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Divórcio liminar e julgamento antecipado do mérito: superando barreiras processuais para a efetivação da equidade de gênero
Eduardo Cambi[1]
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 2.189.143/SP (relatado pela Ministra Nancy Andrighi, julgado em 18/03/2025), firmou um importante e inovador precedente ao reconhecer a possibilidade de decretação liminar do divórcio por meio da técnica do julgamento antecipado parcial do mérito, com base na interpretação dos artigos 355 e 356 do Código de Processo Civil.
A decisão consolida a compreensão de que, após a Emenda Constitucional nº 66/2010, o divórcio passou a ser um direito potestativo e incondicionado, bastando a manifestação unilateral de vontade de um dos cônjuges para que o vínculo conjugal seja dissolvido. Por se tratar de um direito de natureza extintiva, não há necessidade de contraditório, instrução probatória ou da concordância da parte contrária.
A decretação do divórcio, nesses termos, pode ocorrer mesmo antes da citação do outro cônjuge, desde que a parte autora apresente a certidão de casamento atualizada e manifeste expressamente sua intenção de romper o vínculo conjugal.
Trata-se de decisão definitiva, proferida em cognição exauriente, que não se sujeita à revisão posterior e que produz efeitos imediatos, afastando qualquer possibilidade de ser tratada como uma medida provisória.
Por essa razão, o STJ afastou a aplicação da tutela de evidência ao divórcio liminar. Embora essa tutela, prevista no artigo 311 do CPC, admita hipóteses de concessão imediata da pretensão quando o direito estiver suficientemente demonstrado, sua natureza é precária e provisória, sujeita à revisão a qualquer tempo. Aplicá-la ao divórcio poderia sugerir equivocadamente a existência de um “divórcio provisório” – figura jurídica inexistente e incompatível com os efeitos definitivos que recaem sobre o estado civil das partes. A adoção dessa via comprometeria a segurança jurídica e a estabilidade das relações familiares.
Diante disso, o tribunal entendeu que a técnica mais adequada para permitir a imediata dissolução do vínculo conjugal, quando requerida liminarmente, é o julgamento antecipado do mérito, em sua modalidade parcial, permitindo a cisão do objeto da demanda. Assim, o pedido de divórcio pode ser julgado de forma autônoma e definitiva, enquanto os demais pedidos cumulados – como partilha de bens, guarda de filhos ou alimentos – seguem para a fase de instrução, caso dependam de produção de provas.
Ao adotar essa compreensão, o STJ reforça a necessidade de uma tutela jurisdicional efetiva e tempestiva, alinhada aos princípios da celeridade e da dignidade da pessoa humana, além de reconhecer que o ônus do tempo do processo não pode recair sobre quem manifesta a vontade de dissolver o casamento.
Trata-se, pois, de um importante avanço jurisprudencial, que privilegia a autonomia da vontade, assegura a eficácia do direito ao divórcio e confere maior racionalidade à atuação judicial nas ações de família.
Além disso, o reconhecimento da possibilidade do divórcio liminar, por meio do julgamento antecipado parcial do mérito, adquire especial relevância quando analisado sob a ótica do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, adotado pela Resolução nº 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esse instrumento orienta o Poder Judiciário a considerar, de forma crítica e ativa, as desigualdades estruturais entre homens e mulheres no julgamento dos casos concretos.
No contexto das ações de divórcio, é comum que mulheres enfrentem relações marcadas por violência, dependência econômica ou pressões sociais que dificultam a ruptura formal do casamento. Ao permitir a decretação imediata do divórcio, sem exigência de contraditório prévio ou citação do réu, o Judiciário contribui para mitigar os efeitos danosos do tempo e rompe com práticas judiciais que, historicamente, submetiam a autonomia da mulher à concordância do cônjuge. Essa abordagem fortalece a proteção da liberdade individual, assegura o direito de não permanecer em uma relação indesejada e evita que o processo judicial se torne um novo espaço de perpetuação da desigualdade de gênero.
Portanto, a possibilidade do divórcio liminar, com julgamento antecipado do mérito, é especialmente relevante à luz do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, pois permite que o Judiciário reconheça e combata desigualdades estruturais que afetam, sobretudo, as mulheres. Ao dispensar a concordância do cônjuge e possibilitar a dissolução imediata do vínculo, a técnica processual do julgamento antecipado do mérito garante maior autonomia, protege contra a revitimização e assegura o direito de não permanecer em relações indesejadas.
[1] Pós-Doutor pela Univesità degli Studi Di Pavia. Doutror e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Associado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Faculdade Assis Guargaz (FAG). Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Vencedor do 2º Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos – categoria Direitos da Pessoa Idosa – do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E-mail:eduardo.cambi@tjpr.jus.br
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