importantes perante os tribunais mais sensíveis do nosso país.
Dentre essas decisões, atualmente encontramos inúmeros julgados em que os tribunais reconhecem tanto a paternidade quanto a maternidade socioafetiva, sem prejuízo da maternidade ou da paternidade biológica, acolhendo, assim, a multiparentalidade.
A base para tais julgamentos, quando envolvem menores, é o princípio do melhor interesse da criança.
Trata-se de conceito consagrado pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que deve servir de guia para decisões judiciais, como, por exemplo, as ações de guarda e convivência e também aquelas que envolvem a multiparentalidade, assegurando a proteção integral e a dignidade da criança ou do adolescente.
2 A SOCIOAFETIVIDADE NAS RELAÇÕES PARENTAIS
Retrocedendo um pouco, vamos falar sobre o que significam os termos paternidade ou maternidade socioafetiva e multiparentalidade.
Em termos simples, pode-se entender a relação socioafetiva entre pais, mães e filhos como aquela originária da convivência social e do afeto entre eles, diferindo da relação biológica.
Já a multiparentalidade é um conceito do Direito das Famílias que reconhece múltiplos vínculos de parentesco de uma criança, como, por exemplo, mais de um pai ou mais de uma mãe ao mesmo tempo.
Esse entendimento já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou legítimos tanto o vínculo biológico quanto o socioafetivo e os direitos e deveres daí decorrentes.
É preciso lembrar que essas relações sempre existiram, mas agora têm nome e, como diz o grande jurista e colega Rodrigo da Cunha Pereira: “as palavras têm poder”.
Todos conhecemos situações em que alguém foi criado como filho(a), mesmo não sendo biologicamente assim nascido(a).
Na minha família, tenho uma tia que foi criada como filha pelos meus avós, mas com convivência concomitante com a mãe biológica, vínculo este sempre mantido. Todos moravam juntos: filha, pai e duas mães e, quando minha tia chamava pela mãe, duas pessoas respondiam.
Agora temos um termo para nomear essa experiência: multiparentalidade. Assim, minha tia foi criada com um pai socioafetivo — meu avô (o pai biológico não reconheceu a paternidade) — e duas mães: uma biológica e uma socioafetiva, minha avó.
Podemos dizer que a multiparentalidade é um arranjo entre pais e filhos que não se restringe a um pai e uma mãe biológicos.
A multiparentalidade, definida resumidamente pela inteligência artificial, é: “o reconhecimento legal da existência de mais de um pai ou mais de uma mãe para um indivíduo, unindo laços biológicos e socioafetivos. Esse conceito reflete a valorização do afeto e do cuidado na formação familiar, permitindo que os registros civis incluam pais e mães que não são apenas os biológicos, como padrastos ou pais de reprodução assistida, garantindo a esses indivíduos direitos e deveres semelhantes aos dos pais biológicos”.
3 NOVOS TEMPOS
Na atualidade são frequentes as reconfigurações familiares, com recasamentos, uniões homoafetivas, poliafetivas etc. Nessas reconfigurações, encontramos filhos de mais de uma relação de casal, em que as relações parentais socioafetivas ficam facilitadas e, muitas vezes, alcançam uma profunda relação paralela à biológica, sem que uma exclua a outra.
Essa relação, então, construída com base no afeto e no desempenho da função de genitor, busca o reconhecimento jurídico — e muitas vezes o alcança. Dessa forma, alguns filhos passam a ter duas mães e um pai, ou vice-versa, incluídos no seu registro de nascimento.
É importante ressaltar que houve um crescimento significativo de ações judiciais que envolvem o tema.
4 PROCESSOS JUDICIAIS
Atualmente, há inúmeras ações judiciais ajuizadas que buscam declarar a maternidade ou a paternidade socioafetiva. Algumas não logram êxito, pois deixam de atender a requisitos indispensáveis. Dentre eles, saliento o reconhecimento da posse do estado de filho e a manifestação de vontade inequívoca do pai ou da mãe socioafetivos em se sentirem como tal. As ações ajuizadas post mortem são as mais afetadas pela improcedência, como demonstra a pesquisa de jurisprudência sobre o assunto, pois a prova necessária é mais difícil de produzir na ausência dos supostos pais ou mães socioafetivos. Mas esse tipo de ação não será nosso foco.
O presente artigo se debruça sobre as ações que buscam a declaração para menores, mantendo a filiação biológica e acrescentando pai ou mãe socioafetivos ao registro de nascimento, e as possíveis consequências futuras.
O Supremo Tribunal Federal já acolheu a multiparentalidade, em Recurso Extraordinário com repercussão geral, no qual firmou a tese de que a filiação socioafetiva não impede o reconhecimento concomitante da filiação biológica, estabelecendo que o sujeito pode ter pais e mães tanto por laços afetivos quanto genéticos, garantindo-lhes os mesmos direitos e deveres jurídicos.
E assim, já são muitos os infantes a terem três genitores na sua certidão de nascimento.
Observo que não existe o limite de três genitores na caracterização da multiparentalidade, mas, além disso, é bastante raro.
5 A RECIPROCIDADE
Agora vamos refletir: a criança que tiver, digamos, três genitores a lhe prover a infância parece, à primeira vista, estar em condição muito positiva e especial. É uma dose extra de amor, cuidado, sustento, educação e tudo o que envolve uma relação parental adequada.
Se tudo correr bem, essa criança crescerá, tornar-se-á adulta e se encaminhará na vida como melhor lhe aprouver — talvez casando e tendo seus próprios filhos. E seus três genitores, como é o caminho natural da vida, se tornarão idosos e talvez vulneráveis. Então, aquela criança, que cresceu na abundância de afeto e cuidado, quando adulta, terá para com seus genitores direitos e deveres, como preconiza a lei.
Dentre os deveres, há a obrigação de reciprocidade, característica das relações entre pais e filhos: os pais sustentam e cuidam dos filhos na infância e adolescência, e os filhos cuidam e sustentam os pais na velhice ou doença.
É assim que funciona a reciprocidade nas relações entre pais e filhos. Na infância, é dever dos pais educar, proteger e manter a prole. Na vulnerabilidade dos pais, é dever dos filhos ampará-los, e essa obrigação se manifesta por meio da prestação de alimentos e do apoio mútuo, especialmente para o amparo na velhice, carência ou doença, conforme o art. 1.696 do Código Civil e o art. 229 da Constituição Federal. Essa reciprocidade assegura que a assistência seja dada de forma solidária, não apenas material, mas também afetiva e moral. Nada mais correto.
Mas, desde o início dessas mudanças na interpretação da lei em relação à multiparentalidade, trago uma inquietação. No exercício diário da advocacia — especificamente focada no Direito das Famílias —, atendo muitas pessoas que buscam orientação sobre os deveres e obrigações no amparo à vulnerabilidade dos pais idosos.
Não é incomum que apenas um filho se encarregue dos cuidados (geralmente mulheres) dos pais vulneráveis, enquanto outros se eximem. E esses que assumem os encargos com a vulnerabilidade ou doença dos pais idosos veem-se sobrecarregados em cuidar da própria vida e trabalho e, ainda, suprir as demandas dos pais carentes e/ou doentes. E, até pouco tempo, seriam no máximo dois genitores, geralmente com mais de um filho.
A Constituição Federal do Brasil, em seu art. 229, estabelece que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade, o que se aplica a todos os filhos. Essa obrigação legal visa garantir a dignidade e o bem-estar dos pais, sendo — ou devendo ser — compartilhada com a sociedade e o Estado.
Também o Código Civil, em seus arts. 1.694 a 1.710, reforça essa obrigação, determinando que os parentes em linha reta devem mutuamente se assistir, incluindo os filhos para com os pais.
Por fim, o Estatuto do Idoso criminaliza o abandono e a omissão de socorro aos idosos, podendo levar a punições como detenção e multa.
Aí eu penso naquela criança que teve incluídos três genitores na certidão de nascimento, que cresceu usufruindo de afeto, cuidado e proteção e que poderá ter, quando adulta, três genitores idosos para cuidar, na hipótese de vulnerabilidade destes.
6 O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA
O envelhecimento da população brasileira não é propriamente uma novidade. Já é realidade confirmada pelo IBGE, que mostra aumento significativo da proporção de idosos. O fato é que o Brasil está em processo de envelhecimento considerado moderado, com expectativas de que a população idosa seja maior que a de jovens nos próximos anos.
O Brasil, como muitos outros países, é carente de políticas públicas para o amparo à velhice, mesmo com a nossa belíssima Constituição Federal que, há 37 anos, previu: “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, garantindo sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar, e assegurando-lhes o direito à vida. Esse dever do Estado se manifesta em políticas públicas que promovem o envelhecimento saudável, o acesso a serviços e programas culturais e de lazer, a gratuidade de transporte e a prioridade em atendimentos” (art. 230).
Embora conste na legislação que o dever de amparo à velhice, carência ou enfermidade é compartilhado por filhos, sociedade e Estado, sabemos que isso não acontece plenamente em nosso país. A sociedade e o Estado pouco assumem sua parcela dessa responsabilidade.
E, dentro de uma sociedade e de um Estado omissos, pode sobrar à prole — num futuro próximo — a responsabilidade que, em muitos casos, se resumirá a um único filho ou filha com três genitores para zelar.
7 CONCLUSÕES
A pergunta que não quer calar é: como será a realidade desses sujeitos que, muitas vezes sendo filhos únicos, poderão ter três genitores para assistir na velhice, carência ou doença? Este é o cerne da minha inquietação, e não tenho resposta.
Penso que esse aspecto importante deveria ser considerado, estudado e debatido, especialmente quando aumentam as decisões que acolhem a multiparentalidade do sujeito.
Não questiono o dever de cuidado dos idosos pelos filhos, pela sociedade e pelo Estado. Isso é evidente (eu mesma já sou idosa).
Mas o fato é que já existem muitos estudos que demonstram que cuidar dos pais idosos pode acarretar várias consequências pessoais significativas para os filhos. E, por enquanto, esses estudos consideram um ou dois genitores.
Dentre as principais consequências, há a exaustão física e mental, problemas de sono, ansiedade e depressão decorrentes da sobrecarga emocional e de trabalho. Além disso, há o impacto financeiro, pois interfere diretamente no desempenho profissional, com possível redução de jornada ou até mesmo perda do emprego. Também existem consequências sociais, como a privação ou dificuldade em conciliar a vida social e pessoal com o desempenho dos cuidados.
A falta de conhecimento ou de suporte adequado para o manejo das situações que envolvem o cuidado pode agravar essas dificuldades, afetando sobremaneira a qualidade de vida do filho que cuida, sem falar no idoso que necessita do cuidado. E também existe o fator financeiro.
Mesmo assim, quero deixar claro que sou totalmente favorável a que o afeto seja acolhido como valor jurídico pelo sistema de Justiça — mas com responsabilidade. Os desdobramentos possíveis das decisões que acolhem a multiparentalidade, num futuro não muito distante, merecem um olhar atento. Em especial porque nosso país sequer erradicou a fome como causa de mortalidade infantil, e as questões de cuidado com o envelhecimento da população ainda estão engatinhando.
Três genitores para cuidar de uma criança parece ser maravilhoso, principalmente em um país no qual grande parte das crianças conta apenas com a mãe em seu registro de nascimento.
Sim, nosso país é um dos que têm mais casos de certidões de nascimento sem o nome do pai.
“Contudo, ao contabilizar, desde o início do levantamento, em 2016, a quantidade de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento sobe para 1.283.751 em todo o país.”
Essa triste realidade reflete uma grande ausência de paternidade, problema que impacta de diversas formas as crianças e adolescentes brasileiros. A legislação tenta combater o quadro por meio de investigações de paternidade, mas esse recurso se mostra bastante frágil e lento, representando solução mínima para um grande problema.
Não podemos ignorar esse outro aspecto da realidade, em que muitos sujeitos contam apenas com um genitor — a mãe.
Diante de todas as informações e reflexões anteriores, olhando para o futuro, sigo pensando: como será a vida de um sujeito beneficiado com a multiparentalidade na infância e na adolescência, enfrentando, quando adulto, a responsabilidade — possivelmente sozinho — de amparar, cuidar e prover três genitores idosos e vulneráveis?
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 out. 2003.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Recurso Extraordinário 898.060/SC. Rel. Min. Luiz Fux, j. 21 set. 2016 (Tema 622).
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/>. Acesso em: 03 set. 2025.
ARPEN-BRASIL – Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Brasil. Estatísticas de registro civil: paternidade ausente. Disponível em: <https://www.arpensp.org.br/>. Acesso em: 03 set. 2025.
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