Artigos
A “morte de saudade” subsequente ao luto
Jones Figueirêdo Alves
Quem morre logo após a perda da pessoa amada, recusa a separação e faz um reencontro antecipado, abatido pela “morte de saudade”. É a consequência extrema do luto, essa morte subsequente, somente explicada pelos céus porquanto ditada por afeições transcendentes.
Aconteceu recentemente envolvendo os pais de dois queridos amigos, Alexandre e André de Paula, com a diferença de vinte e um dias. Estas nossas reflexões os homenageiam.
O período “entre o luto e a morte imediata subsequente” coloca em foco um intervalo que, paradoxalmente, quase não existe: um tempo emocional tão breve que parece um só acontecimento, a perda e o perecimento. Quando a morte de alguém amado é seguida, em pouco tempo, pela morte de quem sobreviveu, o luto não chega a cumprir seu ciclo. Segundo Freud (“Luto e Melancolia”), o luto é um “trabalho psíquico” que exige uma lenta desvinculação. Na morte imediata subsequente, esse processo é interrompido no início; o vínculo não se dissolve; ele leva o sobrevivente junto.
Para muitos que amam, o sentido de vida está intrinsecamente ligado ao outro. E quando o “outro” morre, há um colapso existencial imediato: perde-se o “para quem” viver. Em casos de longas uniões, essa interdependência psíquica e emocional torna a ausência intolerável. Não é apenas dor, é o fim da estrutura simbólica que sustentava o “Eu”.
Poeticamente, dir-se-á que se trata da vitória do vínculo sobre a própria finitude individual.
Em uma dimensão filosófica, Emmanuel Levinas expressa que a morte do outro é já uma ferida ontológica. É como se parte de nós fosse subtraída, deixando- nos incompletos. Assim, refere que na morte imediata subsequente, essa incompletude se torna intolerável. A recusa de viver sem o outro se inscreve como um ato extremo de fidelidade.
Nessa perspectiva levinasiana, a morte do outro é também um golpe na nossa própria identidade, porque parte de quem somos estava ancorada nesse vínculo. Em uma dimensão psíquica, o vínculo afetivo profundo sustenta funções vitais. E quando ele se rompe há um colapso do sentido existencial (a vida deixa de ter “para quem” ou “por que” continuar).
Estudos médicos de casos científicos, divulgados em “The Lancet” e “New England Journal of Medicine” registram a denominada “síndrome do coração partido” (“Cardiomiopatia de Takotsubo”), estudada pela primeira vez, em 1990, por pesquisadores japoneses. Síndrome com suas consequências fatais pelo estresse extremo, onde cerca de 10% dos pacientes por ela acometidos podem vir a falecer.
A lenda medieval celta de Tristão e Isolda, oferece-nos a configuração da pessoa completamente abandonada a si mesma, no confronto entre o espírito e a dor, quando Tristão morre de desgosto por acreditar que Isolda não viria e ela chegando tarde, ao vê-o morto, cai sobre ele, morrendo também. A morte de um que precipita a do outro em um ato súbito ou em pouco tempo, tornou-se um símbolo eterno da união absoluta, como magistralmente ilustrou William Shakespeare, em sua obra “Romeu e Julieta”.
Na vida real, retrata-se a história de amor vivida no século XII, entre o teólogo francês Pierre Abelard (1079-1142) e a jovem Héloïse, em dizer de um amor invencível. O filme “Em nome de Deus” “(Stealing Heaven), do diretor Cliuve Donner (1988) reforçou o significado crucial dessa invocação.
Interessa aqui referir àquelas uniões onde o amor não pereceu, triunfando sobre a morte, com registros célebres.
Clive Staples Lewis, conhecido como C. S. Lewis (1898-1963), um dos maiores pensadores cristãos do século XX, gravemente doente, sobreviveu por pouco tempo, após perder sua esposa.
George H. W. Bush (1924–2018) e Barbara Bush (1925–2018) formaram um casal histórico que desempenhou papéis importantes na política americana. George H.W. Bush foi o 41º Presidente dos Estados Unidos, servindo de 1989 a 1993. Barbara morreu em 17 de abril de 2018, aos 92 anos; George faleceu 7 meses depois, aos 94, em 30 de novembro, após insistir que “não queria viver sem ela”.
Johnny Cash (1932–2003) e June Carter Cash (1929–2003). um casal icônico da música country americana, também tiveram mortes próximas. Johnny, cantor, compositor e ator, famoso por suas canções que abordavam temas como tristeza, redenção e moralidade. Ela, June Carter Cash, além de cantora, também era compositora, atriz e comediante. Eles foram casados por 35 anos e seu relacionamento inspirou o filme "Johnny & June" de 2005. June morreu em 15 de maio de 2003. Johnny, debilitado e profundamente abatido, morreu apenas 4 meses depois, em 12 de setembro.
“O luto não se resume à perda da pessoa amada, é uma espécie de paradigma genérico para pensar os destinos para a experiência humana da perda”, diz-nos o psicanalista Christian Ingo Lenz Dunker, em “Lutos Finitos e Infinitos” (Ed. Planeta, 2023). Embora a expressão "morrer de saudade" não seja uma causa médica de morte reconhecida, ela reflete a experiência do luto.
A saudade pode agravar condições de saúde preexistentes, mas em todos os casos, morrer de saudade não é um recurso meramente poético. Acontece pela perda de sentido existencial, quando a morte do outro torna-se um princípio de dissolução das razões de vida para quem sobreviveu e rendido à intensa memória afetiva não supera ao luto. Nesse inventário de dor e perda, não sobrevive o inventariante.
Jones Figueirêdo Alves é
Desembargador Emérito do TJPE. Advogado e parecerista
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM