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Negatória de Paternidade e Anulação de Registro Civil: Certezas e Instabilidades
Introdução
Inúmeros são os trabalhos publicados em diferentes revistas científicas nacionais, no início desse século XXI, que enfocam discussões sobre dúvidas referentes à designação da filiação presenciada nos tempos atuais, questão que parece atormentar, constantemente, profissionais que lidam com a matéria. Os autores retratam situações singulares que, com freqüência, remetem operadores do Direito a indagações sobre como identificar a parentalidade e que critérios priorizar - impasses decorrentes das transformações familiares e das múltiplas situações de filiação que se apresentam como fruto das mudanças científicas, sociais e culturais que atravessamos. Ao mesmo tempo, o artigo 1.601 do Código Civil Brasileiro tem suscitado polêmica. Como brilhantemente expôs Vilela (2002) na peça intitulada ‘Artigo 1601’, muitos compreendem que hoje, no Brasil, uma pessoa pode ser surpreendida a qualquer hora com o pedido de destituição da paternidade daquele que, por anos, exerceu essa função, mas, por meio de exame de DNA, comprovou que não possuía identificação genética com quem registrara como filho.
Por longo período, no ocidente, era a partir do casamento que se determinava a filiação. No entanto, na atualidade, multiplicam-se as situações em que aquele que gerou e o que educa e cuida da criança não são os mesmos indivíduos, despertando a dúvida a respeito do "verdadeiro" pai/mãe e seus direitos e deveres no exercício da parentalidade.
A partir da década de 80, a difusão de técnicas de procriação medicamente assistidas, por exemplo, altera os referenciais sobre a concepção da parentalidade, valorizando o aspecto socioafetivo da filiação. Enxergando tal abrangência, o legislador em nosso Código Civil define, pelo art. 1.593, que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem".
No entanto, nos trabalhos desenvolvidos por psicólogos que atuam nas equipes interdisciplinares das Varas de Família têm sido observados, com freqüência, casos nos quais, no decorrer das disputas de guarda e visitação de crianças, a genitora ou outro familiar surpreende o pai da criança com a afirmação de que ele não é o verdadeiro pai, apesar de ter registrado e criado o filho por alguns anos (BRITO e AYRES, 2004). Em conseqüência, inicia-se ação negatória de paternidade cumulada com anulação de registro civil - privativa do pai -, ou ainda ação anulatória de reconhecimento de filiação legítima, impetrada por legítimos interessados, solicitando-se que as partes sejam encaminhadas a exame de DNA para a investigação de paternidade.
Situações semelhantes acontecem quando o homem reconhece como seus os filhos de uma união anterior da esposa e, após rompimento conjugal, encaminha o pedido de desconstituição da paternidade. Nesses procedimentos, a argumentação encontra-se fundada, também, apenas em critérios biológicos, quando a prova genética é equiparada à verdade científica sobre a filiação, desconsiderando-se os laços socioafetivos.
Contrariamente aos exemplos destacados, são comuns, após separações conjugais litigiosas ou conflituosas, ações nas quais o novo companheiro da genitora solicita a adoção do filho desta, alegando ser o pai socioafetivo - situação prevista na doutrina e no ordenamento jurídico como adoção por cônjuge (BRITO e DIUANA, 2002). Justifica-se comumente o pedido alegando-se que o exercício da parentalidade está sendo cumprido por aquele que se ocupa cotidianamente da criança, configurando-se uma paternidade socioafetiva. Nota-se, geralmente, a ocorrência do pedido para a "troca de filiação" quando há razões ligadas a tensões entre os ex-cônjuges ou quando a genitora deseja afastar o ex-marido do convívio com os filhos, buscando a exclusividade parental. Alega-se, para tal, que o "verdadeiro pai" é o que reside com a criança, dispensando-lhe afeto e cuidados diários. Nesses casos, no encaminhamento para a destituição do poder familiar, o argumento de filiação natural, biológica e o fascínio pela técnica científica do DNA, perdem força perante o discurso da paternidade socioafetiva, quando autores e conceitos das Ciências Humanas são constantemente citados. Nesse debate alguns, como Lôbo (2003), advertem: "Uma coisa é vindicar a origem genética, outra, a investigação da paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente da origem biológica ou não." (p.153)
Muito embora nossa Constituição Federal já tenha previsto a igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva, quando o parágrafo 6◦ do art. 227 dispõe: "Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação", percebe-se que a igualdade jurídica entre as distintas filiações não parece suficiente para garantir a convivência entre pais e filhos. Como expõe Fachin (1996, p.33): "O princípio da igualdade da filiação carrega ao seu lado outro de igual importância: o da busca da paternidade verdadeira. Mas, qual será a verdadeira paternidade?"
Nesse debate nota-se que, enquanto as Ciências Humanas têm empreendido estudos visando a esclarecer o significado da paternidade e dos vínculos de filiação no desenvolvimento do ser humano, as Ciências Jurídicas voltam sua preocupação para os critérios a serem usados na definição da filiação e dos direitos sobre o exercício da parentalidade, uma conjunção de esforços na busca de respostas. Compreende-se, ainda, que as disposições legais podem trazer repercussões ao exercício da parentalidade, acarretando prejuízos na preservação dos vínculos de filiação. Como reconhece Barboza (2002, p.379):
A possibilidade de determinação do vínculo biológico de paternidade através do exame de DNA se, por um lado, veio a pôr fim a tão antiga angústia, por outro, trouxe questionamentos de diferentes ordens, notadamente jurídicos, na medida em que cabe à lei estabelecer as regras que disciplinam as relações familiares em seus aspectos pessoais e patrimoniais, quer entre os membros de uma família, quer desses em face da sociedade.
Os impasses presenciados, na atualidade, no tocante à designação dos vínculos de filiação, vêm sendo apontados, também, por profissionais estrangeiros. A magistrada francesa Marie-Christine George (1998) esclarece que nos tribunais de seu país há um considerável aumento dos pedidos de destituição da autoridade parental e contestações da paternidade. Para a citada juíza, muitos desses processos acarretam o que qualifica como uma "violência subjetiva" (p.28) contra a criança, mesmo que não seja essa a intenção dos que a cometem. Chama a atenção ainda para a responsabilidade do Estado quanto à preservação dos vínculos de filiação.
Trata-se, portanto, de tema interdisciplinar que emerge na contemporaneidade, e que reenvia ao significado da paternidade, motivo pelo qual se acredita na pertinência e importância da interlocução entre distintos campos de conhecimento no exame da questão, visando ao aprofundamento crítico da matéria.
Como muitos parecem ser os embaraços e polêmicas evidenciados no que concerne à determinação da filiação e ao exercício da parentalidade, optou-se por realizar pesquisa sobre o tema, partindo-se de levantamento junto à jurisprudência prolatada por alguns tribunais do país. Nesse percurso, argumenta-se sobre discursos que vêm sendo utilizados para se desconstituir paternidades. Há prevalência do critério socioafetivo ou do biológico? Considera-se, na atualidade, que a paternidade biológica e a paternidade legal se equivalem? Há tendência de alguns tribunais quanto ao critério que define a paternidade? Será que, em um período histórico no qual as relações afetivas parecem fluidas, passageiras, ou líquidas, como conceitua Bauman (2004), as filiações seriam também voláteis, incertas? Como falar de direito de convivência familiar quando a própria família parece ser incerta?
Partindo-se de levantamento realizado na jurisprudência formulada por alguns de nossos tribunais, tem-se como objetivo, no artigo em questão, apresentar e discutir conceitos e argumentações que vêm fundamentando julgamentos referentes a ações de negatória de paternidade.
1 Discussões sobre a parentalidade
No estudo do tema, diversos pesquisadores explicam que a parentalidade deve ser analisada a partir de seus três componentes, que Thèry (2002) classifica como biológico, doméstico e genealógico. Enquanto o pai biológico é o genitor, o doméstico é o que cria, que reside com a criança, sendo o genealógico aquele designado pela norma legal, que inscreve o sujeito no sistema simbólico da parentalidade (p. 213). De grande valia, os estudos antropológicos apontam os conceitos de família, filiação e parentalidade como criações humanas, contrariando a idéia da concepção destes como fenômenos naturais. Sustentam, assim, que a designação dos pais é dada pela cultura, quando as montagens normativas de cada sociedade instituem o sujeito na corrente genealógica, definindo o lugar de cada um, operação fundamental à diferenciação do ser humano e ao entendimento dos direitos, deveres e interditos. Em nossa sociedade, é por intermédio do assentamento no registro civil que se expressa o vínculo de filiação, quando se institui às crianças o lugar de filhos e aos devidos familiares os lugares de pais e avós, estabelecendo-se, dessa maneira, o princípio genealógico. Como explica Legendre (1996, p.9): "(...) a genealogia não aponta só para o conjunto das realidades biológicas, mas para o conjunto dos sistemas institucionais fabricados pela humanidade para sobreviver e difundir-se." Nesse sentido, a definição abrange mais do que o vínculo pessoal entre pai e filho, pois situa cada um como elo da corrente genealógica.
Na análise da matéria, explica Thèry (2002, p.213) que, isoladamente, o componente biológico e o socioafetivo - classificado preferencialmente pela autora como "doméstico" - não designam a filiação. É o Estado, por meio de sua legislação - a qual o Direito é responsável por aplicar - que se encarrega de regulamentar as regras sobre a filiação e o exercício da parentalidade. Conforme esclarece Legendre (1996), tais regras são de ordem pública - logo, esta é uma questão que não pode ser tratada apenas no âmbito privado, ou ainda submetida a incertezas constantes. Para o autor, quando alguém é delegado pelo Estado para representar um lugar, esta designação reúne tanto significados psicológicos quanto jurídicos, reconhecendo que o princípio genealógico é, em última instância, um princípio jurídico.
Meulders-Klein (2001, p. 32) recorda que "o Direito Civil possui as chaves de individualização da pessoa", pois ele define "quem é quem", ou seja, os lugares, papéis e as identidades de cada um. Interpretar tais dilemas como uma questão particular soa como inadequado, na medida em que atravessamos um momento histórico que traz exigências de modificações no Direito de Família, quando as alterações observadas no domínio do casal, da família e da filiação devem ser entendidas em sua conjugação.
Alguns autores (HURSTEL, 1989; THÉRY, 1998) apontam que a indefinição e o uso concomitante de múltiplos critérios para a designação da paternidade podem fragilizá-la. Na visão de Meulders-Klein (2001, p.34), por exemplo, o lugar do pai na atualidade aparece instável em três níveis: na procriação, no estabelecimento da filiação e no exercício da autoridade ou responsabilidade parental. Na procriação, com o desenvolvimento de técnicas contraceptivas é cada vez mais freqüente que a decisão de engravidar seja da mulher. No estabelecimento da filiação, como se vem discutindo, a designação da paternidade a partir do casamento torna-se cada vez mais instável. Quanto ao exercício da autoridade parental, a exemplo do que ocorre no Brasil com o poder parental, apesar deste ser dividido entre pai e mãe, quando há uma separação conjugal a responsabilização maior é das mães, a quem se atribui, comumente, a guarda da criança.
Fonseca (2004), analisando a demanda de homens que se dirigem às diversas instâncias jurídicas em Porto Alegre para solucionar questões referentes à identidade paterna, notou que muitos iniciam o processo judicial com o intuito apenas de tirar dúvida a respeito da paternidade que estabeleceram. Nesse trabalho, constatou a autora que "longe de inspirar maior tranqüilidade, a simples existência do teste [de DNA] atiça as dúvidas" (p.13).
Hoje, se o relacionamento conjugal soa como frágil, passageiro, as relações parentais precisam ser garantidas a longo prazo. Contrapondo-se à instabilidade dos vínculos conjugais, os vínculos de filiação devem continuar assegurados e estáveis. Sustenta Thèry (1998, p.172) que pensar no interesse da criança é pensar no direito a uma filiação estabelecida e estável. No trabalho que realizou, a pedido do governo francês, a autora sugere que, visando à estabilidade dos vínculos de filiação, os prazos para a contestação de paternidade sejam reduzidos, restringindo-se, também, o reconhecimento daqueles que podem ser titulares dessa modalidade de ação.
2 Encontros e desencontros definidos pela jurisprudência
Na pesquisa que vem sendo realizada, houve, inicialmente, um levantamento de jurisprudência referente à ação negatória de paternidade publicada nas páginas eletrônicas de Tribunais de alguns dos estados da Federação após a promulgação do Código Civil de 2002.
Nessa etapa do trabalho, teve-se como objetivo circunscrever os principais argumentos dispostos nas justificativas aventadas para a desconstituição ou não da paternidade. O material coletado foi submetido à análise de conteúdo, com unidade de registro focada no tema empregado.
Essas unidades se referem aos elementos obtidos através da decomposição do conjunto da mensagem. Podemos utilizar a palavra como uma unidade, trabalhando com todas as palavras de um texto ou com apenas algumas que são destacadas de acordo com a finalidade do estudo. A frase ou a oração também são outros elementos de unidade de registro. Outra unidade é o tema que se refere a uma unidade em torno da qual tiramos uma conclusão. (GOMES, 1998, p.75).
Considera-se como de fundamental importância o delineamento desses dados que podem contribuir para esclarecer os principais conceitos que vêm fundamentando sentenças referentes à designação e à destituição da paternidade. Como argumenta Bruel (1998), hoje se reconhece a importância de coerência nessa palavra coletiva.
Pesquisando ementas de jurisprudência referente a ações de negatória de paternidade, notou-se clara distinção quanto aos critérios utilizados por tribunais de diferentes estados na análise da questão. No exame da matéria é possível identificar, com nitidez, a tendência de algumas Cortes para a determinação da paternidade por intermédio do critério biológico. Dessa forma, a desconstituição da paternidade vem sendo aceita nas referidas ações com fundamento, principalmente, nos argumentos listados a seguir, presentes em diversos acórdãos: "deve ser estabelecida a verdade real", "registros de nascimento devem retratar a realidade biológica", "deve prevalecer a realidade biológica", "exclusão da paternidade pelo exame de DNA".
Os que compartilham essa visão consideram possível, também, desconstituir o vínculo parental quando o pai registral assumiu livremente esse compromisso, relatando-se, nos pronunciamentos jurisprudenciais, a ocorrência de "falsa declaração" daquele que registrou a criança e "erro que se evidencia de forma absolutamente induvidosa devido ao resultado do exame de DNA". Como exemplo, destaca-se:
AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - EXAME DE DNA - PROCEDÊNCIA DO PEDI- DO - REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO - RETIFICAÇÃO. Ação negatória de paternidade. Prova irrefutável da veracidade da negativa da paternidade. Cancelamento de registro de nascimento. O sistema de registro público adotado no Brasil é regido pelo princípio da veracidade, pelo que todos os assentos efetivados nos cartórios do registro civil das pessoas naturais devem ser fiéis à realidade fática. No caso dos registros de nascimento, os assentos devem retratar a realidade biológica. Prova inquestionável da falsidade do registro de nascimento da menor. Sentença fiel à realidade dos fatos. Desconstituição do registro de paternidade. Solução jurídica sustentada por diversos precedentes desta Corte de Justiça. Improvimento do recurso. (TJRJ- 2005.001.17670 - Apelação Cível - Des. Edson Vasconcelos - Julgamento: 08/09/2005 - DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL)
AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - AÇÃO DE NULIDADE DE REGISTRO DE FILHO - EXAME DE DNA NEGATIVO - INSCRIÇÃO NO REGISTRO CIVIL - IRRELEVÂNCIA.Ação negatória de paternidade - Exclusão da paternidade - Exame de DNA - Irrelevância do reconhecimento da paternidade - Excluída a paternidade, por via do exame de DNA, não tem qualquer relevo o fato de ter o suposto pai registrado como seu filho o Autor. Impõe-se a concessão de gratuidade de justiça ao Réu, em face da afirmação de pobreza feita nos autos. Decisão parcialmente reformada. (TJRJ- 2003.001.33357 - Apelação Cível - Des. Jair Pontes de Almeida - Julgamento: 24/08/2004 - QUARTA CÂMARA CÍVEL)
Em contrapartida, encontraram-se Tribunais onde predomina jurisprudência com assento nos vínculos socioafetivos da paternidade, sendo negadas, peremptoriamente, ações que visam a desconstituir paternidades entendidas como estabelecidas. Nesses casos, foi observado que os argumentos mais empregados na jurisprudência são: "verificação de paternidade socioafetiva", "comprovação de estado de filho", "inexistência de vício de consentimento no ato registral", "o reconhecimento espontâneo da paternidade é irrevogável", "vínculos parentais se definem mais pela verdade social do que pela realidade biológica", "situação semelhante à adoção à brasileira", necessidade de se "perquirir acerca da existência de vínculo afetivo".
Destacam-se, abaixo, alguns exemplos coletados:
APELAÇÃO CÍVEL - FAMÍLIA - NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. Em que pese o exame pericial (DNA) seja conclusivo quanto à exclusão da paternidade, mister ressaltar que os vínculos parentais se definem muito mais pela verdade social do que pela realidade biológica. Para alcançar o pleito anulatório imperioso a demonstração de vício de consentimento, o que não se verifica na hipótese. Preliminares rejeitadas. Apelação provida em parte. (TJRGS - 70012438511 - Des. Walda Maria Melo Pierro - Julgamento: 15/12/2005)
APELAÇÃO CÍVEL - NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - ADOÇÃO À BRASILEIRA - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Ainda que o exame de DNA aponte pela exclusão da paternidade do pai registral, fato, de resto, confirmado pelo próprio réu/filho, mantém-se a improcedência da ação negatória de paternidade, se configurada nos autos a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva. Precedentes. Apelação desprovida. (TJRGS - 70014089635 - Relator: José Ataídes Siqueira Trindade - Julgamento: 16/03/2006)
Observou-se, portanto, que algumas de nossas Cortes firmam posição de que o reconhecimento jurídico da paternidade tem como fundamento o critério socioafetivo, concluindo que os vínculos parentais se definem mais pela verdade social do que pela realidade biológica. Outras, no entanto, reconhecem pacificamente o estabelecimento jurídico da paternidade exclusivamente pelo critério biológico, considerando que os vínculos parentais são definidos mediante a realidade biológica. Para os do primeiro grupo, comprovado o estado de filho, a situação pode ser considerada como semelhante à adoção à brasileira, sendo o reconhecimento espontâneo da paternidade irrevogável, inexistindo, nesses casos, vício de consentimento no ato registral. Na dúvida, julgam que se deve perquirir acerca da existência de vínculo afetivo.
Os tribunais que firmam tendência pela exclusão da paternidade quando o exame de DNA não apresenta compatibilidade genética julgam que os registros de nascimento devem retratar a realidade biológica, estabelecendo a verdade real sobre a paternidade. Consideram, nesses casos, que o reconhecimento espontâneo foi baseado em falsa declaração e que a evolução da engenharia genética não deixa dúvidas à questão.
No quadro abaixo, são sintetizados os dados expostos acima.
Critério socioafetivo | Critério biológico |
Vínculos parentais se definem mais pela realidade social do que pela realidade biológica. | Deve prevalecer a realidade biológica. |
Há comprovação de estado de filho. | Excluída a paternidade por exame de DNA, deve ser estabelecida a verdade real. |
Situação semelhante à adoção à brasileira. | Erro que se evidencia pelo exame de DNA. |
Reconhecimento espontâneo da paternidade é irrevogável. | Registros de nascimento devem retratar a realidade biológica. |
Inexistência de vício de consentimento no ato registral. | Falsa declaração no registro. |
Notou-se, ainda, que nos tribunais onde há pacífica tendência pela definição da paternidade por critérios biológicos, desconstitui-se com mais freqüência paternidades do que nos tribunais que privilegiam vínculos socioafetivos. Dessa maneira, constata-se que, se a nova tecnologia possibilita - por meio da investigação de paternidade - acrescentar o nome do pai em registros de crianças antes vistas como filhos de pais desconhecidos, o uso exclusivo do critério biológico para desconstituir paternidades facilita aqueles que sempre conheceram o pai a passarem, agora, a ser filhos de um pai que lhes é desconhecido.
Encontrou-se, também, em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entendimento de que o cancelamento do registro civil é "efeito lógico e jurídico da sentença de procedência da investigação", ex-officio. Quanto a este ponto, recorda-se, aqui, o estudo de Fonseca (2004), quando foi observado pela autora que a dúvida sobre a paternidade - e não necessariamente a vontade de desconstituí-la - é o fato que impulsiona muitos processos. Acredita-se, assim, que esse seja um dos motivos pelo qual se possa justificar a inexistência do pedido de cancelamento do registro civil em alguns processos dessa ordem.
Observando-se a distinção de conceitos que vem sendo empregada para a definição da paternidade, recorda-se George (1998) quando a autora sustenta que a divergência jurisprudencial, nesses casos, pode conduzir ao que classifica como "modos de destruição da filiação", quando se trata de dizer a uma criança "que ela não é mais nada para aquele que, um dia, se disse seu pai e que ele não é nada dela" (p.27).
Da mesma forma, compreende-se que o simples fato de se ajuizar ação de tal amplitude pode acarretar sensível sofrimento à criança, que participará de exames periciais nas quais será avaliado se é filha de seu pai, neta de seu avô e prima de seus primos, ou ainda, quem sabe, por meio de uma gota de sangue terá uma de suas linhagens modificada. Além disso, no curso do processo atravessará longo período de incerteza quanto à sua filiação e, em última instância, sobre sua identidade.
Conforme atesta Segalen (2002): "as recusas de paternidade são particularmente mutilantes para a identidade dos indivíduos, e as disposições legislativas conduzem, por vezes, a sórdidas tramas." (p. 65)
Considerações finais
Ao transitar pela jurisprudência de vários Tribunais do país, notou-se que a paisagem reveladora de argumentos e conceitos que definem a paternidade se altera radicalmente nos distintos Tribunais, firmando-se posições paradoxais no que tange às ações de negatória de paternidade. Mantêm-se, dessa forma, constantes incertezas, tão condenadas por diversos pesquisadores, sobre o instituto da filiação - incertezas que parecem revelar a instabilidade quanto ao princípio genealógico do instituto. No estudo da questão, pode-se compreender que os prejuízos ao desenvolvimento e à estabilidade emocional dos sujeitos, especialmente de crianças e adolescentes, seriam gerados não pelo simples fato de observarem comportamentos ou regras diferenciadas nas residências do pai e da mãe, se for este o caso, mas na insegurança que se instala pela incerteza ou ambivalência das normas culturais, no que diz respeito à matéria.
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Leila Maria Torraca de Brito é prof. adj. do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre e doutora em Psicologia, pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. |
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