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O Constitucionalismo Multinível Feminista e o Tempo de Cuidado como Critério para a Fixação dos Alimentos
O Constitucionalismo Multinível Feminista e o Tempo de Cuidado como Critério para a Fixação dos Alimentos
Texto adaptado a partir do artigo Constitucionalismo Feminista Multinível: Julgamento Com Perspectiva De Gênero No Direito Das Famílias (publicado na Revista IBDFAM, vol. 68).
Eduardo Cambi
Pós-Doutor pela Università degli Studi di Pavia (Itália). Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Programa de Pós-Graduação (Doutorado e Mestrado) na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), no Centro Universitário Fundação Assis Gurgaz (FAG) e na Faculdade Pan-Americana (FAPAD). Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR). Presidente do Instituto Paranaense de Direito Processual. Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas.
Letícia de Andrade Porto Nosaki
Doutoranda e Mestra em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Constitucional pela ABDCONST e FEMPAR/PR. Chefe de Gabinete de Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
O presente resumo foi extraído a partir do artigo “Constitucionalismo Feminista Multinível: Julgamento Com Perspectiva De Gênero No Direito Das Famílias”, o qual propõe uma abordagem crítica ao Direito das Famílias a partir do constitucionalismo feminista multinível, com especial atenção ao tempo de cuidado como critério jurídico relevante para a fixação da pensão alimentícia. A partir da valorização do trabalho doméstico não remunerado, busca-se promover a equidade de gênero e combater as desigualdades estruturais que afetam as mulheres no contexto familiar e jurídico.
O constitucionalismo feminista multinível articula normas constitucionais e internacionais de direitos humanos para promover uma hermenêutica jurídica transformadora. No contexto do Direito das Famílias, essa abordagem é fundamental para enfrentar as desigualdades de gênero que persistem na divisão sexual do trabalho e na invisibilização do cuidado como atividade jurídica relevante. O tempo de cuidado — compreendido como o período dedicado ao trabalho doméstico e à atenção a filhos, idosos e pessoas com deficiência — é central na discussão sobre equidade de gênero. Tradicionalmente atribuído às mulheres, esse trabalho não é remunerado e é invisibilizado, constituindo uma forma de colaboração indireta para o sucesso profissional do cônjuge provedor.
A jurisprudência recente tem reconhecido esse tempo como fator relevante na fixação da pensão alimentícia para filhos menores, considerando-o na equação do trinômio alimentar (necessidade, possibilidade e proporcionalidade). Também, leva-se em conta na concessão de alimentos à ex-cônjuge ou convivente, especialmente quando há renúncia à qualificação profissional e à autonomia financeira em prol da família.
Nesse sentido, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Paraná tem asseverado:
“Para a fixação dos alimentos, deve ser considerado não apenas o trinômio alimentar (necessidade-possibilidade-probabilidade), mas também o tempo e os cuidados efetivamente dedicados à criação, educação e bem-estar dos filhos, reconhecendo-se o valor social e econômico do trabalho doméstico e familiar de cuidado – normalmente, não valorizado, invisibilizado, não remunerado e com impactos desproporcionais às mulheres (sobrecarregadas com duplas ou triplas jornadas de trabalho) - porque é indispensável à promoção e à manutenção da vida digna, bem como à efetivação de outros direitos humanos fundamentais inter-relacionados (como saúde, educação, trabalho e moradia)” (TJPR - 12ª Câmara Cível - 0028583-03.2025.8.16.0000 - Cascavel - Rel.: Desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi - J. 06.08.2025).
O Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), orienta magistradas e magistrados a reconhecerem o tempo de cuidado como fator de vulnerabilidade econômica e social. Decisões do Tribunal de Justiça do Paraná têm aplicado o Protocolo para valorizar o trabalho doméstico e garantir alimentos à mulher que se dedicou exclusivamente à família. Essas decisões reforçam que a divisão sexual do trabalho não pode ser naturalizada, e que o tempo de cuidado deve ser considerado na fixação dos alimentos, tanto para filhos quanto para ex-cônjuges. A neutralidade jurídica, nesse contexto, pode perpetuar desigualdades e deve ser substituída por uma hermenêutica crítica e emancipatória.
Autoras como Nancy Fraser, Simone de Beauvoir e Silvia Federici fundamentam a crítica à invisibilização do cuidado. Fraser propõe uma justiça social bidimensional, que combine a redistribuição econômica e o reconhecimento cultural. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) também reconhece a importância social da maternidade e do cuidado, exigindo medidas jurídicas para sua proteção. O constitucionalismo feminista multinível oferece uma lente crítica para a interpretação do Direito das Famílias, permitindo que o Poder Judiciário reconheça o tempo de cuidado como critério legítimo na fixação dos alimentos. Ao valorizar o trabalho doméstico não remunerado, rompe-se com o paradigma androcêntrico e promove-se a emancipação econômica e social das mulheres.
A aplicação dessa perspectiva contribui para a construção de uma nova epistemologia jurídica, que reconhece as mulheres como sujeitos de direitos e combate às violências estruturais causadas pelo patriarcado, sexismo e misoginia. O tempo de cuidado, portanto, não é apenas uma questão doméstica, mas um elemento central na luta por justiça e equidade de gênero.
Aliás, recentemente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva nº 31/2025, constatou que “o cuidado de pessoas não é apenas necessário para garantir direitos humanos, mas também tem sido objeto de preocupação quanto à sua distribuição desigual. Em particular, tem-se advertido sobre uma sobrecarga estrutural de trabalho de cuidado sobre as mulheres, o que gera impactos negativos na efetivação de seus direitos” (Par. 99).
Do mesmo modo, o Congresso Nacional discute o tema no PLC 2193/2025, que sugere a alteração de dois dispositivos do Código Civil: a) Art. 1.694, §3º: “Para fins de fixação dos alimentos, serão considerados não apenas os recursos financeiros de que dispõem as partes, mas também o tempo e os cuidados efetivamente dedicados à criação, educação e bem-estar dos filhos, reconhecendo-se o valor social e econômico do trabalho de cuidado.”; b) Artigo 1.703, par. Ún.: “Parágrafo único. Na fixação dos alimentos devidos a filhos menores, serão considerados, além dos recursos de cada genitor, os cuidados efetivos e contínuos prestados por aquele que se dedica diretamente à criação, educação e bem-estar da criança ou adolescente.” Tais propostas, ao nosso ver, deveriam ser incorporadas no PL 4/2025 de Reforma do Código Civil brasileiro.
Afinal, a proteção da equidade de gênero, pela aplicação humanista do Direito das Famílias na dimensão do constitucionalismo feminista multinível, é um dos desafios atuais da hermenêutica jurídica. O combate às injustiças sociais exige sensibilidade com as situações de vulnerabilidade, comprometimento com as transformações sociais e engajamento com a superação dos mecanismos hegemônicos de opressão que causam os sofrimentos humanos.
Por isso, a jurisprudência do TJ/PR — em sintonia com o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça e o reconhecimento do direito humano ao cuidado como um direito autônomo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos — tem atribuído maior relevância ao trabalho doméstico e de cuidado exercido pela mulher, considerando-o como um dos critérios para a fixação dos alimentos. Nesse contexto, em meio aos debates sobre o aprimoramento do Código Civil de 2002, é imprescindível que esse tema seja cuidadosamente analisado pela comunidade jurídica brasileira.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021.
CAMBI, Eduardo. Direito das famílias com perspectiva de gênero. Aplicação do Protocolo de Julgamento do Conselho Nacional de Justiça (Recomendação n. 128/2022 e Resolução n. 492/2023). Belo Horizonte: Foco, 2024.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação privatista. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.
FRASER, Nancy. La justicia social en la era de la política de la identidad: redistribución, reconocimiento y participación. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madrid: Morata, 2006.
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