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Direito, Infância e Mídias Sociais: Desafios da Monetização da Imagem Infantil à Luz do Debate Aberto por Felca
Jessica Hurtado da Silva[1]
SUMÁRIO: 1. Introdução. - 2. Da Preservação de Memórias aos Perigos da Superexposição Infantil: 2.1. A Figura da Monetização Através do Sharenting; 2.2. Entre a Infância e a Exibição. - 3. As Implicações Legais da Superexposição Infantil: 3.1. A Inatividade dos Sistemas de Justiça; 3.2. As Tendências Legais ao Ordenamento Jurídico. - 4. Considerações finais. - 5. Referências.
RESUMO
O artigo examina a superexposição e a monetização da imagem infantil nas redes sociais a partir do debate público catalisado pelo vídeo “Adultização”. Atrelado ao fenômeno conhecido como "sharenting", no qual pais e responsáveis compartilham excessivamente imagens e informações de crianças, muitas vezes com fins de monetização. O estudo situa-se no campo do ordenamento jurídico brasileiro, buscando analisar os impactos éticos, sociais e jurídicos dessa prática. Por meio de revisão bibliográfica e análise crítica de casos reais e legislações, o artigo revela que a exposição excessiva coloca a criança e adolescentes em situação de vulnerabilidade, sujeitando-as a riscos como violação de privacidade, exploração econômica e danos ao desenvolvimento emocional. A legislação vigente no Brasil, embora proteja os direitos fundamentais das crianças, ainda não dispõe de regulamentação específica para tratar da monetização da imagem infantil em mídias digitais, o que amplia a necessidade de mecanismos legais mais claros e eficazes. Destacam-se iniciativas legislativas recentes que visam regulamentar a temática. O artigo conclui que a superexposição infantil é um desafio multifacetado que exige reflexão e atuação conjunta da sociedade, do poder público e das famílias para equilibrar a liberdade dos pais com a proteção dos direitos das crianças, promovendo um ambiente digital mais seguro e ético para o seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Felca; Youtube; Sharenting; Monetização Infantil; Proteção Jurídica.
ABSTRACT
This article examines the overexposure and monetization of children's images on social media, based on the public debate sparked by the video "Adultização." It is linked to the phenomenon known as "sharenting," in which parents and guardians excessively share images and information about children, often for monetization purposes. The study focuses on the Brazilian legal system and seeks to analyze the ethical, social, and legal impacts of this practice. Through a literature review and critical analysis of real cases and legislation, the article reveals that excessive exposure places children and adolescents in a vulnerable situation, exposing them to risks such as privacy violations, economic exploitation, and harm to their emotional development. Current Brazilian legislation, while protecting children's fundamental rights, still lacks specific regulations addressing the monetization of children's images on digital media, which increases the need for clearer and more effective legal mechanisms. Recent legislative initiatives aimed at regulating this issue are noteworthy. The article concludes that child overexposure is a multifaceted challenge that requires reflection and joint action by society, public authorities, and families to balance parental freedom with the protection of children's rights, promoting a safer and more ethical digital environment for their development.
Keywords: Felca; Youtube; Sharenting; Child Monetization; Legal Protection.
1. Introdução
Com o título “adultização”, o influenciador digital, conhecido e denominado como Felca, publicou em seu canal no YouTube, um vídeo no qual denuncia um fenômeno preocupante, qual seja: a erotização precoce de crianças e adolescentes.
Sob a linha de raciocínio do influenciador, o processo tem início com a publicação de vídeos aparentemente inocentes, nos quais crianças aparecem dançando diante das câmeras. Gradualmente, essas produções evoluem para coreografias de caráter cada vez mais sensualizados, culminando em uma explícita sexualização infantil.
Essa dinâmica é agravada pela postura complacente dos administradores dos perfis digitais dos menores, que contribui para a criação de um ambiente favorável ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes.
A popularização das redes sociais trouxe profundas transformações na forma como as memórias pessoais são registradas e compartilhadas. Isso porque o que antes se limitava a fotografias analógicas, cuidadosamente organizadas em álbuns, tornou-se atualmente um vasto acervo de imagens e vídeos, armazenado em mídias digitais e frequentemente disponibilizado para um público global.
Nesse contexto, surge o fenômeno do sharenting, um termo que define a prática de pais e responsáveis compartilharem conteúdos relacionados à vida de seus filhos nas redes sociais.
Embora tal prática possibilite a preservação de momentos especiais e facilite a conexão com amigos e familiares, também suscita questões éticas, psicológicas e legais. O cerne do problema reside no fato de que a superexposição de crianças e adolescentes no ambiente digital põe em risco sua privacidade e as torna vulneráveis ao uso indevido de suas imagens.
A ausência de regulamentação específica, aliada ao aumento das oportunidades de monetização por meio da exposição infantil, intensifica os desafios relacionados ao tema, tornando-se evidente nos casos de influenciadores mirins que serão analisados ao longo deste artigo, ilustrando como os direitos fundamentais dos menores podem ser comprometidos em prol de interesses econômicos.
Este artigo, portanto, busca examinar as múltiplas dimensões da superexposição infantil atrelada ao fator da monetização, abordando desde suas raízes culturais e tecnológicas até as implicações legais e sociais, com o objetivo de promover uma análise crítica sobre os limites éticos dessa prática.
2. Da Preservação de Memórias aos Perigos da Superexposição Infantil
O hábito de registrar momentos com câmeras analógicas originou uma cultura de preservação de memórias, que, ao se espalhar ao longo das gerações, consolidou a necessidade de capturar ocasiões marcantes para, em seguida, revelar as fotografias e arquivá-las em álbuns, permitindo que esses instantes fossem revividos no futuro, preservando fragmentos da história.
O avanço da internet e das redes sociais ampliou significativamente as possibilidades de registro e arquivamento de momentos, e, nesse período de intensa evolução, as imagens estáticas deram lugar aos vídeos, graças à popularização dos smartphones modernos, que superaram as câmeras analógicas em funcionalidade e praticidade.
Diante disso, plataformas como o Instagram, que, segundo a Bloomberg (2022), alcançam mais de 2 bilhões de usuários ativos, ilustram como a preservação de memórias se transferiu para os meios digitais, abrangendo aproximadamente 6,43% da população mundial.
Impulsionada por avanços tecnológicos e midiáticos, surge, em consequência, uma crescente exposição vinculada ao conteúdo infantil, frequentemente percebida como uma extensão natural da convivência familiar.
À vista disso, a exposição excessiva de menores surge como uma problemática que pode gerar diversos desafios frequentemente ignorados por pais ou responsáveis, uma vez que, ao compartilharem fotos e vídeos do dia a dia de seus filhos, muitos acabam revelando informações pessoais dos menores e comprometendo sua segurança, já que a divulgação de informações como os locais frequentados pelas crianças, por exemplo, não só facilita casos de sequestros ou perseguições, mas também aumenta o risco do chamado "sequestro digital" (Alencar, 2021, p. 17).
A ameaça crescente envolve cibercriminosos que utilizam fotos e dados pessoais para criar perfis falsos, inventar histórias fictícias, aliciar indivíduos ou aplicar golpes virtuais, prática que se torna ainda mais preocupante com o avanço das inteligências artificiais, as quais permitem gerar vídeos simulando movimentos ou falas a partir de uma única imagem, ampliando as possibilidades de uso indevido de dados e aumentando os riscos associados à exposição excessiva de menores.
Aliada a essa exposição, surgem consequências psíquicas que podem afetar diretamente a autoimagem da criança como o cyberbullying que destaca-se como um dos principais fatores desencadeadores, já que uma criança exposta a comentários ofensivos no ambiente digital pode sofrer danos permanentes à sua autoestima e autoconfiança (Ovidio; Bonelli, 2024, p. 11).
Nesses casos, a criança pode internalizar como verdadeiras as opiniões negativas de terceiros, o que pode acarretar não apenas dificuldades nas interações sociais, mas também uma confusão entre os limites do mundo real e o virtual. Esse cenário compromete significativamente seu desenvolvimento emocional, podendo gerar impactos que perdurem por toda a vida.
Nesse sentido, surge o termo "sharenting" (ou "oversharenting"), uma combinação das palavras share (compartilhar) e parenting (paternidade), introduzido pelo jornalista Steven Leckart no The Wall Street Journal, o conceito descreve a superexposição de informações pessoais, fotos e vídeos de crianças e adolescentes por parte de seus pais ou responsáveis (Silva, 2022, p. 20).
2.1. A Figura da Monetização Através do Sharenting
Destaca-se o fator econômico como uma das motivações para a exposição excessiva de conteúdos nas redes sociais, fenômeno conhecido como monetização, que ocorre por meio de pagamentos das próprias redes sociais ou pela contratação de influenciadores para campanhas publicitárias.
Segundo Nogueira (2021), influenciadores digitais podem atingir rendimentos de até quinhentos mil reais por mês apenas com o aplicativo Instagram, cenário em que surge a figura do influenciador mirim, cujas atividades são gerenciadas por seus responsáveis legais.
No entanto, diferentemente do trabalho artístico tradicional, regulamentado por leis que asseguram o melhor interesse da criança, as atividades nas redes sociais operam em um ambiente de maior vulnerabilidade e sem normas específicas.
Essa diferenciação é essencial, pois, como destaca Paulo David (apud Silva, 2022, p. 32), Secretário do Comitê de Direitos da Criança, grupo de trabalho independente vinculado ao Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), em seu artigo sobre os direitos da criança e a mídia, crianças envolvidas em atividades publicitárias enfrentam três principais formas de exploração: a utilização de sua imagem, a restrição de suas capacidades de escolha e a violação de seus direitos como “trabalhadores”.
Frente a isso, destaca-se o caso do menino Noah Tavares, de apenas 3 anos, que já acumula 6 milhões de seguidores nas redes sociais e chega a faturar até R$ 4.000,00 (quatro mil reais) por foto publicada (Silva, 2022, p. 32).
Em entrevista à revista Veja, os pais de Noah aparentam normalizar a intensa exposição do filho. A mãe, que deixou o emprego para administrar a agitada agenda do menor, declarou: “Temos uma rotina de gravação praticamente diária”. Já o pai, Átila, complementou que, apesar do assédio que o filho sofre de fãs em público, “aprendemos a lidar com isso” (Ferraz; Barros, 2024).
A fala dos pais do jovem Noah revelam a naturalização da superexposição e dos impactos que ela pode causar na vida da criança. Esse exemplo ilustra como o sharenting pode transformar crianças em figuras públicas desde a primeira infância, expondo-as a uma rotina que mistura responsabilidades profissionais e exposição contínua (Ferraz; Barros, 2024).
No caso de Noah, além da pressão para atender às expectativas de um público, há uma normalização da perda de privacidade, que se estende para além do ambiente virtual. Essa realidade reflete os pontos abordados por Paulo David, ao demonstrar como o envolvimento precoce em atividades publicitárias pode comprometer não apenas os direitos da criança como trabalhadora, mas também seu direito à privacidade e ao desenvolvimento sem exploração.
Sendo assim, o caso do menino Noah não é isolado, a constar a alta rentabilidade desse tipo de exposição em que muitos pais enxergam na atuação de seus filhos como “influenciadores” uma oportunidade de abandonar seus empregos ou focar exclusivamente nos lucros gerados por essa atividade.
Crianças frequentemente se tornam os principais provedores do sustento familiar, com sua participação em propagandas, publicidades e vídeos de entretenimento monetizados assumindo a forma de um pseudo-trabalho artístico infantil (Silva, 2022, p. 32). Isso intensifica o fenômeno do sharenting, no qual a exposição excessiva de crianças nas redes sociais é normalizada, tornando ainda mais evidente sua vulnerabilidade, especialmente quando sua imagem é explorada para fins comerciais.
2.2. Entre a Infância e a Exibição
A superexposição infantil levanta questões éticas e sociais ao colocar em conflito a liberdade de expressão dos pais e os direitos à privacidade da criança, tornando-se ainda mais preocupante quando há uma finalidade econômica envolvida.
Exemplos como a marca "BabyTube", gerida pelos influenciadores “Viih Tube” e Eliezer, pais da pequena Lua, demonstram como a imagem de uma criança pode ser explorada para fins comerciais, utilizando sua espontaneidade e convertendo sua infância em um produto voltado para promoção e lucro (Legal, 2024, p. 21).
Esse fenômeno ocorre quando eventos memoráveis, como o primeiro aniversário da bebê Lua, são transformados em espetáculos de grande porte por meio de estratégias de marketing. A título de exemplificação, a celebração de um ano da criança envolveu desde o envio de convites para influenciadores até a produção de vídeos com a música-tema da marca, utilizando a ocasião para promoção publicitária nas redes sociais.
Diante desse contexto, surgem questões: trata-se apenas de uma forma de liberdade de expressão dos pais ao divulgarem indiretamente sua marca por meio de seus filhos, ou estamos diante de uma exploração da imagem infantil para fins comerciais?
Essas questões precisam ser analisadas à luz da estrutura tridimensional do direito, que reconhece a influência dos fatos sociais na criação de normas jurídicas por meio de padrões socioculturais. Sob essa perspectiva, filósofos como Norbert Elias e Guy Debord ofereceram contribuições significativas ao examinarem o processo de espetacularização, no qual o indivíduo é reduzido a um objeto de consumo (Abreu, 2018, p. 14).
Na dinâmica da espetacularização, a psicóloga Ceres Araújo destaca a pressão excessiva imposta sobre crianças e adolescentes como uma das principais consequências, de modo que o sensacionalismo em torno dos mais jovens decorre das altas expectativas dos adultos, que idealizam a infância de maneira irrealista, comprometendo o desenvolvimento emocional e psicológico de crianças (Ferraz; Barros, 2024).
Ferraz e Barros (2024) destacam a infância do cantor Michael Jackson que, embora em um contexto parcialmente distinto, ilustra claramente uma vida moldada por interesses externos e de altas expectativas. Isso porque, conforme relatado em diversos artigos, desde os seis anos de idade, o artista foi submetido a uma rotina intensa de shows e sofria punições físicas por parte de seu pai sempre que não atendia às suas exigências.
Atualmente, novos mecanismos jurídicos de proteção aos direitos de crianças e adolescentes mitigam a exploração infantil para fins culturais, embora o desafio contemporâneo recaia sobre o uso da imagem infantil nas mídias sociais.
Se, por um lado, as mídias sociais são vistas como prejudiciais, por outro, Carlsson e Feilitzen (2002, p. 477) reforçam o ideal recomendado pela União Europeia no sentido de que as indústrias de serviços digitais proporcionem benefícios aos menores com medidas positivas para facilitar seu acesso mais amplo a serviços audiovisuais e de informações, ao mesmo tempo em que evitam o conteúdo potencialmente pernicioso, demonstrando que, quando geridas de forma responsável, a presença virtual traz benefícios para o desenvolvimento individual da criança ou adolescente.
A exposição e o contato de menores com as redes de comunicação podem ser positivos, desde que o bem-estar emocional e a privacidade das crianças sejam priorizados, cabendo, assim, aos responsáveis compreender as implicações da superexposição e agir com discernimento.
Dessa forma, a superexposição infantil nas redes sociais é um fenômeno multifacetado que exige reflexão crítica, pois, embora o sharenting possa servir como uma ferramenta útil para conexão e divulgação, também representa sérios riscos à dignidade e à saúde mental de crianças e adolescentes.
3. As Implicações Legais da Superexposição Infantil
O fenômeno multifacetado do sharenting e sua dualidade entre o excesso e o uso moderado possuem implicações jurídicas relevantes, envolvendo preceitos fundamentais, entre os quais se destaca o conflito entre a liberdade de expressão dos pais e os direitos de personalidade da criança, bem como a tensão entre o princípio da não intervenção estatal no âmbito do direito de família e o princípio do melhor interesse do menor.
Tais conflitos demandam que o ordenamento jurídico promova uma criteriosa ponderação de valores e normas, visando equilibrar os interesses em questão com o objetivo essencial de assegurar a proteção do bem-estar, da vida e demais direitos fundamentais.
Ainda que não haja uma regulamentação específica sobre a temática da monetização decorrente da superexposição infantil, o tema apresenta desafios devido à sua complexidade e à relativa novidade no cenário jurídico, de modo que a necessidade de ponderação decorre da análise dos direitos e princípios que orientam todo o ordenamento jurídico.
A ponderação casuística torna-se necessária diante da responsabilidade parental que não está isenta de abusos, uma vez que, como exemplificado ao longo deste artigo, há casos em que pais ou responsáveis ultrapassam os limites socialmente aceitos e afastando-se das finalidades jurídicas inerentes à sua condição parental.
Dessa forma, primeiramente, analisa-se a Constituição Federal, que assegura direitos fundamentais às crianças e adolescentes, como o direito à convivência familiar, a proteção contra o trabalho infantil e, quando permitido, o direito ao trabalho em condições adequadas e protegidas (Sousa; Curvo, 2024, p.15).
Já no âmbito infraconstitucional, Amaral e Machado (2021, p. 26) realçam o Código Civil, em seu artigo 1.634, que dispõe sobre o poder familiar, compreendido como um poder-dever atribuído aos pais, os quais têm a responsabilidade de dirigir a criação e a educação dos filhos, consolidando o princípio da parentalidade responsável, expressamente previsto na Constituição Federal.
O Código Civil também aborda a proteção da imagem e da honra, prevendo, no artigo 20, a responsabilização, mediante indenização, daqueles que, por meio de escritos, palavras, publicações ou uso da imagem, atinjam a honra, boa fama ou respeitabilidade de uma pessoa, especialmente quando esses atos têm fins comerciais (Silva, 2022, p. 36).
Concomitantemente, como instrumento de proteção às crianças e adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069/1990) foi instituído com o objetivo de assegurar seus direitos fundamentais.
Entre outras garantias, o ECA assegura a proteção à privacidade, intimidade e imagem, abrangendo a inviolabilidade da integridade física, moral e psíquica, bem como a preservação da imagem, identidade, autonomia, valores, crenças e espaços pessoais de crianças e adolescentes.
Atrelado a isso, Silva (2022, p. 42) acrescenta que no ambiente virtual a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) reforça a necessidade de salvaguardar os direitos das crianças e adolescentes, determinando que o tratamento de dados pessoais de menores deve sempre observar o princípio do melhor interesse do menor, visando sua segurança e bem-estar.
Portanto, embora não haja uma proibição expressa na legislação sobre a monetização decorrente do uso da imagem infantil nas redes sociais, existem diversas disposições legais que orientam as condutas que pais e responsáveis devem preservar e evitar, prevendo, inclusive, medidas punitivas para situações de abuso ou inadequação.
3.1. A Inatividade dos Sistemas de Justiça
As implicações legais, quando submetidas aos sistemas de justiça, evidenciam a possibilidade da responsabilidade civil dos pais como uma alternativa para a resolução de conflitos judiciais (Silva, 2022, p. 36-40), sendo essencial, para compreender essa questão, destacar que, a proteção dos direitos da criança está diretamente relacionada ao princípio da inércia da jurisdição, segundo o qual um direito não previsto expressamente em lei só será reconhecido e efetivado mediante a provocação das esferas judiciais ou legislativa.
O abuso na livre disposição da imagem, da vida privada, da intimidade e da honra da criança ou do adolescente configura violação de seus direitos da personalidade. O dano moral, nesse contexto, surge como consequência da ofensa aos direitos fundamentais do menor, sendo necessário estabelecer o nexo causal entre a ação praticada e o prejuízo sofrido.[2]
Sob essa emblemática, em 2015, o caso da cantora MC Melody, criada pelo cantor Belinho, ganhou destaque devido à sua superexposição nas redes sociais desde muito jovem, já que a mesma foi incentivada por seus pais a seguir a carreira musical, o que gerou debates sobre os limites da exposição infantil e a responsabilidade dos responsáveis em proteger os direitos da criança (Medeiros, 2019, p. 27-42).
Medeiros (2019, p. 28) menciona que uma série de comentários vexatórios e vídeos com conotação sexualizada surgiu em decorrência da exposição de Melody, ocasionando com que o Ministério Público de São Paulo abrisse um inquérito civil para investigar a situação.
Como solução, foi determinado ao responsável legal que interrompesse a exposição da criança em contextos sexualizados, sem, no entanto, aplicar restrições ou penalidades adicionais, considerando as particularidades do caso (Medeiros, 2018, p. 42).
Ocorre que o caso da cantora Melody foi levado à esfera extrajudicial, rompendo a passividade frequentemente observada no sistema de justiça, embora inúmeros outros casos envolvendo menores permanecem sem qualquer questionamento efetivo.
Pires (2021, p 8) examina a atuação do Conselho Tutelar, regulamentada nos artigos 131 a 140 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), enfatizando seu papel essencial na defesa dos direitos infanto-juvenis, visto que os conselheiros tutelares são agentes fundamentais no acionamento do sistema de proteção, atuando por meio de ofícios encaminhados ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário, o que possibilita a implementação das medidas previstas em lei.
Como um órgão municipal, permanente, autônomo e não jurisdicional, o Conselho Tutelar tem a responsabilidade inicial de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente e intervir sempre que houver indícios de violação desses direitos, principalmente frente a dificuldade de distinção entre a extensão do poder familiar aos malefícios da monetização frente ao uso da imagem infantil nas mídias sociais.
Desse modo, a iniciativa do sistema judicial de justiça e legislativo deve ser compreendida como uma resposta à órgãos como o Conselho Tutelar e entidades como o Ministério Público, sendo importante ressaltar que a atuação desses órgãos extrajudiciais não devem depender da ocorrência de um caso formalmente instaurado para movimentar o sistema judicial, pois esses órgãos devem ser instrumentos que impulsionam a atuação judicial, e até mesmo legislativa, antecipando-se aos problemas e situações que demandam intervenção.
3.2. As Tendências Legais ao Ordenamento Jurídico
A inércia do sistema de justiça, observada nesse material, abrange diversos níveis: desde as entidades representativas, impactadas pela novidade do tema no ordenamento jurídico e pela falta de uma legislação específica, até os próprios internautas que, ao contribuírem para a espetacularização de menores, muitas vezes e de forma inconsciente, acabam reforçando a problemática da superexposição infantil.
Ao seguir, compartilhar e contribuir para a fama dessas crianças, os usuários das redes sociais, muitas vezes de forma inconsciente, intensificam a problemática, evidenciando a ausência de uma reflexão ampla e explícita sobre os impactos e as implicações legais, sociais e éticas da superexposição infantil promovida por pais e responsáveis com fins de monetização, perpetuando, assim, a falta de medidas efetivas para a proteção dos direitos das crianças.
A falta de debates sobre o tema impede o avanço legislativo necessário para o reconhecimento expresso no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, com base em princípios fundamentais, é possível antever as consequências jurídicas da superexposição de crianças e adolescentes, além de estabelecer diretrizes para orientar pais e responsáveis sobre as medidas mais adequadas a serem adotadas.
Segundo Medeiros (2019, p. 24), o empecilho decorre da dificuldade de distinguir a temática da exposição da imagem infantil para fins financeiros quando visto a luz do trabalho artístico, daquela realizada nas redes de comunicação.
Assim, no Brasil, surgem novas tendências legislativas voltadas à proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, como exemplificado pelo Projeto de Lei 2259/22, de Joceval Rodrigues, que estabelece normas para a atuação de influenciadores digitais mirins, definidos como crianças e adolescentes de até 16 anos que possuem seguidores nas redes sociais, com o objetivo de garantir a proteção dos menores, exigindo a anuência dos pais ou responsáveis e assegurando que a atividade de influenciador não interfira na frequência escolar, além de buscar prevenir a exploração econômica das crianças por familiares e resguardar seus direitos de imagem.
Outro exemplo é o Projeto de Lei nº 4776/2023, de Lídice da Mata, que propõe alterações na Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) para regulamentar a publicação e o compartilhamento de imagens e informações pessoais de crianças e adolescentes por seus pais ou responsáveis em plataformas digitais e redes sociais, com o objetivo de garantir o direito à privacidade e ao controle sobre a imagem dos menores, estabelecendo que a publicação de suas imagens só possa ocorrer com o consentimento de ambos os pais ou responsáveis.
A proposta também introduz o "direito ao esquecimento", permitindo que crianças e adolescentes, a partir dos 16 anos, solicitem a remoção de conteúdos prejudiciais nas redes sociais. Além disso, prevê campanhas educativas para conscientizar os pais sobre os riscos da exposição excessiva e a importância da privacidade online, com o intuito de proteger os direitos das crianças no ambiente digital.
Dessa forma, os projetos refletem a crescente preocupação legislativa com a proteção dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital, buscando regulamentar e mitigar os riscos relacionados à exposição excessiva e à exploração da imagem infantil.
4. Considerações Finais
Conclui-se pela pesquisa realizada que o fenômeno da superexposição infantil das redes sociais representa uma complexa interação entre questões econômicas, culturais, éticas e legais, de modo que a transformação da infância em produto para o consumo digital expõe as crianças e adolescentes a riscos que vão desde a violação de sua privacidade e segurança até o comprometimento de seu desenvolvimento emocional.
Embora as redes sociais tenham ampliado as possibilidades de registro de memórias e fortalecimento de laços, é necessário reconhecer que o uso imoderado dessas plataformas pode gerar prejuízos graves, sendo certo que a ausência de regulamentação específica sobre a exposição infantil e a monetização de sua imagem agrava a situação, deixando crianças e adolescentes em uma posição de vulnerabilidade diante de interesses comerciais e sociais.
Sob essa ótica, é natural que surjam novas tendências legislativas que priorizem o melhor interesse da criança, conforme previsto nos preceitos constitucionais e infraconstitucionais, como os Projetos de Lei PL 2259/22 e PL 4776/2023, que, embora representem avanços, enfrentam obstáculos em sua tramitação.
Portanto, as considerações finais a serem feitas envolvem a necessidade de que os setores sociais e as autoridades não apenas reflitam criticamente sobre os perigos da superexposição, mas também atuem para assegurar que as redes sociais se tornem espaços de convivência mais seguros, respeitando a individualidade das crianças, ao mesmo tempo em que preservam suas memórias de forma responsável e ética.
Tal posição contribuiria para que entidades como o Conselho Tutelar passasse a fiscalizar com maior rigor as redes sociais, adotando um olhar mais crítico e analítico sobre a situação.
Além dos aspectos já discutidos, o tema suscita questionamentos relevantes para futuras pesquisas, já que muitos pais pressupõem que, na vida adulta, os filhos não se importarão com a exposição sofrida na infância – uma visão equivocada, pois desconsidera o interesse da criança, abrindo caminho para novas reflexões e estudos.
Surge, então, a temática sobre a viabilidade de se estabelecer uma regulamentação ampla que cubra todos os aspectos da exposição infantil nas redes sociais ou, alternativamente, adotar uma abordagem casuística, considerando cada situação de forma individualizada.
Outra frente relevante de pesquisa emerge em casos de pais divorciados, cujos diferentes entendimentos e práticas em relação ao compartilhamento de informações sobre os filhos exigem estudos aprofundados – não apenas para mediar conflitos, mas para fundamentar políticas públicas que garantam a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital, ampliando assim o debate sobre o tema que vai além do trazido neste artigo.
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[1] Estudante da Graduação em Direito. Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: jessica.hurtado.silva.2003@gmail.com. Apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
[2] BRASIL. Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Art. 12: "Podem se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei." Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 11 de mar. 2025.
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