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A Homologação de Sentença Estrangeira de Alteração Integral do Nome: Identidade, Autonomia e Limites da Ordem Pública
O nome é um atributo vivo da personalidade!
Márcia Fidelis
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (HDE 7091 – Julgada em 09/04/2025), que homologou sentença estrangeira autorizando brasileiro a modificar integralmente o seu nome — inclusive com a retirada dos sobrenomes — reacende o debate sobre os contornos jurídicos do direito ao nome no Brasil, sua proteção normativa e a compatibilidade com valores constitucionais.
O nome é atributo essencial da personalidade, garantido pelo artigo 16 do Código Civil e reconhecido como direito da personalidade (arts. 11 a 21, CC/2002).
Tradicionalmente, o ordenamento jurídico brasileiro sempre tratou o nome como elemento indisponível, sujeito a regras rígidas quanto à sua alteração. A Constituição de 1988 foi um paradigma importante para sua evolução conceitual, à medida em que colocou a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e a identidade no centro da tutela jurídica.
Com o advento da Lei nº 14.382/2022, que alterou a Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) no que se refere ao nome, foram largamente ampliadas as possibilidades de alteração de prenome e de sobrenome, com procedimentos que podem tramitar exclusivamente no cartório de registro civil, sem necessidade de processo judicial, reconhecendo a autonomia privada como instrumento de autorrealização do indivíduo.
Nesse cenário, a decisão do STJ reveste-se de importância singular. Ao homologar a sentença estrangeira, a Corte reafirmou dois pontos essenciais do Direito Internacional Privado brasileiro:
- Competência do STJ para homologação de sentenças estrangeiras (art. 105, I, “i”, CF/88), exercida desde que atendidos os requisitos essenciais no que se refere à autenticidade do documento e respeito à ordem pública;
- Noção restrita de ordem pública, que não se confunde com mera divergência legislativa. A homologação só seria recusada se a decisão estrangeira afrontasse princípios fundamentais do ordenamento jurídico, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade ou a segurança jurídica.
No caso, o STJ entendeu que a retirada dos sobrenomes não violou a ordem pública, mas sim representou um exercício legítimo da autonomia individual, em harmonia com o movimento legislativo nacional de maior abertura às escolhas identitárias. Houvesse, por exemplo, risco de fraude, prejuízo a terceiros ou apagamento artificial de vínculos familiares para escapar de obrigações jurídicas, a homologação poderia ter sido recusada.
A decisão é um precedente relevante no que se refere à projeção de seus efeitos concretos sobre o registro civil brasileiro. Uma vez homologada, a sentença estrangeira é título hábil para averbação no assento de nascimento do interessado, produzindo plenos efeitos no Brasil. Isso reforça o papel do registro civil como guardião da segurança documental, mas também como espaço de realização dos direitos da personalidade, em diálogo com práticas internacionais.
Essa discussão, contudo, não se resume à decisão do STJ. Ela revela uma evolução histórica no modo como o direito brasileiro compreende o nome. Tradicionalmente, o nome era considerado imutável, um atributo fixo, que acompanharia o indivíduo por toda a vida. Assim estava disposto na redação original do art. 58 da Lei de Registros Públicos, alterado em 1998 pela Lei 9.708/1998 que passou a qualificar o prenome como definitivo, e não mais imutável. A alteração do termo não foi meramente semântica: abriu espaço para hipóteses restritas, de mutabilidade motivada, situações em que razões jurídicas, familiares ou sociais justificavam a mudança no nome.
Com o avanço tecnológico — interconexão de bancos de dados, unificação de cadastros, maior capacidade de armazenamento e segurança de informações — a função pública do nome como elemento primário de individualização do cidadão abriu maior espaço para sua função privada. Hoje, a identificação oficial pode ser viabilizada sobretudo pelo Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), número nacional único e permanente, que garante segurança jurídica mesmo diante de alterações radicais do nome.
Nesse novo cenário, o advento da Lei nº 14.382/2022, que alterou a Lei de Registros Públicos nos conduz à fase da mutabilidade imotivada do nome, fundada exclusivamente na autonomia da pessoa em escolher a forma como deseja ser identificada. No caso homologado pelo STJ, esse foi o núcleo decisivo: a prevalência do nome enquanto atributo da personalidade, expressão do direito à liberdade, da autonomia existencial e do projeto de vida de cada cidadão.
Assim, a decisão projeta para o direito registral brasileiro uma mudança de paradigma: se antes o nome era compreendido prevalentemente como instrumento de identificação pública, hoje é valorizado sobretudo como espaço de autodeterminação privada. Essa compatibilização só é possível porque a tecnologia assumiu a tarefa de garantir segurança, estabilidade e rastreabilidade nos cadastros estatais, liberando o nome para cumprir sua função mais nobre — ser reflexo da identidade e da liberdade pessoal de cada indivíduo.
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